Educação Politécnica
Jose Rodrigues
É consenso, entre os pesquisadores da área de trabalho e educação, que o conceito de ‘educação politécnica’ foi esboçado inicialmente por Karl Marx, em meados do século XIX. Em outras palavras, ‘educação politécnica’ pode ser vista como sinônimo de concepção marxista de educação.
Cabe esclarecer que, se é originária de Marx a concepção de ‘educação politécnica’, o filósofo alemão jamais escreveu um texto sistemático dedicado especificamente à questão pedagógica. Como ensina Mario Alighiero Manacorda, em sua clássica obra, Marx e a Pedagogia Moderna, se, por um lado, a “temática pedagógica é, de fato, tratada de maneira ocasional em seus aspectos específicos”, por outro lado, e “acima de tudo, está colocada organicamente no contexto de uma crítica rigorosa das relações sociais” (Manacorda, 1991, p. 9). Dentre as obras em que Marx abordou a temática pedagógica, destacam-se O Capital, particularmente no capítulo XIII – A maquinaria e a indústria moderna (Marx, 1994 –, A Ideologia Alemã (Marx & Engels, 1987) e Crítica ao Programa de Gotha (Marx & Engels, s.d.).
Mas, em que consistiria a ‘educação politécnica’ para Marx? Sem pretender esgotar a discussão, pois certamente essa é uma questão bastante complexa, extrapolando os limites deste dicionário, pode-se, primeiramente, ilustrar o pensamento marxiano através de uma das passagens mais conhecidas de Karl Marx, retirada das Instruções aos Delegados do Conselho Central Provisório da Associação Internacional dos Trabalhadores, de 1868 (Marx & Engels, 1983, p. 60 – grifos do autor): “afirmamos que a sociedade não pode permitir que pais e patrões empreguem, no trabalho, crianças e adolescentes, a menos que se combine este trabalho produtivo com a educação”.
E, continuando, o filósofo alemão deixa claro o que entende por educação (1983, p. 60):
Por educação entendemos três coisas:
- Educação intelectual.
- Educação corporal, tal como a que se consegue com os exercícios de ginástica e militares.
- Educação tecnológica, que recolhe os princípios gerais e de caráter científico de todo o processo de produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e os adolescentes no manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais.
Pode-se facilmente perceber a direção de uma educação multilateral preconizada por Karl Marx; seguindo, o autor aponta a finalidade de sua proposta de ‘educação politécnica’: “Esta combinação de trabalho produtivo pago com a educação intelectual, os exercícios corporais e a formação politécnica elevará a classe operária acima dos níveis das classes burguesa e aristocrática” (1983, p. 60).
Nessas indicações, encontra-se o embrião fundamental do trabalho como princípio educativo, que busca na transformação radical da sociedade sua última finalidade. Nesse sentido, os principais vetores da concepção marxista de educação são:
- Educação pública, gratuita, obrigatória e única para todas as crianças e jovens, de forma a romper com o monopólio por parte da burguesia da cultura, do conhecimento.
- A combinação da educação (incluindo-se aí a educação intelectual, corporal e tecnológica) com a produção material com o propósito de superar o hiato historicamente produzido entre trabalho manual (execução, técnica) e trabalho intelectual (concepção, ciência) e com isso proporcionar a todos uma compreensão integral do processo produtivo.
- A formação omnilateral (isto é, multilateral, integral) da personalidade de forma a tornar o ser humano capaz de produzir e fruir ciência, arte, técnica.
- A integração recíproca da escola à sociedade com o propósito de superar a estranhamento entre as práticas educativas e as demais práticas sociais.
No Brasil, essa proposta/concepção de educação ficou relativamente latente até a década de 1980, quando foi (re)introduzida no debate pedagógico por Dermeval Saviani através do curso de doutorado em educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), notadamente a partir do estudo das concepções de Marx e de Antonio Gramsci. As obras de Manacorda sobre o pensamento de Marx e de Gramsci, sem dúvida, têm papel decisivo na apreensão da concepção marxista de educação no Brasil. Primeiramente, as obras circularam em suas traduções espanholas, sendo mais tarde vertidas para a língua portuguesa (Manacorda, 1990, 1991). Cabe também explicitar que podem ser encontradas publicações brasileiras, anteriores à década de 1980, que abordam a educação politécnica (como, por exemplo, Lemme, 1955). Contudo, estas obras não alcançaram maiores repercussões no pensamento pedagógico brasileiro.
Neste curso, Saviani buscava desenvolver uma crítica consistente ao especialismo, ao autoritarismo e ao reprodutivismo em educação, assim como ao marxismo vulgar. Desse modo, o pesquisador desenvolveu uma linha de trabalho que primava pela opção de ‘ir às fontes’, buscando superar aquelas leituras simplificadoras, típicas do marxismo vulgar. Saviani entendia que estudar teoria da formação humana era buscar apreender as concepções de homem, sociedade e educação, em Marx e em Gramsci. Foi precisamente esse retorno ‘às fontes’, conduzido por Saviani, que propiciou a base teórica fundamental ao estabelecimento e posterior ampliação da discussão da concepção politécnica de educação na década de 1980.
Além do debate teórico, propriamente dito, cabe destacar que, em 1988‚ iniciou-se o então curso técnico de 2º grau da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), na perspectiva de
Pensar um projeto de educação articulado com um projeto de sociedade não excludente, pensar um ensino de segundo grau que se desvie da dualidade [educação propedêutica X formação profissional], pensar uma educação que tenha o ser humano como centro e não o mercado [de trabalho]. (Malhão, 1990, p. 3)
No mesmo ano, promulgada a Constituição em 1988, abriu-se o período dos debates acerca das chamadas ‘leis complementares’, que necessariamente decorreriam da nova Carta. Com isso, a discussão em torno da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) irrompeu no país levando consigo o debate da politecnia.
Mais uma vez coube ao professor Dermeval Saviani a iniciativa de produzir um texto que, como ele mesmo afirmou, era ‘um início de conversa’ para a formulação da nova LDB, onde se destacam os conceitos de desenvolvimento omnilateral e formação politécnica. Um deputado, apropriando-se do esboço desenhado por Saviani, o transformou no primeiro anteprojeto de LDB. Com isso, tanto no texto “Contribuição à elaboração da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação: um início de conversa”, de Dermeval Saviani (1988a), quanto no anteprojeto apresentado pelo deputado Otávio Elísio (1988, p. 3), podia-se ler:
Art.35 A educação escolar de 2º grau (...) tem por objetivo geral propiciar aos adolescentes a formação politécnica necessária à compreensão teórica e prática dos fundamentos científicos das múltiplas técnicas utilizadas no processo produtivo.
Não cabe aqui explicitar a trajetória da LDB, aprovada em 1996, contudo, é mister registrar a efetiva derrota que sofreu a proposta da concepção marxista de educação no curso dessa trajetória, onde ficaram apenas menções genéricas e inconsistentes à politecnia (Saviani, 1997, 2003).
No plano específico das pesquisas e publicações que tratam prioritariamente do tema politecnia, podem ser destacadas as contribuições de Dermeval Saviani (1986, 1988a, 1988b, 1989, 2003), Gaudêncio Frigotto (1984, 1985, 1988, 1991), Acácia Kuenzer (1988, 1989, 1991, 1992), Lucília Machado (1989, 1990, 1991a, 1991b, 1992) e Rodrigues (1998, 2005, 2006).
Essa grande e diversificada produção intelectual, marcada pelo contexto e pela conjuntura brasileiros, consubstanciou, sem dúvida, um debate específico sobre a concepção marxista de educação.
Até hoje, existe uma polêmica que gira em torno da denominação mais adequada à concepção marxiana (e marxista) de educação. Em vez de ‘educação politécnica’, alguns autores optam pela designação educação tecnológica. Concordamos com a posição de Saviani (2003, p. 145-146), que assinala uma importante mudança no discurso econômico e pedagógico da burguesia, no que tange à utilização dos termos ‘tecnologia’ e ‘politecnia’, sendo o primeiro definitivamente apropriado pelo discurso dominante: “Assim, a concepção de politecnia foi preservada na tradição socialista, sendo uma das maneiras de demarcar esta visão educativa em relação àquela correspondente à concepção dominante” (Saviani, 2003, p. 146).
Em que pesem as diferentes perspectivas dos autores, grosso modo, a proposta brasileira de ‘educação politécnica’ pode ser caracterizada por três eixos fundamentais: dimensão infra-estrutural, dimensão socialista e dimensão pedagógica.
A dimensão infra-estrutural da concepção politécnica de educação agrega os aspectos relacionados ao mundo do trabalho, especificamente os processos de trabalho sob a organização capitalista de produção, e, conseqüentemente, a questão da qualificação profissional. A questão nodal era, então, procurar esclarecer como as inovações tecnológicas ‘implicariam’ a politecnia, ou seja, em que medida as mudanças nos processos de trabalho estariam contribuindo para a efetivação de uma formação politécnica. Enfim, a concepção politécnica de educação propõe, através de sua dimensão infra-estrutural, a identificação de estratégias de formação humana, com base nos modernos processos de trabalho, que apontem para uma reapropriação do domínio do trabalho, somente possível a partir das transformações tecnológicas.
O segundo vetor do debate brasileiro sobre a ‘educação politécnica’ – dimensão socialista – busca expor a profunda relação entre essa concepção de formação humana e um projeto de construção de uma sociedade sem classes. Para autores brasileiros, no auge do debate da politecnia, seria o projeto socialista-revolucionário de uma nova sociedade que possibilitaria, por um lado, proporcionar unidade teórico-política à concepção politécnica de educação e, por outro, impedir a sua ‘naturalização’, isto é, impedir o equívoco de se entender que a formação politécnica seria o caminho ‘natural’ demandado pelo modo de produção capitalista. Em outras palavras, a politecnia – apoiada em sua dimensão socialista – representaria uma profunda ruptura com o projeto de educação profissional e, fundamentalmente, com o projeto de formação humana postos pela sociedade burguesa.
Ora, como caminhar para uma progressiva explicitação do modus operandi de uma escola que se paute numa orientação politécnica, sem recair em proposições abstratas, isto é, historicamente desenraizadas? Na opinião dos autores em tela, através do permanente estudo da dimensão infra-estrutural, além da consciência de que nenhum estudo ou pesquisa poderá substituir a práxis educativa desenvolvida a partir do horizonte da politecnia. Ou seja, a construção de uma concepção de ‘educação politécnica’ precisaria, necessariamente, estar embasada em práticas pedagógicas concretas que deveriam buscar romper com a profissionalização estreita, por um lado, e com uma educação geral e propedêutica, livresca e descolada do mundo do trabalho, por outro.
Enfim, embora os autores não identificassem polivalência com politecnia, posto que a polivalência representaria apenas um momento necessário à politecnia, ficava mais ou menos implícito que haveria margem para um acordo supraclassista em torno do caráter ‘progressista’ da reestruturação produtiva. Em poucas palavras, a superação do padrão taylorista-fordista de organização do trabalho e de formação profissional interessaria tanto à burguesia (dita nacional) quanto à classe trabalhadora, o que supostamente contribuiria para o avanço da práxis educativa de caráter politécnico (Rodrigues, 2006).
Resta saber: passados vinte anos desde as primeiras publicações brasileiras sobre politecnia e da experiência acumulada pela EPSJV, após também a derrocada dos regimes do dito ‘socialismo real’ e da reestruturação capitalista mundial de cariz neoliberal, qual o atual lugar da concepção da ‘educação politécnica’?
Ora, se concordarmos com a notória formulação de Jean-Paul Sartre – “o marxismo é a filosofia insuperável do nosso tempo. Ele é insuperável porque as circunstâncias que o engendraram não foram superadas” –, então, somos obrigados a concluir que enquanto houver uma educação marcada pela divisão social do trabalho, haverá inexoravelmente a necessidade de uma concepção de ‘educação politécnica’, isto é, marxista, que àquela se contraponha.
JOSÉ RODRIGUES é Professor, doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor adjunto da Universidade Federal Fluminense (UFF), vice-coordenador do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação (NEDDATE-UFF), membro de Conselho Editorial das revistas Trabalho, Educação e Saúde (da Fundação Oswaldo Cruz) e Trabalho Necessário (NEDDATE-UFF) e assessor da FAPERJ.
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