Público versus privado e a escolha de lado

Público versus privado e a escolha de lado

Luiz Araujo

Não tem como ler o relatório aprovado na CCJ do Senado sem ter na lembrança o saudoso sociólogo Florestan Fernandes. Ele dizia que "escola pública, de alta qualidade é um requisito fundamental para a existência da democracia" e dedicou sua vida militante na defesa de verbas públicas para a escola pública. Naquela época muitos dos atuais próceres de nossa República comungavam desta bandeira.

Neste eterno embate entre público e privado temos presenciado, como nos ensina a professora Sofia Vieira, a diluição das fronteiras. Mas, tais fronteiras só se vão diluindo na legislação e na prática política, por que os atores sociais vão progressivamente assimilando a visão de mundo que preside esta diluição. 

O relatório do senador Vital do Rego aperfeiçoou na CCJ as maldades feitas pelo senador Pimentel na CAE no que diz respeito ao tema. A criação de um parágrafo específico para listar tudo que é financiamento público para o setor privado que irá ser contabilizado nos 10% do PIB é demonstração cabal disso. 

Quem sou eu para aconselhar entidade A ou B de como se posicionar sobre as principais polêmicas do plano. A representatividade das lideranças força que elas entabulem negociações com o governo e o parlamento. Contudo, há um ditado que diz que além de navegar é preciso saber o porto de destino.

Li minutos atrás uma nota oficial da minha gloriosa Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação - CNTE, entidade que tive a honra de ajudar a criar e compor sua primeira diretoria. O texto foi ensejado por acusações de que a referida entidade teria negociado o conteúdo do relatório do senador Vital do Rego. É muito interessante a demarcação da entidade em vários elementos discordantes com o texto aprovado, inclusive a supressão da Estratégia que garantia complementação da União para a implantação do Custo Aluno-Qualidade Inicial. 

Porém, causou-me estranheza o relato feito pela entidade sobre suas tratativas com o MEC (afinal, se é necessário negociar um relatório é melhor conversar com quem manda e não com quem obedece!) sobre o teor do parágrafo 5º do artigo 5º. Transcrevo o texto da nota abaixo:

Sobre o art. 5º, § 5º do projeto de PNE, que trata das exceções da meta 20 ao investimento público na educação pública, a CNTE apresentou emenda para corrigir a redação aprovada na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, que excedia, indiscriminadamente, o acordo firmado entre o MEC e entidades da sociedade prevendo o cômputo dos investimentos públicos em ações do Governo que já se encontram em andamento e que, se cessadas, poderiam causar inúmeros prejuízos aos que estão sendo atendidos por elas.

Posteriormente, o MEC inseriu no rol das exceções a creche e a educação especial – esta última na perspectiva de aproximar o texto do Senado ao da Câmara – e, sem qualquer comunicado às entidades, inseriu também a pré-escola, com que a CNTE não concorda. Ademais, o MEC deixou de indicar no texto da meta 20 a preferência do investimento público para a educação pública, ressalvadas as exceções devidamente listadas no artigo da Lei


Registro a minha humilde discordância com o caminho trilhado na negociação entre a CNTE (e outras entidades da sociedade civil não nominadas no texto) e o MEC, onde foi aceito por elas inserir como parte dos recursos necessários a efetivação do PNE os investimentos públicos em ações do Governo que já se encontram em andamento e que são direcionadas ao setor privado. Esta aceitação levou em consideração o risco de que tais ações fossem cessadas.

 Vejamos o que se esconde por trás desta preocupação singela: 

1. O cálculo de 10% do PIB, apresentado pelos pesquisadores e pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, embutia um conceito de que oferta de vagas a serem criadas nos próximos dez anos teria como primazia o setor público. Exemplo disso era que na planilha do MEC a participação pública no ensino superior seria de 26% e a sociedade civil defendia na sua planilha uma participação de 60% do poder público. É lógico que sendo apenas 26% e ainda este percentual ser operado 50% à distância, como é a intenção do MEC, o custo será mais barato. Na Câmara se conseguiu inserir 40% de vagas públicas de novas matrículas, mas só relatórios de Pimentel e Vital do Rego derrubaram esta referência.

 2. Afirmar que os programas e ações serão encerrados significa acreditar que não é possível ampliar a rede pública em áreas com forte presença privada na próxima década, discurso falso e usado para enganar desavisados e constranger aliados encurralados entre a pressão de suas bases por mais recursos e a pressão do governo que quer manter seus compromissos com o mercado financeiro, que consome metade do orçamento federal todos os anos. Quer dizer que as entidades foram convencidas pelo ministro de que 10% para a educação público é inviável financeiramente? Esta é a consequência da leitura. 

Prefiro ficar com a coerência de Florestan, manter a bandeira histórica de verbas públicas somente para a escola pública. A diluição das fronteiras tem levado a parcerias como a registrada no dia de hoje

em Belo Horizonte

, a substituição da criação de novos IFETs por bolsas para o sistema S, troca de novas universidades em ritmo necessário por mais crédito subvencionado para alunos frequentarem instituições particulares, com a consequente compra da possível inadimplência pelo poder público.

 Estes dias li um release de uma palestra do ex-deputado federal Carlos Abicalil, assim como eu também ex-dirigente nacional da CNTE. Ele disse que “precisamos continuar lutando para que a educação seja um direito universal, digno e igual para todos e todas. Não podemos perder o direito fundamental da educação estatal". Exatamente isso que estou reivindicando, não perder o rumo de que para ser um direito de todos a primazia da oferta educacional deve ser estatal. 

É papel das entidades forçar negociações com os governos. Porém, fazer emendas no parágrafo 5º do artigo 5º ou se queixar que o governo piorou o texto "sem qualquer comunicado às entidades" é aceitar a derrota nesta guerra pela garantia do direito à educação. É o caminho do reforço da diluição ainda maior das fronteiras entre o público e privado.

Resposta da CNTE aos meus comentários

Hoje pela manhã publiquei post refletindo sobre posicionamento da CNTE. E hoje à tarde recebi a resposta abaixo, a qual democraticamente publico neste espaço.

Fronteiras são diluídas desde o Fundeb, com posição contrária da CNTE

Em resposta aos comentários do companheiro de luta Luiz Araújo, veiculados em seu blog pessoal, condenando a negociação da CNTE e de entidades da sociedade com o MEC em torno das exceções à meta 20 do PNE, destacamos o seguinte para o debate público:

1.      As resoluções congressuais da CNTE tornam pública sua posição sobre a defesa do financiamento público para a escola pública, embora os mesmos documentos excetuem posições favoráveis da Entidade a programas que promovam o acesso de estudantes a níveis e modalidades de ensino com baixa capacidade de atendimento público, a exemplo do Prouni.

2.      É importante registrar, no contexto de invocações a Florestan Fernandes, que não foi a CNTE e o movimento sindical que inauguraram a flexibilização do princípio da destinação das verbas públicas para a educação pública. Não obstante a Constituição Federal prever essa condição em seu art. 213, por ocasião da aprovação do Fundeb, em 2007, a CNTE foi derrotada – inclusive com votos de parlamentares de partidos ditos mais à esquerda – em sua tentativa de não permitir que os recursos do Fundo se destinassem às creches e às escolas de educação especial conveniadas (privadas).

3.      Desde o advento do Fundeb, no entanto, a CNTE passou a atuar na perspectiva de conter ao máximo a diluição de um princípio tão caro para quem defende e trabalha na escola pública. Cientes dos limites (justos e injustos) de prefeitos e governadores que não ampliam matrículas na rede pública (creches e ensino médio, em especial técnico-profissional) mesmo com o reforço do Fundeb, bem como do largo tempo que se fará necessário para que as universidades públicas absorvam a enorme demanda de estudantes egressos do ensino médio, passamos a combinar as estratégias de expansão da rede pública com o atendimento conveniado, que deve ser temporal e estritamente demarcado.

4.      Portanto, a CNTE não abre mão de recuperar o teor das metas 11 e 12 do substitutivo de PNE aprovado na Câmara dos Deputados, embora, infelizmente, a Entidade não tenha conseguido evoluir nas negociações com o MEC sobre esses e outros pontos que retrocederam nos pareceres aprovados pelas duas comissões temáticas do Senado. Nosso foco, como dito, é não deixar que a expansão das matrículas se dê somente pelo setor privado, como quer a maioria dos Executivos, pois isso representaria tudo de pior que poderia acontecer para a nossa luta em defesa da educação pública.

5.      Neste sentido, longe de ser uma ação de ator social desavisado, a estratégia da CNTE tem como norte a consecução das metas da Emenda Constitucional 59, via ampliação das matrículas públicas ano a ano; assim como o cumprimento efetivo do piso do magistério numa estrutura de carreira próspera e não apenas economicista, como alguns municípios e estados tentam implantar e que em nada contribuirá para a valorização dos educadores e a melhoria da qualidade da educação.

6.      Todos reconhecem que a disputa do PNE no Senado está desfavorável para os movimentos sociais, e a emenda ao art. 5º, § 5º do PLC 103/12 representou uma ação para evitar a manutenção do texto aprovado na CAE-Senado, que escancarava o repasse público para a iniciativa privada de todas as matrículas dos níveis básico e superior, inclusive na forma de vouchers. A CNTE tem lado, lê a conjuntura e por isso mesmo não vende a ilusão de paraísos próximos e facilmente alcançados.

7.      A posição da CNTE em relação aos substitutivos até agora aprovados no Congresso, caso a Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado não corrija os retrocessos impostos ao texto da Câmara dos Deputados, será pela manutenção da maior parte deste, com exceção dos poucos avanços promovidos pelos senadores, a exemplo da meta 16 que inseriu os funcionários da educação nas políticas de formação inicial e continuada.

8.      Ao longo de sua trajetória, independente das forças políticas que estiveram à frente da Direção Executiva, a CNTE pautou-se por deliberações democráticas da maioria de seus sindicatos filiados, e o diálogo com os parceiros sociais e com os Poderes constituídos sempre foi franco e transparente. Não autorizamos ninguém a falar por nós – e esse foi o espírito da nota pública divulgada no dia 25/9 – como também não nos sentimos no direito de falar pelos outros. Por isso, fica a critério das entidades que participaram do processo de negociação do art. 5º, § 5º do PLC 103/12, junto com o MEC, de se manifestarem ou não.

Saudações sindicais,
 Roberto Franklin de Leão

 

 




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