Desistência DO e NO trabalho

Desistência DO e NO trabalho

"Pôr fogo em tudo, inclusive em mim": desistência DO trabalho e desistência NO trabalho

Mauro Sala

Ontem saiu no jornal Estado de São Paulo uma reportagem que dizia que “3 mil professores desistem de dar aula nas escolas estaduais de SP”. Apesar de o número ser enorme, ele ainda é subestimado, visto que ele apenas computa as exonerações do quadro de professores concursados: “A cada dia, 8 professores concursados desistem de dar aula nas escolas estaduais paulistas e se demitem”.

Essa é apenas a pontinha do iceberg, pois como a própria reportagem nos informa, o quadro de professores concursados representa pouco mais da metade dos mais de 230 mil professores que trabalham na rede estadual paulista, algo em torno de 120 mil.

Nos “3 mil professores que desistem de dar aula nas escolas estaduais de SP” da reportagem não estão presentes (ou ausentes, sei lá!) os “63 mil professores contratados com estabilidade” e/ou os “49 mil temporários”. Quantos desses também não abandonam as escolas estaduais paulista a cada dia? O número, provavelmente, é ainda maior, devido às precariedades próprias dessas condições.

A reportagem subestima quantitativamente a desistência DO trabalho! E mais, nega totalmente uma outra forma de desistência que tem afligido o quadro dos trabalhadores docentes (e tantos outros trabalhadores!): a desistência NO trabalho.

Assim, uma questão que nos surge é o dos inúmeros casos de “professores que desistem de dar aula”, mas que não se demitem.

Essa forma de desistência pode ser facilmente confundida com pura “picaretagem”, “má vontade”, “oportunismo” ou outro tipo qualquer de condenação moral contra o trabalhador. Antes que essa vontade fácil se imponha, adianto que formas de desistência NO trabalho são reconhecidas na literatura internacional sobre a saúde do trabalhador, constando inclusive da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10).

No Brasil, a publicação do Ministério da Saúde e da Organização Pan-Americana de Saúde/Brasil, Doenças Relacionadas ao trabalho: manual de procedimentos para os serviços de saúde, também reconhece essa forma de desistência, buscando estabelecer o seu nexo causal com as condições e formas de organização do trabalho. Trata-se da “sensação de estar acabado”, também conhecida como síndrome de burn-out ou síndrome do esgotamento profissional. Nos países de língua espanhola, chamam essa síndrome de “síndrome de quemarse en el trabajo”.

O relatório sobre as Doenças relacionadas ao trabalho assim descreve essa doença:

“A sensação de estar acabado ou síndrome do esgotamento profissional é um tipo de resposta prolongada a estressores emocionais e interpessoais crônicos no trabalho. Tem sido descrita como resultante da vivência profissional em um contexto de relações sociais complexas, envolvendo a representação que a pessoa tem de si e dos outros. O trabalhador que antes era muito envolvido afetivamente com os seus clientes, com os seus pacientes ou com o trabalho em si, desgasta-se e, em um dado momento, desiste, perde a energia ou se “queima” completamente. O trabalhador perde o sentido de sua relação com o trabalho, desinteressa-se e qualquer esforço lhe parece inútil.”

Está associada a essa síndrome, três elementos centrais: Exaustão emocional; despersonalização; e diminuição do envolvimento pessoal no trabalho.

Trata-se de um esgotamento profissional NO e COM o trabalho... “o trabalhador perde o sentido de sua relação com o trabalho, desinteressa-se e qualquer esforço lhe parece inútil...” É uma forma de desistência de corpo presente; uma desistência daqueles que por um motivo ou outro não simplesmente se demitem.

Não sou psicólogo e não concordo inteiramente com a síndrome de “quemarse en el trabajo”, embora eu ache um baita avanço o estabelecimento de um nexo causal entre as condições e formas de organização do trabalho com essa forma de sofrimento e adoecimento psíquico.

Penso que temos que pensar essa perda de sentido também com uma relação mais clara com a própria atividade desses trabalhadores, que no caso que tratamos é o próprio trabalho educativo. Não são as condições e a organização do trabalho em geral que afetam simplesmente os trabalhadores docentes, esgotando-os; são as condições e formas de organização do trabalho que impedem efetivamente o trabalho educativo. No fim, todo professor sabe (intuitivamente e as vezes mesmo contra toda a ideologia educacional verbalizada por eles próprios) que ele tem que ensinar, “dar aula”. Essa é sua atividade principal. Mesmo que ele chame a si mesmo de “organizador”, “facilitador”, “mediador” ou qualquer outra nomenclatura hoje em voga, ele sabe que a única identidade possível nesse campo é a de professor, que se cria e se reproduz pela atividade de ensino, que tem na contraparte a efetiva aprendizagem dos alunos.

Falhar aí pode ser fatal para nossa subjetividade e para o envolvimento com o trabalho. Um livro velho de um psicólogo fora de moda talvez nos ajude a pensar essa questão. “Atividade, consciência e personalidade” de Alexis Leontiev. A ordem dos conceitos não é fortuita nem casual. Pois primeiro vem a atividade: é na atividade que constituímos nossa consciência e nossa personalidade. Assim, uma atividade que “perde o sentido”, uma atividade (o próprio trabalho educativo) que se torna impossível pelas condições e organização do trabalho só pode redundar em despersonalização... assim, em sofrimento e/ou adoecimento psíquico.

Muito difícil isso tudo! A Psicologia é campo específico para aqueles que são nela iniciados. Não é o meu caso! Facilitarei para mim e para quem acompanhou as coisas até aqui. Vamos entender de vez essa forma invisível de desistência NO trabalho lendo uma velha fábula de La Fontaine, a Raposa e as uvas:

“Uma raposa faminta entrou num terreno onde havia uma parreira, cheia de uvas maduras, cujos cachos se penduravam, muito alto, em cima de sua cabeça.

A raposa não podia resistir à tentação de chupar aquelas uvas maduras mas, por mais que pulasse, não conseguia abocanhá-las.


Cansada de pular, olhou mais uma vez os apetitosos cachos e disse:

- Estão verdes...”

 
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