A utilidade do IDH
"O IDH não captura as desigualdades de um país, como a qualidade do ensino entre suas regiões", afirma Marcelo Miterhof
Muito se comemorou em agosto acerca dos resultados do índice de desenvolvimento humano municipal (IDHM) de 2013, publicação decenal divulgada pela ONU no fim de julho e que é uma variação do IDH.
Em duas décadas, na média, o Brasil saltou de um desenvolvimento classificado no limite da faixa de "muito baixo" (0,493 em 1991) para o nível "alto" (0,727 em 2010).
Não tinha abordado o tema graças a um certo preconceito contra o IDH. Como indicador de desenvolvimento, acho a renda per capita mais informativa e, como mensuração de dimensões extraeconômicas do desenvolvimento, o IDH parece pouco capaz de capturar a complexidade da realidade.
Mudei em certa medida de opinião ao ouvir nas últimas semanas discos com gravações do "Ensaio", da TV Cultura. Gravados na década de 1970 com artistas já veteranos, como Tonico e Tinoco, Geraldo Filme e Henricão, são registros de histórias do Brasil a partir dos anos 1920.
Tinoco conta que na fazenda em que viviam, em São Manuel (SP), a criança estudava até "aprender o que o professor sabia". Henricão fez o samba "Testamento do Sambista" para um amigo que, doente, pediu-lhe que ajudasse a mulher a garantir que os filhos estudassem. Estudar significava serem alfabetizados.
Taxa de alfabetização e anos de estudo para educação e expectativa de vida para saúde são indicadores que eram capazes de refletir e orientar o esforço de desenvolvimento de um país ainda agrário e arcaico.
Nesse sentido, a evolução do IDH foi consequência de esforços como a universalização do ensino básico e de iniciativas como a vacinação maciça das crianças, que reduziram a mortalidade infantil. Para tanto, foi fundamental a Constituição de 1988, um pacto federativo visando à universalização dos serviços públicos.
Porém, o IDH será cada vez menos um bom orientador das políticas públicas brasileiras. Ele não é capaz de capturar as várias desigualdades de um país: da qualidade do ensino entre suas regiões, de renda entre raças ou entre os serviços público e privado de saúde. Há variações do IDH que tentam contornar esses problemas, mas são pouco representativas.
Esse não é necessariamente um defeito do IDH, mas uma consequência do objetivo para o qual foi construído, que é ser capaz de fazer todo o mundo se enxergar nele. É tão brutal a diferença de desenvolvimento entre um país escandinavo e os países mais pobres da África que foi preciso escolher medidas simples, confiáveis e inteligíveis para criar uma escala que quantitativamente hierarquize o desenvolvimento no mundo.
Uma consequência é que o IDH é sensível aos valores extremos. Por exemplo, no IDHM, a expectativa de vida de um município é parametrizada a partir de sua relação com os valores extremos, fixados em 85 anos e 25 anos. Como no teto o crescimento é lento, se um lugar mantém a expectativa de vida tão baixa, é mais fácil para países ou municípios mostrar melhoras no indicador.
Apesar dessas limitações, minha colega economista Betina Ferraz, com quem debati esta coluna, destaca que o cálculo do IDH exige um profundo esforço de organização para atender à ONU com estatísticas públicas confiáveis.
Num país de IDH na casa dos 0,4, esse esforço é valioso em termos de qualificação da burocracia e divulgação do valor dos serviços públicos de educação e saúde.
Por fim, é preciso destacar que a ONU, em seu Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) de 2013, vai além das análises sobre fatores que afetam o IDH.
O RDH 2013 aponta a chamada "ascensão do Sul", refletindo o progresso sustentado nos países onde reside a maior parte da população mundial, com destaque para China, Índia e Brasil. Para tanto, tem sido crucial a cooperação Sul-Sul, em especial em razão dos efeitos do crescimento da China e da Índia.
O relatório reconhece o papel do Estado na promoção da industrialização --fazendo florescer setores que de outra forma não existiriam-- e para usar as políticas sociais como motor do crescimento sustentado. O RDH 2013 destaca que os progressos do IDH precisam ser acompanhados de reduções mais significativas da desigualdade de renda.
Ao tornar-se mais plural, superando o cunho estritamente liberal que caracterizou a criação do IDH, a ONU mitiga os efeitos de suas limitações e melhora sua contribuição para o entendimento do desenvolvimento.