Pensando a respeito de escolas
Me ajuda a olhar! – Pensando a respeito de escolas, alunos e narrativas
Por Jacqueline de Fátima dos Santos Morais
Docente da Faculdade de Formação de Professores da UERJ
Lembro-me de uma pequena e emblemática história, dessas que, mesmo lidas há tempos, possuem a rara habilidade de, vez por outra, sair da zona sombria do esquecimento e povoar a memória. Poderia aqui transcrever tal como a guardo de cor, mas não o farei. Explico-me: um saber decorado é um saber posto no coração, como a origem etimológica da palavra nos revela, e que, por isso, se abre disponível ao outro, de quando em vez. Mas não hoje. Quero, neste momento, compartilhar o texto tal como foi criado por seu autor, para que assim, cada um ou uma possa, tomando-o em sua inteireza, do seu jeito e modo, colocá-lo, quem sabe, também no coração. E retirar quando assim o desejar.
A função da arte
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
Me ajuda a olhar!
Essa é a história que vive, ora acordada ora adormecida, em mim. E tantas vezes desperta, que me provoca a pergunta: por que? O que esta narrativa tem para não aceitar o lugar de natural destino: o dos saberes esquecidos na memória?
Há narrativas que são assim: capazes de sobreviver ao devorador deus Cronos, mantendo ainda a viçosidade e a capacidade de surpreender. São as narrativas que nomeamos como especiais. São essas as capazes de deixar sem voz, mesmo que por breve instante, os que a ouvem ou a lêem. Ao mesmo tempo que silenciam o ouvinte/leitor, criam infinitas imagens em sua mente. Então, as verdadeiras histórias emudecem, para encher de palavras. A história de Diego assim fez comigo.
As boas narrativas, as histórias especiais, trazem o frescor da experiência alheia e por vezes nos ajudam a olhar o que antes não víamos. Mesmo que diante de nós esteja o suposto mesmo de sempre. E, como o menino de Galeano, sussurramos ao texto ou a seu autor: me ajuda a olhar!
As histórias, assim como os meninos, precisam de pais ou mães, de alguém que aceite o desafio de alimentar e ajudar no crescimento do que no início é apenas promessa de futuro, um talvez vir a ser. Aceito o desafio, há que pegar os fios, que no início escapolem ao controle, a cada instante, para que seguros, possam soltar-se vez por outra, retornar às mãos de quem urge a trama original, para novamente, sem aviso, perderem-se uma vez mais… Há que se tecer e destecer a trama do texto, tantas e tantas vezes, linha após linha, até que a última palavra convide a chegada de um ponto, um derradeiro final. Findo o trabalho, nasce a escrita em sua completude. Ou o trabalho nunca finda? E a completude sempre esteve presente, desde quando o texto era projeto?
Nascida, a narrativa corre o mundo, conhece novas paragens, ruas e vielas, desertos e montes, até que não mais saiba por quais caminhos e descaminhos trilhou, perdidos que foram seus rastros no espaço e no tempo de quem leu. E de quem guardou o que leu.
Acompanhando-nos, o menino de Galeano continua presente a fitar-nos, com seu pedido em suspense: me ajuda a olhar! Na escola, outros meninos, pintados de múltiplas cores, marcados por variadas idades também chegam, produzindo com vozes de diferentes tons, o mesmo e invariável pedindo: me ajuda a olhar!
O que faz a escola? O que fazemos nós, professores e professoras? Quais os espaços para esta e outras tantas perguntas? Quem as ouve? Quem as responde? Quem cala e quem diz na escola? O que é dito e o que é silenciado dia após dia, por trás dos muros escolares?
Talvez possamos imaginar que o menino de Galeano por fim não tenha sido ouvido por seu pai. Preocupado com o horário de retorno à casa, quem sabe Santiago tenha apagado de sua escuta o som da voz do filho. E a pergunta tenha ficado perdida em meio ao barulho do mar.
Longe das águas, entre muros, cadernos e quadros de giz, outros tantos Diegos esperam igualmente serem ouvidos. Mas o horário de aula, os tempos de cada professor, as regras de funcionamento da burocracia escolar, a disciplina, o entra e sai de inspetores, os conteúdos programados, as provas, avaliações, os exercícios, trabalhos de aula e de casa, vão silenciando as vozes desses novos “Diegos”. No início do ano letivo, ainda insistem em dizer: me ajuda a olhar! Depois, cansados da ausência de respostas, desviam o olhar em busca do que lhes pareça mais interessante e produtivo: as brincadeiras do recreio, as conversas com os colegas, as brigas no pátio, os bilhetinhos de amor, as drogas, os sonhos, os desenhos nos muros, o abandono da escola.
Mas há os que não ensurdecem. Adultos que não esquecem que já foram também crianças. São estes que, no interior da escola, acreditam que é preciso aprender com os alunos a inverter o papel que foi historicamente colocado aos docentes: sair do lugar daqueles que tudo sabem, em direção ao lugar de quem precisa aprender. E então, imbuídos do olhar do
Bibliografia:
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre, L&PM, 2000.
Fonte: Texto extraído do sítio da Revista Espaço Acadêmico. http://www.espacoacademico.com.br