A indecisão brasileira
Coexistem em Brasília duas tendências: uma moderadamente latino-americanista e que prosperou sob o governo de Lula; e outra que acha que o futuro do Brasil passa por uma íntima associação com os EUA. Esta corrente ainda não chega a ser hegemônica no Palácio do Planalto, mas sem dúvida hoje encontra ouvidos muito mais receptivos que antes.
Atilio A. Boron*
Henry Kissinger, cuja condição de criminoso de guerra se une a de ser um fino analista da cena internacional, disse no fim dos anos sessenta que “para onde se incline o Brasil se inclinará a América latina”. Isso não é bem assim hoje porque a maré bolivariana mudou para bem o mapa sociopolítico regional; mas ainda assim a gravitação do Brasil no plano hemisférico continua sendo muito importante. Se seu governo impulsionasse com força o Mercosul e a Unasul ou a Celac, outra teria sido a história dessas iniciativas. Mas Washington vem trabalhando há tempo para desestimular esse protagonismo. Aproveitou-se da ingênua credulidade ou o afinado colonialismo mental do Itamaraty prometendo-lhe demagogicamente que garantiria para o Brasil uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, enquanto a Índia e o Paquistão (duas potências atômicas) ou a Indonésia (a maior nação muçulmana do mundo) e o Egito, a Nigéria, o Japão e a Alemanha, entre outros, ficariam fora.
Mas não se trata só de ingenuidade, pois a opção de associar-se intimamente a Washington seduz muitos em Brasília. Poucos dias depois de assumir seu cargo como chanceler, Antonio Patriota concedeu uma extensa entrevista à revista Veja. A primeira pregunta foi esta: “Em todos seus anos como diplomata profissional, que imagem formou dos Estados Unidos?”. A resposta foi assustadora: “É difícil falar de maneira objetiva porque tenho um envolvimento emocional (sic!) com Estados Unidos através da minha família, de minha mulher e de sua família. Existem aspectos da sociedade americana que admiro muito”.
O razoável teria sido que lhe pedissem a imediata renúncia por “incompatibilidade emocional” com a defesa do interesse nacional brasileiro, coisa que não aconteceu. Por quê? Porque é óbvio que coexistem em Brasília duas tendências: uma moderadamente latino-americanista e que prosperou sob o governo de Lula; e outra que acha que o esplendor futuro do Brasil passa por uma íntima associação com os Estados Unidos, esquecendo-se de seus revoltosos vizinhos. Essa corrente ainda não chega a ser hegemônica no interior do palácio do Planalto, mas sem dúvida que hoje em dia encontra ouvidos muito mais receptivos que antes. E essa mudança na relação de forças de ambas tendências saiu à luz com a muito demorada reação da presidenta Dilma Rousseff diante do sequestro do qual Evo Morales foi vítima: se os presidentes de Cuba, Equador, Venezuela e Argentina (além do secretário geral da Unasul Alí Rodríguez) demoraram apenas uns poucos minutos depois de conhecida a notícia para expressar seu repúdio ao ocorrido e sua solidariedade com o presidente boliviano, a brasileira necessitou de quase quinze horas para fazê-lo. Depois, inclusive, das duras declarações do próprio secretário geral da OEA, cuja reprovação foi conhecida quase em coincidência com a dos primeiros. Conflitos e disputas no interior do governo que fizeram que Dilma Rousseff não participasse do encontro que teve lugar em Cochabamba, localizada a escassas duas horas e meia de voo de Brasília, debilitando o impacto global desta reunião presidencial.
Para uma América latina emancipada das algemas neocoloniais é decisivo contar com o Brasil. Mas isso não será possível, apenas a conta-gotas, enquanto não se resolva a favor da América latina a pugna entre aqueles dois projetos. Isso não só converte o Brasil em um ator vacilante em iniciativas como o Mercosul ou a Unasul, mas o conduz a uma perigosa paralisia em estratégicas questões de ordem doméstica.
Por exemplo, ao não poder resolver desde 2009 onde adquirir os 36 aviões caça que necessita para controlar seu imenso território e muito especialmente a grande bacia amazônica e sub-amazônica.
Uma parte do alto comando se inclina por um reequipamento com aviões estadunidenses, enquanto outra propõe adquiri-los na Suécia, França ou Rússia. Nem sequer Lula pode resolver a discussão. Essa absurda paralisia se destravaria facilmente se a elite política se fizesse uma simples pergunta: quantas bases militares têm na região cada um dos países que nos oferecem seus aviões? Se o fizessem, a resposta seria a seguinte: a Rússia e a Suécia não têm nenhuma; a França tem uma base aeroespacial na Guiana francesa com presença de pessoal militar estadunidense; e os Estados Unidos têm, por sua vez, 76 bases militares na região, um punhado delas alugadas a – ou coadministradas com – terceiros países como o Reino Unido, a França e a Holanda.
Algum burocrata do Itamaraty ou algum militar treinado em West Point poderia aduzir que estão ali para vigiar a Venezuela. Mas a dura realidade é que enquanto a Venezuela é ameaçada por 13 bases militares norte-americanas instaladas em seus países limítrofes, o Brasil se encontra literalmente cercado por 23, que se convertem em 25 ao somar as duas bases britânicas de ultramar com que contam os Estados Unidos no Atlântico equatorial e meridional, nas ilhas Ascensión e Malvinas respectivamente. De pura casualidade, as grandes reservas submarinas de petróleo do Brasil se encontram aproximadamente na metade de caminho entre ambas instalações militares.
Frente essa grosseira evidência, como é possível que ainda se esteja em dúvida de quem não comprar os aviões que o Brasil necessita? A única hipótese realista de conflito do Brasil é com os Estados Unidos. Na Argentina há alguns que prognosticam que o enfrentamento será com a China.
Claro que há diferenças: enquanto esse país invade a região com uma infinidade de supermercados, Washington o faz com toda a força de seu músculo militar, rodeando principalmente o Brasil. E, se fizer falta, reativa também a Quarta Frota (em outras dessas grandes “casualidades” da história!) justamente poucas semanas depois de que o presidente Lula anunciasse o descobrimento da grande reservatório de petróleo no litoral paulista. Ou é que os funcionários a cargo desses temas no Brasil podem não saber que nem bem o presidente Hugo Chávez começou a ter as primeiras controvérsias com Washington, este lhe pôs um cadeado ao envio de peças de reposição e renovados sistemas de aeronavegação e combate para a frota dos F-16 que a Venezuela tinha, que ficou inutilizada? Não faz falta demasiada inteligência para imaginar o que poderia acontecer em caso de que surgisse um sério conflito entre o Brasil e os Estados Unidos pela disputa do acesso a, por exemplo, alguns minerais estratégicos que se encontram na Amazônia; ou ao petróleo do “pré-sal”; ou o cenário do “caso pior”, se Brasília não acompanhasse Washington em uma aventura militar encaminhada a derrubar algum presidente incômodo da região replicando o modelo utilizado na Líbia. Nesse caso, a represália diante do aliado que deserta seria a mesma que se aplicou a Chávez. Tomara que essas duras realidades se discutam publicamente no Brasil e que se ponha fim a suas crônicas vacilações. A reunião do Mercosul em Montevideo poderia ser um bom começo.
* Diretor do PLED, Centro Cultural da Cooperação Floreal Gorini.
Tradução: Liborio Júnior
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