Negação do corpo
Não há nada mais reacionário que a negação do corpo
por Pedro Henrique Gomes
O mito é o ideograma primário que nos serve, temos necessidade dele para conhecermo-nos e conhecer. A mitologia, qualquer mitologia, é ideogramática e as formas fundamentais de expressão cultural e artística a elas se referem continuamente.
(Revolução do Cinema Novo, Glauber Rocha)
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A experiência da ocupação da Câmara Municipal de Porto Alegre valeu mais que uma faculdade. A convivência com as várias demandas sociais a partir de muitas pessoas diferentes, de vertentes políticas distintas (mas dentre aquelas que ficam do lado do coração), de partidos vários, de partido nenhum, da religião que se queira, foi emancipadora. A lógica foi subvertida, como já é de amplo saber: coletividade, autonomia, autogestão, horizontalidade, dinâmica sistemática das assembleias democráticas.
Os banheiros eram para todos os sexos, multisexos-plurisexuais, e indiscutivelmente funcionavam com organização e utilização compartilhada com respeito às intimidades. Ali, durante a última semana, se respeitou o corpo do outro. Homens e mulheres entravam e saiam do mesmo box, sem constrangimento, sem coação. Não houve necessidade de imperativos. Mas o que repercutiu na manhã desta quinta-feira 18, mais que isso ou qualquer outra coisa, foi o corpo humano. Ele mesmo, vangloriado, vestido por todos nós, inerente e imanente a todos nós, intrínseco a nossa existência e substância, indissociável de nosso desejo, ele chocou algumas pessoas.
O nu não é uma demonstração de poder, é o poder ele mesmo, toda a força e a inocência do humano. Reclamaram que faltava paz e amor ao movimento, mas quando foram expostos os mais poderosos símbolos desse amor e dessa paz, não compreenderam. Primeiro: estes bravos conservadores não conhecem seus valores. Enxergam no corpo do outro um absurdo que deve ser mantido para si, escondido do mundo, revelado somente para o sexo, para o prazer egoísta. É justamente isso: estas pessoas que se ofendem com a nudez são porcamente violentadas, elas mesmas, pela cultura pornográfica que consomem, associando diretamente o corpo ao sexo. Não percebem a beleza que jaz ali dentro e ali fora, por mais gritante que seja.
O nu dos jovens incomodou os setores moralizantes da cidade, do estado e do país. Disseram que o movimento perdeu a razão, descaracterizou-se, perdeu o foco, vulgarizou o que antes era tão bonito e “pacífico”. Ficaram horrorizados com tamanha imprudência e despudor, logo tachando o ato com suas bravatas conhecidas: “putaria”, “pornografia”, “bando de vagabundos e vagabundas”, “não respeitam a família e as instituições”. Entretanto, não há choque algum por parte dos conservadores da pureza, da aura, quando, amealhadas, acuadas e oprimidas pelo violento sistema de transporte as mulheres sofrem abusos voluntários nos corriqueiros esfregamentos dos ônibus. Não lhes incomoda quando podem gozar. Assustam-se com o sexo exposto das mulheres, mas passam coladinhos, e, entre seus amigos machistas, se vangloriam nos churrascos de domingo. Não deveria surpreender a exposição do corpo: ele é tudo que temos. A nudez nada mais é que a pulsão de um sentimento de amor. Não há nada mais reacionário que a negação do corpo nu.
Pedro Henrique Gomes é jornalista, membro da ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do RS. Edita o blog Tudo é Crítica, a revista eletrônica Aurora e a revista zinematógrafo.