O público e o privado no PNE
Luiz Araujo
A redação de um plano nacional de educação é uma oportunidade ímpar para retomar o debate sobre a relação entre público e privado, talvez a polêmica mais recorrente nos debates educacionais em nosso país.
Nunca é demasiado recordar que nossa Constituição manteve posição contraditória sobre o tema. No seu artigo 205 garantiu a educação como um direito do povo brasileiro e estabeleceu que tal direito seria um dever do Estado. Com a inscrição desta declaração reforçou o caráter público da prestação da oferta educacional.
Porém, o texto constitucional garantiu a existência de escolas particulares, permitindo no caso das não-lucrativas, o recebimento de recursos públicos.
Podemos dizer que o espírito do constituinte era de preservar o chamado “direito de escolha”, ou seja, o ensino é público e no nível obrigatório será oferecido para todos, mas o cidadão tem o direito de escolher frequentar uma escola particular. Obviamente que este “direito” estaria condicionado a renda correspondente para comprar o produto educacional oferecido pela rede particular.
A definição de escola pública oferecida por Vieira (2008) é essencial para o debate travado neste momento na tramitação do PNE. Escola pública é aquela financiada com recursos públicos, provenientes da receita de impostos, mantidas e administradas pelas diferentes instâncias do Poder Público. E escola privada é aquela instituída por pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Manter esta fronteira clara é fundamental.
Em vários momentos este debate permeia a redação do plano nacional de educação. Hoje e nos próximos dias tentarei refletir sobre cada um destes aspectos.
O primeiro embate diz respeito sobre a primazia da oferta pública como espinha dorsal do plano. A proposta enviada pelo Executivo (PL nº 8035/2013, o texto aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados (PLC 103/2012) e o substitutivo aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, convivem com dubiedades sobre este assunto.
A dubiedade fica explícita na prioridade do financiamento público para a próxima década.
Durante a primeira fase da tramitação a intenção governamental de promover um crescimento da oferta educacional de maneira compartilhada com setor privado estava presente de forma implícita (na memória de cálculo dos custos do plano e em estratégias que incentivavam o conveniamento com o setor privado na educação infantil e subsídios a oferta privada no ensino profissionalizante e superior);
Houve uma tentativa fracassada do então relator da matéria, deputado Ângelo Vanhoni (PT/PR) de incorporar no cálculos de custo do plano os gastos com a área privada, mas a forma aloprada com que foi feita acabou abortando a explicitação desta intenção.
Foi somente com o relatório do senador Pimentel (PT/CE) que o governo e sua bancada decidiu apresentar de forma explícita a ideia de compartilhamento com o setor privado. A alteração do indicador que mensura o investimento educacional em relação ao PIB é a síntese desta nova postura. Ao invés de contabilizar apenas o investimento público direto na rede pública, o substitutivo contabiliza todos os investimentos repassados para a iniciativa privada.
Considero que o conceito implícito do textos em debate é de que o setor privado tem a mesma estatura que o setor público na prestação dos serviços educacionais, conceito que não corresponde ao espírito do constituinte e pode, caso aprovado, comprometer o princípio de que a educação é um direito de todos.
Continuaremos refletindo sobre a relação entre público e privado nos textos do PNE em debate no Congresso Nacional. Hoje me deterei na análise da redação oferecida pela relator da matéria na CAE do Senado, inscrita no parágrafo 5º do artigo 5º do substitutivo aprovado por aquela comissão.
O texto é o seguinte:
Artigo 5º ..........................................................................
§ 5º O investimento público em educação a que se refere o art. 214, inciso VI, da Constituição Federal, engloba o dispêndio total em educação pública, os recursos aplicados na forma do art. 213 da Constituição Federal, bem como os recursos aplicados nos programas de expansão da educação profissional e superior, inclusive na forma de incentivo e isenção fiscal, as bolsas de estudos concedidas no Brasil e no exterior, e os subsídios concedidos em programas de financiamento estudantil para garantir o acesso à educação.
E aqui é apresentado um debate jurídico instigante. Na primeira parte do texto há a inclusão nos cálculos dos investimentos educacionais dos “recursos aplicados na forma do artigo 213 da Constituição Federal”. Este artigo tem a seguinte redação:
Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que:
I - comprovem finalidade não lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação
II - assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao poder público, no caso de encerramento de suas atividades
§ 1º Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando, ficando o poder público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade.
§ 2º As atividades universitárias de pesquisa e extensão poderão receber apoio financeiro do poder público.
Somente entidades “comunitárias, confessionais ou filantrópicas” poderiam ser beneficiadas por esta medida, mas a mesma seria a exceção. Também o constituinte permitiu, também em caráter transitório, a concessão de bolsas de estudos no ensino fundamental e médio, “quando houver falta de vagas”, deixando claro que o poder público deveria reverter tal insuficiência por meio de investimentos em sua própria rede.
Há intensa polêmica de como a legislação subseqüente lidou com o detalhamento do que seriam estas entidades passíveis de recebimento de recursos públicos, ocorrendo um constante alargamento da brecha de financiamento ao setor privado. Tal situação é evidente na caracterização do que vem a ser uma instituição comunitário no ensino superior.
Acontece que o substitutivo da CAE do Senado vai bem mais além. Utilizando a expressão “bem como”, ou seja, incluindo assuntos não cobertos na sentença anterior, inclui “os recursos aplicados nos programas de expansão da educação profissional e superior, inclusive na forma de incentivo e isenção fiscal, as bolsas de estudos concedidas no Brasil e no exterior, e os subsídios concedidos em programas de financiamento estudantil para garantir o acesso à educação”.
No meu entender não podem ser incluídos como recursos educacionais o rol listado pelo relator. Explico o porquê:
1. O artigo 213 da CF é claro: somente pode receber recursos públicos entidades comunitárias, confessionais e filantrópicas que cumpram as duas exigências constantes dos seus incisos. Não se enquadra nesta definição as entidades particulares, com fins lucrativos que são beneficiadas de isenção fiscal em troca de bolsas do PROUNI.
2. As bolsas do PRONATEC não são para ensino fundamental e médio e seus beneficiários incluem também entidades privadas não cobertas pela redação do artigo 213 da CF.
Mas o que devemos discutir na essência é a destinação prioritária do fundo público. A brecha constitucional não pode ser transformada em avenida preferencial de oferta do ensino na próxima década, situação que é favorecida pela redação oferecida pelo substitutivo da CAE do Senado. Ao ampliar o indicador o texto está incentivando a migração de recursos das escolas públicas para uma miríade de escolas privadas.
Em sua fundamentação, em um lampejo de sinceridade, o relator apresenta a sua visão sobre esta polêmica. Para o senador Pimentel a atuação do setor privado é indispensável, termo que não encontra guarida no artigo 213, por que coloca em pé de igualdade de essencialidade o público e o privado.
Na verdade, por trás da mudança do conceito de “direto” para “total” se esconde uma concepção de compartilhamento da futura oferta escolar prevista no PNE com o setor privado e, por conseguinte, incremento dos subsídios a este setor, seja na forma de isenção fiscal, bolsas ou conveniamento.