Democracia?
Democracia? Sim, já ouvi falar.
Pablo Capistrano*
Cansei de repetir para meus alunos, durante os sete anos que lecionei no curso de Direito da FARN (hoje UNI-RN) o velho brocado romano que dizia: “nem tudo que é legal é honesto”.
E uma das honestidades que muitas vezes não combina com a ordem legal é a verdade. Isso porque, como muita gente já percebeu, todo poder é uma performance. O poderoso não tem o poder. Como um ator, ele interpreta o poder de uma ordem da qual ele é o representante. Por isso dois acontecimentos bastante sintomáticos nos ajudam a pensar sobre a realidade da ordem democrática brasileira.
O primeiro foi a fala do presidente do STF, Joaquim Barbosa, para alunos do Instituto Superior de Educação em Brasília. O ministro disse que no Brasil os partidos políticos eram “de mentirinha”, que não tinham consistência programática e que nosso Legislativo era historicamente submetido ao Poder Executivo. Ora, o que o ministro disse foi uma obviedade que qualquer calouro do curso de Ciências Sociais da UFRN aprende logo no primeiro semestre.
Não é necessária nenhuma exegese filosófica mais sofisticada ou pesquisa profunda sobre as catacumbas políticas do país para saber que o ministro não mentiu; apenas constatou uma verdade que paira na superfície da consciência nacional. Mas não foi a fala do ministro para os estudantes que realmente trouxe algo de significativo para entender a natureza ideológica da nossa ordem democrática. O mais interessante foi a justificativa feita em nota oficial do presidente do STF. A nota explica que o ministro falou em um contexto acadêmico, marcado pela liberdade de reflexão teórica que o permitiria tecer comentários sobre a ordem política nacional. Ali não falava o presidente do STF, mas o professor Joaquim Barbosa, o jurista Joaquim Barbosa, o bacharel em Ciências Jurídicas Joaquim Barbosa, cidadão brasileiro.
A nota foi muito mais revolucionária do que a fala do ministro porque aponta para o fato de que a verdade sobre a política brasileira se diz em um contexto acadêmico e a mentira ideológica da ordem democrática se mantém no discurso oficial no meio das falas decoradas para ornar as liturgias dos cargos da nossa República.
A ironia da nota é que ela mostra aquilo que procura esconder justificando que o ministro, presidente do STF, estava em uma zona de exclusão ideológica que o permitiria dizer a verdade para seus pares. Tal qual um Trasímaco que interrompe o diálogo de Sócrates com seus amigos, no livro I da República, Joaquim Barbosa passou o bizu aos alunos do curso de Direito. Ele quebrou o protocolo e a performance do poder para dizer aquilo que todos sabem mas que não podem saber que sabem.
O outro fato ocorreu aqui em Natal, na nossa província ensolarada, balneário tropical deste Atlântico de Copa do Mundo. Enquanto o Falcão da banda O Rapa, (patrocinado pela Fiat) chama os cidadãos brasileiros a ocupar as ruas para torcer pela seleção na Copa das Confederações, os estudantes natalenses fecham mais uma vez a BR-101 para protestar contra o aumento das passagens de ônibus.
Qual a reação do Estado, em suas instâncias oficiais? Ato 1: jogou a polícia sobre os estudantes, baixando a porrada na rapaziada acuada embaixo do Viaduto do Quarto Centenário. Ato 2: infiltrou essa mesma polícia em uma plenária na UFRN, realizada para discutir o movimento, marcando sua presença na tal “zona de exclusão acadêmica”, que em tese deveria ser um espaço livre para que as verdades escondidas pela ideologia hegemônica (o que é uma redundância) pudessem ser ditas. Ato 3: por seu braço judiciário, emitiu uma ordem de prisão a qualquer manifestante que interrompesse o tráfego na BR-101.
Como na nota do STF, esse comando judicial é muito interessante, porque depõe contra a ordem que busca justificar. Como um ato falho de um paciente em uma sessão de psicanálise, o Poder Judiciário ajudou a população a entender a natureza fajuta da ordem democrática que diz proteger. O argumento é mais ou menos esse: “todos têm o direito de demonstrar seu descontentamento e protestar, contanto que não perturbem a ordem nem prejudiquem os outros”.
O que essa frase diz na verdade é: “todos tem direito de demonstrar descontentamento e protestar, contanto que seu protesto seja inofensivo e não surta efeito”. Como um pai autocrático, a ordem instituída diz ao povo: “vocês são livres para fazer o que quiserem, contanto que não façam aquilo que eu desaprovo”.
Com a desculpa de proteger o direito dos outros contra uma minoria, o mesmo Poder Judiciário que deixa quadrilhas de corruptos soltas por aí (uma minoria que perturba o direito dos outros) ameaça com a espada da Justiça setores da população que, como o cidadão Joaquim Barbosa, não acreditam mais nas instâncias partidárias tradicionais e nos caminhos institucionais.
Amigo velho, por mais bem construído que seja, o discurso que esconde o autoritarismo de uma sociedade controlada pelo Estado e pelo mercado tem suas brechas. É preciso ficar esperto quando essas brechas se tornam evidentes, porque, como dizia o velho e totalitário camarada Mao, “há uma grande desordem sob o céu; a situação é excelente”.