Universidade e reforma
Universidades: uma visão cética sobre a possibilidade de reforma
Antonio Piso
Existem muitas maneiras de se avaliar a situação das universidades – e nesse termo plural e genérico eu incluo tanto as públicas (IFES) como as privadas (IPES) – e a minha será apenas uma visão pessoal, de quem estudou em universidade pública, ensinou em universidade privada e compartilha, com a imensa maioria de “universitários” – ou, se preferirem, “acadêmicos” – uma nítida sensação de que elas passam, no Brasil, por uma fase de transição, tanto mais dramática quanto é difícil a situação das universidades públicas e mais “agressiva” a ofensiva das privadas sobre um “mercado” anteriormente dominado pelas primeiras. Eu poderia ter escrito, no título, o adjetivo “pessimista”, em lugar de “cética”, se pretendesse expressar unicamente o ponto de vista das universidades públicas, mas como é público e notório que elas não dominam mais o campo do ensino de terceiro ciclo em exclusividade ou predominância, o ceticismo pretende significar as dúvidas que entendo pairam sobre a evolução futura, ou possível, desse campo de estudos em face dos muitos imponderáveis que se colocam hoje no Brasil, em termos de políticas públicas (regulatórias e indutoras) suscetíveis de serem aplicadas ao terceiro ciclo.
Eu poderia, igualmente, ter utilizado o substantivo “crise” para falar das universidades, mas o fato é que essa noção teria de se referir exclusivamente à situação das universidades públicas, pois me parece, e todos deveriam concordar comigo, que as privadas vão muito bem, obrigado. De fato, os últimos anos, talvez a última década e meia, assistiu à mais dramática expansão do setor privado no campo do ensino de terceiro ciclo, não porque as privadas tenham “roubado clientes” do setor público, mas tão simplesmente porque este se eximiu – ou sejamos bondosos, não foi capaz – de acompanhar o ritmo do crescimento da demanda (mas ele reteve, de todo modo, sua “clientela habitual”, que sempre foi constituída por jovens de classe média e alguns representantes das chamadas classes subalternas). O que o setor privado fez, assim, foi tão simplesmente responder à enorme demanda por ensino especializado por parte de centenas de milhares de jovens que não tiveram chance – por deficiência próprias de formação, mas muito mais por inexistência de vagas nas IFES – de ingressar no setor público, inclusive porque este não oferece cursos noturnos em número suficiente para quem precisa trabalhar (que é, reconheçamos, a situação da maioria dos jovens).
O problema da universidade pública
Eu não diria que a universidade pública tem “um problema”, pois ela tem vários, mas eu também arriscaria dizer que ela “é o problema”. De fato, para ser absolutamente sincero, eu diria que a universidade pública não tem conseguido responder às funções e responsabilidades para as quais foi criada. Essas funções são basicamente três: formar profissionais do ensino, fazer avançar o estado da ciência e da técnica e transferir o conhecimento produzido para o conjunto da sociedade, em especial para as empresas e instituições que sustentam, com os impostos pagos, o sistema universitário.
As IPES também participam, de certa forma, desse conjunto de funções, mas como elas constituem um “negócio”, seu modo de financiamento as desobrigariam, em princípio, de atender ao terceiro requisito e, parcialmente, ao segundo. De fato são elas que, hoje, em dia, estão formando o essencial do pessoal dedicado ao ensino nos três ciclos, já que a participação das IFES nesse mercado tem declinado substancialmente, tanto em termos quantitativos como, talvez, qualitativos. O “problema” começa justamente por aí.
Surpreende-me – e de certa forma acho risível – ver tantos dirigentes de IFES se levantar indignados contra a “mercantilização” do ensino superior, se lançar ativamente em campanhas contra as negociações em torno da liberalização dos serviços educacionais no âmbito da OMC, participar de um processo de discussão que se pretende sério “contra a mercantilização do ensino superior”, e deixarem de reconhecer uma verdade tão cristalina quanto incontornável: o ensino no Brasil, em todos os níveis, já foi, inclusive com a colaboração involuntária das IFES, irremediavelmente “contaminado” pelo processo de “mercantilização” e assim deverá continuar pelo futuro previsível. Este não é o problema, já que essa mercantilização corresponde inteiramente a uma resposta da sociedade ao abandono pelo Estado de sua função precípua de formar jovens e oferecer oportunidades de profissionalização especializada.
O problema começa quando as IFES – e aqui eu falo exclusivamente das IFES – não respondem às funções para as quais foram criadas. Ora, direis, elas não o fazem por que não lhes são dados os meios para tanto: elas carecem de professores, de salários condignos, de condições mínimas de trabalho, de equipamentos fixos e de bens de consumo corrente, de recursos financeiros, enfim, com os quais cumprir essas funções. Tudo isso pode ser verdade, mas só o é parcialmente, pois que muitas unidades de IFES conseguem “se suprir” e se “auto-financiar” com base em soluções inovadoras que conseguem, justamente, contornar as dificuldades do financiamento oficial. Ora, se algumas o fazem, como sabem todos aqueles que freqüentam os campii, por que não as demais, por que não todas, por que não o conjunto das IFES? Por preguiça, por uma sensação (talvez até justa) que não lhes cabe prover os próprios meios de existência quando essa responsabilidade incumbe ao Estado?; por um sentimento de que não o podem fazer, já que os professores são “servos do Estado”, a eles estão ligados por um contrato de exclusividade – a tal de “dedicação exclusiva”, que de dedicação guarda hoje poucos traços e de exclusiva muito menos – que os impediria de se dedicar a atividades vulgarmente lucrativas ou simplesmente “remunerativas”? Ou será por que o hábito ancestral e as estruturas hierárquicas os impedem de pensar em soluções inovadoras, preferindo a maioria esperar a solução do alto e das mais altas esferas?
Provavelmente será por uma combinação de tudo isso, e não pretendo entrar em considerações pessoais ou corporativas sobre a forma de organização funcional das IFES e os fatores letárgicos que as impedem, hoje em dia, de buscar soluções razoáveis para os seus problemas mais graves. Esses problemas são graves, e eles estão justamente impedindo as IFES de cumprirem as funções de seu “contrato social”, aquele implícito no pacto original que as faz receber recursos da sociedade em troca de prover esta última com professores, com profissionais de pesquisa e com soluções para os problemas enfrentados quotidianamente por essa mesma sociedade.
A ouvir certos dirigentes da corporação universitária pareceria que o único “problema” das IFES, a “fonte da crise” se ouso dizer, seria a falta de recursos e que uma vez suprida essa carência puramente financeira todo o mais se encaixaria no mais perfeito dos mundos, os universitários se recolheriam calados e satisfeitos aos seus cenáculos ou laboratórios universitários, os estudantes estariam contentes com a boa disposição dos professores em novamente dar aulas “normais” e a sociedade também deixaria de se preocupar com a “situação calamitosa” das mesmas. Triste engano, pois as famílias de classe média (ou de quaisquer outras classes) continuaram a reclamar da falta de vagas, da “má situação do ensino”, da inadequação do conteúdo ao mundo real, da inexistência de cursos em número e horários suficientes para atender toda a demanda, assim como a indústria continuaria, possivelmente, reclamando da falta de atenção aos seus problemas concretos, e os dirigentes públicos continuariam talvez lamentando a falta de um ou dois prêmios Nobel, o que confirmaria a excelência da pesquisa paga com recursos públicos e os confortaria no “justo retorno” por tantos e tão largos investimentos feitos nas IFES durante décadas a fio.
Ou seja, o provimento de recursos, a supro que ele seja factível nos volumes demandados pela classe universitária, apenas restabeleceria o status quo ante, a situação conhecida de todos, na qual a universidade pública continua ocupando um espaço cada vez menor no ensino e na formação de profissionais, ainda que preserve virtualmente intocada sua hegemonia na pesquisa e na produção de ciência (com cada vez maior concorrência na extensão e gradativamente nas soluções empresariais de intensidade média em conteúdo tecnológico). Provimento de recursos, ou financiamento das IFES, este parece ser o grande problema da universidade pública.
Supondo-se que isto seja verdade, bastaria então que a sociedade se dispusesse a novamente lançar sua mão ao bolso – pois é do bolso da sociedade que saem os recursos públicos, todos os recursos públicos – e, fiat, a universidade reencontraria a paz dos campii, da qual ela nunca deveria ter saído para protestar ruidosamente pelas esplanadas e avenidas de nossas principais cidades. Acho que o problema está justamente aqui.
Parece que a sociedade, isto é, os representantes parlamentares e os dirigentes do executivo, não está mais disposta a continuar colocando dinheiro no saco sem fundo das IFES, seja por que esse dinheiro não existe, simplesmente – e creio que estamos muito pertos disto – seja por que, talvez, pela primeira vez em muitos anos ·– que digo?, talvez décadas e por que não séculos? –, a sociedade pretenderia privilegiar outros ciclos da educação, que nunca tiveram, como a universidade, tantos mundos e fundos com os quais construir um aparato educacional de certa forma invejável no conjunto do terceiro mundo. Digo isto porque o Brasil, de todos os países em desenvolvimento, aparece com destaque no mapa da ciência universal, junto com a Índia e poucos outros, responsável que é por mais de 1% da pesquisa relevante publicada – aquela que comparece nos citations indexes especializados –, o que confirma, portanto, a relativa excelência da corporação engajada em produção de ciência das nossas IFES (e algumas poucas privadas, como as católicas, mas crescentemente também várias “indústrias universitárias” privadas).
Será que esse “aparato científico” razoavelmente bem estruturado encontra-se agora ameaçado de retrocesso, estiolamento ou até desaparecimento por causa da “crise universitária”? Talvez, mas não creio em absoluto, pois que as fontes de financiamento para a pesquisa têm-se mantido em volumes razoáveis e os próprios pesquisadores têm buscado os já referidos mecanismos inovadores de complemento às verbas oficiais, fazendo associações e prestando serviços como forma de suprir carências localizadas. As ciências humanas, sim, parecem sofrer, e muito, com a falta de recursos, talvez porque elas disponham de poucos “produtos mercadejáveis” ou porque elas transacionam num mercado mais “difícil” do que aquele freqüentado pelas suas irmãs exatas ou biológicas.
O que eu quero dizer, em todo caso, é que o dinheiro esperado como um “maná dos céus” pelas IFES talvez não venha desta vez, e mesmo que ele venha, provavelmente será tachado de insuficiente e “amarrado” em condicionalidades estritas. Acho que vai ser isto mesmo, e por mais que se agitem as autoridades educacionais e a comunidade universitária, por mais que elas concordem em torno de “soluções geniais” ao “problema” das IFES –·inclusive essa “genial idéia” de fazer mais uma loteria, como se isso não fosse introduzir mais uma colher no mesmo caldeirão –, elas irão se confrontar ao mesmo muro de todos conhecido hoje: o orçamento federal dispõe de poucos recursos suplementares, se algum, para transferir para as IFES, a menos que se comprimam gastos em alguma outra área (o que sempre é possível, dependendo da capacidade “extrativa” da elite universitária).
Sinceramente, eu não creio que o “problema” esteja apenas nisso, e não creio que o “problema” se esgote com qualquer solução financeira, por mais imaginativa que fosse. O problema maior é que as universidade públicas, e eu diria até o próprio Estado, já não são capazes de responder às necessidades da sociedade nos estreitos limites em que foram concebidas e nos quais se encontram funcionando. Seria preciso introduzir reformas estruturais, nos quais flexibilidade contratual, administração independente de recursos e cobrança por desempenho – que constituem a própria base da tão alegada, desejada e incompreendida “autonomia universitária” – fosse as bases de um funcionamento diferente do que temos hoje.
Assim, qualquer “comissão governamental” – inclusive com participação das próprias IFES – que se dedique a resolver a “crise universitária” apenas pelo seu lado orçamentário ou financeiro, estará ipso facto condenada ao fracasso, mesmo que consiga acalmar, ou calar, temporariamente os reclamos dos universitários (até a próxima “crise”, obviamente). Como não acredito que haverá dinheiro suficiente para acalmar ou calar nossas elites universitárias, minha conclusão lógica é a de que o problema continuará a persistir pelo futuro previsível, E como não acredito que as elites universitárias estejam dispostas a enfrentar o touro pelos cornos, isto é, resolver de verdade todos os problemas de (mal) funcionamento das IFES, só posso concluir, igualmente, que o problema continuará agudo, de crise em crise, até mergulhar as IFES numa decadência ainda maior do que a enfrentada atualmente.
Faço aqui um parênteses para explicar minha acepção de “elite universitária”. Em meu entendimento, ela é constituída por aqueles professores que acumularam suficiente experiência didática e “longevidade” institucional – inclusive em termos de pesquisa e extensão – para reivindicar uma visão geral da universidade, para conectar essa visão com o papel social da universidade e de sua missão pública e para dialogar com as autoridades e a sociedade em tornos dos problemas universitários de modo racional e consentâneo com um justo equilíbrio entre demandas e possibilidades. Excluo, portanto, dessa definição, todos aqueles que se apresentam como “representantes da classe”, que são, geralmente, responsáveis sindicais, de tendências fortemente corporativas, que nada mais fazem senão reivindicar, por vezes de modo agressivo e vocalmente estridente, direitos, vantagens, benefícios e ganhos reais, sem quaisquer contrapartidas em termos de atendimento de critérios sociais ou de retorno público pelas vantagens auferidas. Eles também têm legitimidade e fazem parte do “jogo universitário”, mas não me parecem suscetíveis de serem integrados à categoria que aqui chamei de “elite universitária”.
Faço outro parênteses para dizer que as IPES também têm um problema, ou vários problemas. O mais óbvio parece ser o da sua “qualidade” em relação a seus “custos”, ainda que ambos fatores sejam variáveis e mutáveis, sobretudo, justamente porque os princípios de mercado valem para elas mais do que para as IFES (que podem permitir-se ignorar certas realidades desagradáveis, como a de que “não existe almoço grátis”, e que se alguns recebem um serviço sem, aparentemente, nenhum pagamento ou remuneração, é porque outros estão pagando por isso). Essa (má) qualidade das IPES (não de todas) pareceria para alguns como excesso de leniência estatal – que eventualmente não cumpre sua função reguladora e controladora – ou mesmo como o reflexo inescapável da “ação dos mercados”, quando bastaria lembrar que mais mercado traria justamente a solução para alguns desses problemas. Ou alguém recusaria a realidade de que a eventual entrada, no mercado universitário brasileiro, de entidades estrangeiras como Harvard, Yale ou Wharton, para citar apenas algumas, levaria inevitavelmente a uma elevação dos padrões de qualidade de todas as demais já presentes, que passariam a enfrentar a nova concorrência de marcas de prestígio como essas?
Concluindo com o “problema” universitário, ouso arriscar um itinerário para as IFES, no futuro imediato (e de médio prazo): elas continuarão reivindicando seus “direitos” numa situação de virtual impossibilidade fiscal e orçamentária de atendimento, uma vez que o Estado como um todo não se encontra em situação melhor do que elas. Seu destino é, portanto, a “decadência”, aqui considerado um fenômeno de erosão física de suas possibilidades de funcionamento, não necessariamente uma “decrepitude moral”.
A “decadência universitária” continuará, portanto, a se manifestar na ausência de “salários condignos”, na inexistência de “condições mínimas” para o exercício das atividades de ensino e de pesquisa, na carência dos “investimentos necessários” para o próprio cumprimento das funções básicas da universidade, que continuará, assim, a fugir às suas missões básicas e à sua responsabilidade social. (Parênteses: o leitor pode incluir nas “ausências” todas as demais reivindicações de que tiver lembrança como sendo feitas pelo “establishment” universitário, o que inclui as “elites”, mas também os responsáveis sindicais e simples “militantes de base”.) Mas, a “decadência” também pode significar erosão moral e abandono espiritual, com uma crescente alienação dos professores e outros responsáveis universitários em relação aos seus deveres funcionais e responsabilidades sociais, ao estilo da decrepitude e senescência que atingiu o socialismo real em sua fase agônica de crise final e desaparecimento.
Por certo, a universidade pública não vai desaparecer – não se liquida uma instituição quase milenar, em escala mundial, apenas com base em uma crise financeira –, mas ela será transformada em uma instituição complementar às IPES, em termos de ensino e formação de profissionais, e suplementar aos laboratórios privados e aqueles funcionando em regime associativo, no que se refere à pesquisa e produção de ciência e tecnologia. É claro que essa transformação não se dará sem importantes reflexos em sua missão social e em suas responsabilidades públicas, mas ela será inevitável tendo em vista a impossibilidade atual de corresponderem as IFES ao que delas se espera em termos de atendimento das demandas sociais.
A menos que elas se encerrem em si mesmas, com o que a decadência – e aqui eu falo de decadência real, não a puramente orçamentária – é inevitável, as universidades precisam urgentemente pensar em como superar os impasses atuais, e precisam fazê-lo urgentemente. A primeira condição é, obviamente, reconhecer os “problemas”, e também reconhecer que elas são parte do “problema”. A segunda condição é o desejo de se auto-reformar, dando início, assim, a um processo demorado, lento e necessariamente custoso, quando não cruel e frustrante, de reconstrução material, institucional e moral da instituição universitária. Como não creio que isso ocorrerá, há uma forte presunção de que o meu ceticismo se transforme em pessimismo em futuro não muito distante. Isto porque eu sinceramente acredito que o “mercado” – esta entidade tão conspurcada em certos meios universitários – constitui parte do problema, o que é inevitável em face da demanda não atendida, como referido anteriormente, mas também constitui uma parte, senão a maior, da solução, como agora veremos.
Alguma solução à vista?
Ainda que muitos colegas acadêmicos – e eu me permito chamá-los assim pois que sou também e principalmente um acadêmico, mesmo se alguns deles por certo não me considerarão como um seu “colega” – tenham dificuldade em aceitar essa realidade, o mercado é responsável em grande medida pelos problemas da universidade pública e será, quer eles queiram, quer não, responsável em grande parte pela solução desses mesmos problemas.
Não falo de um mercado abstrato, aquele que aparece nos livros das ciências humanas, envelopado em vagas conceituações marxistas e suficientemente afastado das realidades quotidianas da IFES para ser irresponsavelmente (mas não impunemente) ignorado pela maior parte dos universitários. Com efeito, vivendo de um salário garantido no final do mês, o que lhes é assegurado pela estabilidade funcional, a maior parte desses universitários pode se dar o luxo de “ignorar” o mercado, achando que ele só existe para o setor privado, ou para o público lá fora (ele tampouco existiria, a crer em certos discursos acadêmicos, para o próprio Estado, que poderia se permitir ignorar o mercado ou, quem sabe até?, moldar-lhe os contornos). Os universitários só encontram o chamado “mercado” quando vão fazer compras no supermercado, ou adquirir um carro ou uma casa, caso no qual o “mercado” recebe epítetos horrorosos, uma vez que parece estar sempre além das modestas possibilidades salariais dos professores universitários.
Não me refiro a esse mercado imaginado ou desprezado pelos universitários, um mercado ideal, que só parece existir nos livros universitários. Refiro-me aos mercados reais, aqueles nos quais vivem a imensa maioria dos brasileiros (e cidadãos planetários), inclusive os universitários – embora muitos deles disso não gostem – e que repercutem na vida quotidiana de todos eles, desde a maternidade até a cova. O mercado está presente em cada uma e em todas essas fases da vida humana, quer disso gostemos ou não e ele não pode ser ignorado por ninguém, a fortiori pelos dirigentes públicos que têm condições de influenciar concretamente os mercados nos quais vivemos enquanto cidadãos de uma dada territorialidade e de um determinado espaço público, que pode ser o do Estado federal ou das administrações locais. O Estado não pode ignorar o mercado porque é dele de onde vai retirar os recursos com os quais pagar os seus funcionários – aqui incluídos os universitários das IFES – e para dar um retorno, por mínimo que seja, à sociedade, em termos de serviços e investimentos públicos, por tudo aquilo que ela provê, na forma de impostos, taxas e contribuições, ao mesmo Estado. Se esse mercado, isto é, se a economia real for dinâmica, pujante, em expansão, pode-se prever, ipso facto, um Estado rico e, portanto, funcionários – inclusive os universitários – bem pagos. Se, ao contrário, a economia, ou o Estado, ou ambos funcionarem mal, não crescerem e não tiverem dinamismo, não é difícil prever a existência de funcionários mal pagos – nem sempre – ou, o que é mais freqüente, péssimos serviços públicos ou pouco, ou quase nenhum, investimento público, em vagas universitárias, por exemplo.
Não estarei dizendo nenhuma novidade se argumentar que muitos dos problemas atuais da universidade pública se devem a esse mal funcionamento do mercado, ou melhor da economia – porque o mercado sempre funciona, justamente para refletir o mau estado da economia – no Brasil, e com ele a péssima situação do Estado, mas esta não pode ser uma boa correlação causal. Explico. Os mercados podem estar funcionando mal, no Brasil, por excessiva interferência do Estado, daí o baixo crescimento econômico. Antes que alguém me acuse de neoliberal, posso também argumentar que o Estado só está funcionando mal, atualmente, devido a duas décadas de baixo crescimento, de crises financeiras, de recorrentes impulsos inflacionários, de irrealismo cambial, de excesso de endividamento interno e externo, ademais de outros problemas como má gestão pública, corrupção administrativa, espoliação imperialista, ou seja o que mais for como explicação conveniente, segundo a ideologia do cliente, para traduzir a situação atual. Qualquer que seja a sua própria escolha, você concordará comigo em que a universidade está sofrendo as conseqüências dessa “crise estrutural” ou “situação conjuntural” e bastaria, assim, resolver esses “grandes problemas” para que a situação da universidade pública começasse a melhorar.
Pode até ser, mas eu não acredito que seja assim tão simples. A “decadência universitária” não tem uma causa direta na crise do Estado, ou no baixo desempenho da economia, mas se situa na razão direta do seu afastamento dos “mercados”. O primeiro mercado que interessa à universidade é, obviamente, a sua clientela cativa, isto é, os jovens egressos do ensino médio, que buscam no aperfeiçoamento de terceiro ciclo uma melhor preparação para enfrentarem, mais adiante (ou ao mesmo tempo, no caso daqueles que já trabalham), o mercado real do emprego, da renda, da realização profissional. Como a própria universidade absorve uma fração mínima dos seus formandos, é óbvio que a maior parte deverá encontrar colocação no setor privado, uma vez que o Estado também só poderá absorver uma parte menor da população economicamente ativa (aqui uma proporção variável, entre menos de 1% em certas sociedades, até 25%, isto mesmo, uma quarto da PEA, no caso da França).
Esse primeiro mercado é formado, portanto, pelos candidatos ao ensino superior. Ora, não é segredo nenhum que, no Brasil, as IFES acolhem hoje menos de 15% da clientela potencial desse “mercado universitário”. Não cabe aqui discutir por que elas não o fazem, apenas constatar essa realidade. A expansão da demanda não foi correspondida pela expansão concomitante da oferta pública, razão pela qual o “mercado” “resolveu” esse “problema” pela expansão contínua das vagas nas IPES. O Estado apenas sancionou esse estado de fato, ao viabilizar a criação dessas vagas, sem o que ele estaria faltando ao compromisso básico de oferecer “serviços” educacionais ao conjunto da população demandante. As IPES prosperaram e se enriquecerem, como parece normal, nesse vácuo do Estado e da IFES, nem sempre para o melhor proveito e formação dos demandantes, mas isso caberia ao Estado, minimamente, garantir que o serviço fosse razoável. Se ele exime dessa tarefa igualmente, a clientela fica exposta ao “mercado selvagem” dos capitalistas do ensino superior. No Brasil existe, como sabemos todos, uma saudável anarquia nessa área. Digo saudável porque o Estado não tem condições mínimas de ser o controlador que gostariam muitos, daí a qualidade desigual do ensino de terceiro ciclo nas IPES (mas isso vale para muitas IFES também).
Não creio que se descobrirá uma solução muito diferente para os problemas do terceiro ciclo no Brasil: ele continuará a ser feito pela via do mercado, com demanda insatisfeita no caso dos “mercados públicos” e razoavelmente bem atendida (mas que pode ser “insatisfeita”, do ponto de vista da qualidade) no caso dos “mercados privados”. As vias de acesso continuarão a ser o que são, mas variações podem ser “inventadas”: em lugar de um vestibular pelo mérito exclusivo, uma avaliação seriada, ou um exame geral de conclusão do ensino médio, com classificação vinculada às ofertas existentes nas diversas categorias de cursos. Para os que dizem que o vestibular não é democrático, por selecionar apenas os privilegiados da classe média, eu diria que ele é, provavelmente, o pior de todos os sistemas, à exceção de todos os demais, pois se trata de uma seleção que deve funcionar exclusivamente por mérito, independentemente da origem do candidato. O problema da desigualdade nas chances de entrada tem de ser resolvido pela ação do Estado – aqui eu tenderia a dizer exclusivamente – nos dois primeiros ciclos de ensino, ou, futuramente, num grande ciclo fundamental que resolvesse o problema do ensino preparatório e o de cunho profissionalizante.
Faço esta última distinção porque acredito que, a despeito do seu nome, a universidade não é, não pode ser, nem nunca será “universal”: ela sempre será algo de elite, ainda que essa elite possa representar a maior parte da população na faixa etária dos 18 aos 25 anos (nos EUA, por exemplo, ela já alcança algo como 60% dessa faixa). Por isso programas do tipo “universidade para todos” constituem um equívoco semântico ou uma demagogia política, mormente num país que “recolhe” apenas 5% da população potencialmente “universitariável”.
Resumindo essa parte: se as IFES não conseguem responder às demandas de mercado, e estas são reais e prementes, por mais que essa realidade seja recusada por certos “universitários”, melhor fazer com que IFES e IPES trabalhem juntas na busca e no encaminhamento das melhores soluções (de mercado) para essa demanda potencial. O papel do Estado é imprescindível nesse particular, e será tanto mais positivo quanto seus agentes não mantiverem preconceitos anti-mercado e não pretenderem que o Estado se substitua ao mercado quando e onde ele não pode manifestamente fazê-lo.
O destino da educação superior no Brasil está irremediavelmente vinculado à existência de IPES em número e qualidade suficientes para atender à demanda existente e aquela potencial (já que não é novidade nenhuma dizer que o Estado tampouco será capaz de expandir a “sua” oferta daqui para a frente). Por isso soam patéticas, quando não irrealistas, ou simplesmente risíveis, essas declarações de dirigentes de IFES dirigidas contra a “mercantilização” do ensino superior. Este, assim como os demais níveis, há muito foi “mercantilizado”, no bom e no mau sentido, e continuará a sê-lo pelo futuro indefinido, por incapacidade das IFES e do Estado de atender à demanda do mercado.
Tocando agora nas condições de ensino e pesquisa, assim como na produção de ciência e tecnologia, parece evidente, também, que as IFES não estão atendendo, longe disso, à demanda dos mercados, aqui referidos como procura por profissionais bem formados, por ciência de boa qualidade e sobretudo por tecnologia adaptada às necessidades e aos requerimentos do setor privado (como, de certa forma, do próprio setor público, que vai buscar na iniciativa privada, não nas IFES, a resposta para alguns dos seus problemas gerenciais e de funcionamento para resultados). Admitamos que elas ainda produzem a maior parte dos profissionais de alto níveis (letras “A” e “B” de qualquer programa fiável de avaliação de desempenho educativo) e admitamos também que elas produzem, igualmente, o essencial da pesquisa científica de alto nível, inclusive aquela suscetível de ser transformada em tecnologia.
Ainda que essa realidade seja efetiva, e aferida, ela o é cada vez menos, e o será cada vez menos, tendo em vista que as IFES já não estão mais atendendo os mercados no volume e na qualidade necessária às suas demandas. Muitos executivos já são recrutados em escolas de comércio e de administração do setor privado e ainda que os universitários das IFES possam argumentar que tudo isso é muito natural, não se pode deixar de reconhecer uma certa perda de prestígio para elas. As IFES, dizem eles, não podem se converter em “supermercado” de profissões, onde o setor privado vai buscar o que necessita: elas precisam “voltar a ser o espaço das idéias, do saber, da contestação, da ‘especulatio’, do pensamento e da construção do futuro”.
Tudo isso é muito bonito, mas não funciona na prática: se as IFES não produzem os profissionais de que necessitam as empresas privadas, os “seus” representantes no Congresso – e eles existem, por certo, como existem os representantes dos universitários – serão menos e menos propensos a votarem créditos para as IFES, uma vez que elas não produzem, justamente, os quadros necessários à “acumulação ampliada do capital” (como diriam, depreciativamente, alguns desses universitários). Pode-se protestar contra os “mercados”, mas eles vão se vingar mais adiante, se já não o estão fazendo hoje, como parece manifestamente o caso.
Alguns, ainda mais “especulativos”, poderão argumentar que não cabe à universidade se “moldar à realidade: ela deveria buscar meios de mudar a realidade.” Pode até ser, mas até que isso aconteça, a realidade vai aplicar um “corretivo” naquela, deixando-a à míngua e sem recursos públicos (ou privados). Se os universitários acreditam, que a “universidade deve formar profissionais que irão, pacificamente, munidos do saber, mudar a realidade para melhor”, então eu vejo aí um sério problema de miopia e de distanciamento da realidade. Esta não é formada por um saber abstrato ou distanciado do poder e este, como todos sabem, não se constitui com base unicamente no saber, mas mais freqüentemente com base em relações de produção – como ensinam todos os manuais marxistas –, relações que têm na vida econômica – nas “forças produtivas”, diriam esses mesmos manuais – sua instância última de determinação.
As “forças produtivas” necessitam de boa ciência e, sobretudo, de boa tecnologia, e se as IFES forem incapazes de provê-las em quantidade e qualidade suficiente, a solução parece simples: ou as empresas adotam a via da “caixa preta”, geralmente importada – e, portanto, aprofundando a dependência –, ou elas irão buscar o que necessitam em outras instituições, IPES ou seus próprios laboratórios de pesquisa, o que também já está ocorrendo.
Se quisermos fazer uma análise marxista dessa realidade, poderíamos dizer o seguinte: as “relações de produção” nas IFES se tornaram incompatíveis e contraditórias com as necessidades de desenvolvimento das “forças produtivas”. Elas precisam ser mudadas, elas serão mudadas, sob risco de decadência de todo o sistema de ciência e tecnologia construído ao longo de décadas com o dinheiro público, isto é, recursos coletados dos cidadãos e das empresas, os únicos em condições de criar renda e riqueza (ainda que muitos universitários ignorem essa realidade, acreditando que o Estado “cria” recursos financeiros)
Deixo de responder aqui às críticas mais veementes que tenho ouvido no quadro deste debate algo esquizofrênico, algumas alegações do tipo: “a universidade é imorredoura; empresa é coisa do sistema capitalista que vai morrer com o advento do socialismo”. Ou então que “Governo é coisa que vai morrer com o alcance da Utopia”. Não há possibilidade de manter um debate com argumentos desse tipo, que não apenas são profundamente anti-históricos, como beiram o limite da religiosidade política.
Acreditar que a “a universidade seja imorredoura” é ignorar que ela já está sendo transformada pela novas técnicas de elaboração e de transmissão do conhecimento, que mudarão irremediavelmente as velhas fórmulas de ensino e aprendizado. Acreditar, por outro lado, que “empresa é coisa do sistema capitalista” significa ignorar toda a história das atividades econômicas da humanidade, e a dos mercados, antes do advento do modo capitalista de produção, e que certamente sobreviverão a ele, quando desaparecer ou (mais provavelmente) se transformar. Trata-se, como bem evidenciado na terceira frase, relativa ao desaparecimento do Estado com o advento da “utopia”, de algo equivalente a milenarismo utópico, conhecido em tempos recuados da história da humanidade, mas que parece ter sobrevivido incólume até os dias de hoje.
Quer queiram ou não os universitários brasileiros, existem um mercado para tudo e para todos, até para a mais abstrata das ciências humanas, assim como para a música e a literatura de qualidade. Essas áreas não estão condenadas a perecerem de fome ou serem sacrificadas no altar da “mercantilização” universitária (que vai ocorrer, quer queiram ou não os mesmos universitários). Durante muito tempo as determinações dos mercados foram impunemente ignoradas por nossas “elites universitárias”, o que certamente estava em seu direito enquanto “servos do Estado” e seres aparentemente distantes dessas mesmas determinações que incidem e impactam a vida da maioria esmagadora dos cidadãos brasileiros (inclusive, ainda que indiretamente, os mesmos universitários).
Não tenho ilusões, porém, de que uma “solução de mercado” seja buscada pelo atual governo (2003-2005), nem que ela seja aceita pela maior parte (ou que fosse uma parte mínima) dos universitários brasileiros. Conhecedor desses ambientes universitários, tenho a mais absoluta certeza de que os meus argumentos serão absolutamente recusados, escorraçados, ridicularizados, vilipendiados (e o que mais for, em termos de condenação aos infernos) pelos universitários militantes e pelas “almas cândidas” – o copyright da expressão pertence ao filósofo universitário francês Raymond Aron – que freqüentam certos ambientes ministeriais. Não há a menor chance de que argumentos do tipo dos aqui expostos venham a ser considerados nas propostas de reforma universitária em discussão ou em curso de implementação pelo governo. Disso eu tenho certeza.
Tenho também certeza, porém, de que os mercados saberão se vingar, como aliás já o estão fazendo. Basta olhar com binóculos desprovidos de viseiras ideológicas para dentro das IFES e ver o mercado crescendo continuamente (ainda que sob protestos dos incuráveis idealistas e românticos) em vários departamentos e institutos mais propensos a lidar com as realidades dos “mercados”: geralmente as áreas de exatas e biológicas, isto é aquelas mais suscetíveis de se aproximarem de soluções “tecnológicas”, mas também, nas ciências sociais aplicadas, as disciplinas econômicas e administrativas, que respondem mais diretamente às necessidades de gestão e métodos das empresas. Basta compararmos os gabinetes refrigerados e os computadores de última geração dos pesquisadores e profissionais dessas áreas com o ar vetusto, quando não decrépito, das áreas clássicas e humanas.
Mas nada deveria obstar a que também as humanas e áreas afins pudessem se beneficiar de alguma interação benéfica com os chamados “mercados”, desde que elas não recusassem, parece óbvio, essas “relações promíscuas” (aos olhos de alguns). Aliás, não é incomum ver esses profissional se dedicando igualmente ao mercado editorial – isto é, a produção de livros didáticos de boa qualidade, para o mercado comercial, não o universitário – ou fazendo um extra num grupo de música “de mercado”, ao lado da orquestra sinfônica universitária ou pública, para constatar que essa interação já é feita, talvez mais por necessidade do que por convencimento.
Muitos entretêm a ilusão de que, uma vez passada “esta crise universitária” e com as “burras das IFES” repletas novamente – por algum milagre do Espírito Santo do orçamento público – com os generosos aportes e subsídios de algum “governo social”, os universitários das humanas – ou de qualquer outra área – poderão voltar tranqüilamente para sua pesquisa pura, para seu entretenimento filosófico, para suas tertúlias descuidadas no fim de tarde universitário, como se a realidade que as “acomete” hoje – e pelo futuro previsível – não fosse propriamente estrutural, e não mais simplesmente conjuntural.
Os universitários com os quais eu eventualmente dialogar, através deste texto ou por meio de outras interações diretas e indiretas, são livres para aceitar, contestar ou simplesmente ignorar estes meus argumentos. Não pretendo, aliás, manter polêmicas pessoais, tanto porque não tenho hoje, ou por enquanto, nenhum compromisso com a universidade pública. Já me formei em uma delas, razoavelmente boa por sinal, já ensinei em uma universidade privada, e hoje me dedico essencialmente à atividade privada, com alguma incursão ocasional em cursos de duração variada em IPES (e participação irregular em seminários de IFES).
Não mantenho nenhuma má disposição em relação às IFES e acredito mesmo que elas são benéficas e indispensáveis ao processo de desenvolvimento nacional. Apenas acredito, também, que elas não podem ignorar as realidades que são as nossas, as de um Brasil estruturalmente deficiente em matéria educacional (em todos os ciclos, mas não no superior, necessariamente, e sim nos dois primeiros), ainda insuficientemente avançado no campo da pesquisa científica, mas já bastante desenvolvido no plano industrial (ainda que com carência de produção tecnológica própria) e institucionalmente desengonçado, a ponto de o Estado ser o que ele é, hoje: um obstáculo razoável, mas incontornável, no processo de soerguimento de nossa capacidade de crescer de maneira sustentada.
O Estado brasileiro, hoje, absorve uma quantidade satisfatória de recursos sociais – quase dois quintos do PIB é um bom parâmetro em qualquer lugar e em qualquer época histórica –, mas devolve à sociedade uma parte reduzida desse festim arrecadatório, com o que sofrem as IFES, as escolas públicas em geral, e todos nós, simples cidadãos da esfera privada, que necessitamos de segurança, justiça, saúde, infra-estrutura, seguro na velhice e outras coisas mais (que o próprio Adam Smith colocava sob a responsabilidade do Estado, não dos mercados). Não me parece razoável ignorar essas realidades na discussão da reforma universitária, qualquer que seja ela. Fingir de conta que não existem constrangimentos orçamentários, que nosso Estado não é disfuncional para fins de crescimento econômico, que os mercados não existem para a “oferta” e a “demanda” universitária, ignorar essas realidades não contribuirá em nada numa boa discussão em torno da reforma universitária.
Aos que teimam em ver de outra forma, eu diria, em toda honestidade, isto: “boa sorte”, esperando, sinceramente, que o futuro da universidade pública seja radioso, ou em todo caso melhor do que o presente. De minha parte, prefiro ficar com a modesta racionalidade dos mercados. A recusa persistente em considerar limites e condições impostas pelos mercados “reais” ao funcionamento de alguns mercados “públicos” (como o universitário) nos levará a versões pouco diferentes do que temos hoje: a contínua decadência das IFES e uma proliferação inevitável das IPES, num mercado dotado de pouca concorrência efetiva ou institucionalizada para melhorar a qualidade de umas e outras. Continuaremos com cartórios públicos, de um lado, e com cartórios privados, de outro, que se pretendem “universidades”, uns e outros, em detrimento da melhoria da qualidade educacional e dos interesses dos demandantes, os alunos universitários. Minha visão cética diria que teremos exatamente isto, com o que confirmo o título deste texto.
Seria demais esperar uma mudança radical? Provavelmente sim. A julgar pela experiência do Brasil, e de outros países, em meio a difíceis reformas universitárias, a realidade das “lutas corporativas” e dos constrangimentos fiscais faz com que nenhuma reforma ideal consiga ser “imposta”, ou sequer “consensuada”, ainda que se possa disputar até mesmo o que seria uma “reforma ideal”. Do ponto de vista dos universitários, parece claro que a reforma “ideal” é aquela que aumente dotações, se possível infinitamente, com o menor nível de “cobrança” possível, isto é, de vinculação entre ganhos (ou prebendas) e desempenho. Do ponto de vista da sociedade, a reforma “ideal” seria aquele que produziria a melhor universidade possível ao menor custo para ela, se possível sem socialização dos custos, isto é, com receitas estritamente vinculadas aos usuários efetivos (afinas de contas, nem todo mundo deveria ser obrigado a pagar pelo filho universitário de outras famílias, ainda que essa formação possa reverter indiretamente sob a forma de melhores médicos, engenheiros etc.). Entre esses dois extremos, infinitas variedades de reformas universitárias são possíveis e estou certo de que o bom senso acabará (como sempre acaba) triunfando, nos limites do aceitável politicamente e orçamentariamente exeqüível.
Até lá, teremos muita transpiração, alguma inspiração, muito calor e alguma luz nos debates em torno de “uma” reforma universitária possível, que provavelmente não agradará nem aos universitários, nem à sociedade (se é que existe essa entidade etérea e indefinida, em todo caso sem representantes precisos). Espero ter contribuído com uma visão realista – ainda que pouco agradável ou simpática à “causa” universitária – para esse debate, com base em minha tripla experiência de universitário, servidor do Estado por um momento e trabalhador da iniciativa privada no momento em que escrevo. Também acredito que uma reforma razoável nas IFES – com alguma expansão de seus quadros, pois do contrário não valerá a pena engajar recursos para preservar o mesmo nível de “produtividade”, hoje excessivamente baixo, em padrões internacionais – terá reflexos positivos para as IPES, que teriam de adaptar-se às novas condições de mercado, marcado, portanto, por maior “concorrência” das “velhas” IFES.
Ao fim e ao cabo, para concluir, não se fará a reforma ideal, nem a necessária, mas apenas a possível – isto é, a “negociada”, numa democracia imperfeita como a nossa, com sérios problemas de representatividade no parlamento – o que significa, obviamente, um remendo aqui, outro acolá, para respeitar as opiniões e os interesses de uns e de outros. Isso significa que o mercado continuará a se “vingar” das IFES e continuará a suscitar uma proliferação anárquica de IPES, com sérios problemas de qualidade em umas e em outras, e portanto em detrimento dos usuários atuais e futuros consumidores de “produtos universitários”, que serão, presumivelmente, de baixa qualidade intrínseca. Mas, o mercado também se “vinga” por outras vias, independentes: ele não deixará de produzir algumas “ilhas de excelência”, tanto no setor privado como no setor público – e possivelmente em combinações híbridas a partir de ambos – com o que fica confirmado muito do que eu argumentei aqui: sempre haverá, para o bem ou para o mal, uma solução de mercado para qualquer problema humano, inclusive a morte e os impostos, que não deixarão de ser certos e infalíveis, como queria Benjamin Franklin, mas que podem ser postergados, por “soluções” de mercado.
O que é certo, também, é que, como confirmado em meus argumentos, a universidade continuará a ser algo de elite, até o dia em que suas funções sociais possam ser cumpridas por outras instituições que não as que conhecemos hoje. Talvez elas desapareçam ou, mais previsivelmente, sejam transformadas pela própria mudança na produção e distribuição do saber especializado, que deixará de ser seu monopólio. O certo, por fim, é que empresas e mercados subsistirão por um tempo ainda longo, os mercados mais do que as empresas, pelo menos em sua forma atual.
Quanto ao Estado, só utópicos como Marx, Lênin, um bando de anarquistas fora de moda e seus atuais seguidores, mais ou menos idealistas, poderiam imaginar seu desaparecimento no futuro previsível. Assim como os mercados, os Estados são uma realidade estrutural das sociedades humanas avançadas e continuarão, portanto, existindo, com funções algo similares, no horizonte visível. Mas, eles cobrarão um preço por isso, o que também está previsto nas leis do mercado…
* ANTONIO PISO, formado pela Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ (Especialização em Análise Quantitativa), foi professor de Economia no MBA da Universidade Castelo Branco, RJ. Publicado na REA nº 41, outubro de 2004, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/041/41cpiso.htm
http://espacoacademico.wordpress.com/2013/05/25/universidades-uma-visao-cetica-sobre-a-possibilidade-de-reforma/