A CLT e a Cultura da Servidão

A CLT e a Cultura da Servidão

Antônio Escosteguy Castro


Como advogado trabalhista e colunista do Sul21 me parecia óbvio que deveria abordar, nesta semana, o tema do aniversário de 70 anos da CLT. É uma data muito significativa para um diploma legal, mesmo que bastante modificado neste período, mas , sem dúvida, sem perder suas características essenciais.

Minha idéia, portanto, era situar historicamente seu surgimento , traçar seus princípios fundamentais e comentar as constantes tentativas de liquidá-la, seja nos mandatos de FHC , em parceria com Almir Pazzianotto no TST , seja, mais recentemente, com o PL 4330 do Dep. Sandro Mabel ( que visa liberar geral a terceirização) ou com a proposta da CNI de 101 modificações para “modernizar” a legislação. Não era um mau projeto.

Mas a recente aprovação da PEC das Domésticas e a furibunda reação de parte de nossas elites, secundada pelos jornalões de sempre , me fez trocar o conteúdo de minha coluna.

Em cerca de 8 mil anos de civilização, o trabalho livre prepondera há menos de 2 séculos. Foram milênios e milênios de escravidão e de variadas formas de servidão humana. Trabalhar era indigno das elites, dos poderosos, dos bem-nascidos,enfim, dos que importavam.

Esta verdadeira Cultura da Servidão não se desfaz de uma hora para outra. Tem sido um longo e doloroso processo de libertação e reconhecimento jurídico dos que trabalham. Em nosso país se destacam como marcos fundamentais, no século XIX, a Lei do Ventre Livre ( 1871) , a Lei dos Sexagenários ( 1885) e a Lei Áurea (1888) , etapas crescentes da libertação dos escravos.

Com o advento do Século XX, a industrialização, a urbanização e a imigração trazem consigo as primeiras legislações trabalhistas e previdenciárias ,embora esparsas. A CLT é, sim ,um marco de transcendental importância. Constitui-se num conjunto de dispositivos legais completo, complexo e coerente , de caráter protetivo ao trabalhador , definido como hipossuficiente na relação de emprego.Trabalhador “ liberto” , mas sem um estatuto de direitos trabalhistas é apenas isto: um escravo mais barato.

Nenhum destes passos libertadores foi pacificamente recebido pelas elites . As mesmas vozes apocalípticas que hoje prevêem desemprego , sofrimento e fome para as domésticas “falsamente protegidas” pela legislação disseram a mesma coisa ,com uma virgula diferente aqui ou lá, todas as vezes que os trabalhadores conquistaram algum direito significativo.

Mas a bela CLT sequer conseguiu alcançar o conjunto dos trabalhadores do Brasil. Os rurais só viriam a ter direitos semelhantes a si estendidos 20 anos depois , em março de 1963 , com o Estatuto do Trabalhador Rural. Um ano após este pecado capital, Jango seria derrubado…

Veio a Ditadura Militar, foi-se a Ditadura Militar , veio a Constituição Cidadã , e as domésticas continuaram sub-trabalhadores , representantes da senzala na Casa Grande. E quando, 70 anos depois da CLT , elas por fim atingem o patamar mínimo de dignidade laboral, uma vez mais o rugir das elites faz-se ouvir ameaçando os que ousam querer ter direitos.

A Cultura da Servidão recusa-se a morrer. Tal se vê cotidianamente , não apenas na reação aos direitos das domésticas , mas também nas constantes campanhas dos jornalões contra a “ indústria das reclamatórias trabalhistas” e a ofensiva , até de órgãos públicos ,contra a organização sindical. Pode-se até admitir que os trabalhadores sejam sujeitos de direitos, desde que não ousem defendê-los e reclamá-los.

Quase 8 mil anos de história não desaparecerão facilmente. Na luta pela dignidade do trabalhador há de se saudar cada passo duramente conquistado. E a CLT merece nosso aplauso.

Antônio Escosteguy Castro é advogado

Sul21




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