Cenas do Cotidiano

Antonio Ozaí da Silva 


Cena 1

Domingo, manhã ensolarada. Na rua, uma senhora idosa, acompanhada de uma jovem, conversa com um senhor idoso, que empurra o seu carrinho de lixo reciclável ladeira acima. De repente, ela começa a orar em voz alta! Mãos postas sobre a cabeça do homem, que respeitosamente tira o boné que o protegia do sol, a senhora parece possuída e clama aos céus por seu irmão em Cristo. Respeitosamente, não fico a observar a cena, mas não sou surdo! As palavras dela expressam fervor religioso. Parece porta-voz dos desígnios celestes. Concluído o ato, ela despede-se e segue seu caminho. O senhor agradece calorosamente, repõe o boné sobre os cabelos brancos. Em seu caminhar, pára diante de mim e começa a falar. Elogia a atitude da mulher, profere palavras de respeito e crença em Deus e mostra-me o braço com o osso deslocado acima: o aspecto é estarrecedor. Explica que foi um acidente. Visivelmente encurvado sob o peso dos anos e do trabalho pela sobrevivência, volta a mostrar o braço e diz que não tem jeito, nem Deus – com todo respeito! Ele despede-se e vai adiante, empurrando seu carinho, o seu ganha-pão. Deixa-me a pensar sobre a fé e o ceticismo. Quanto à senhora, seguiu feliz, convicta de que fez uma boa ação e marcou mais alguns pontos na contabilidade da salvação eterna. A fé é mesmo algo admirável!


Cena 2

Caminhando observo o escrito na camiseta da moça: “Salve os lindos... os feios que se danem!” As palavras dirigem-se ao salva-vidas na praia. Penso em brincar com a situação, quem sabe até fazer uma análise sociológica e mostrar que a frase corresponde ao padrão de estética da sociedade contemporânea. Contenho-me e apresso o passo! Ao passar por ela, vejo que nos conhecemos. Não resisto e faço um comentário cômico sobre os dizeres em sua camisa e as minhas chances de ser salvo do afogamento. Ainda bem que tenho medo do mar! Afirmo o direito, talvez in propria causa, dos feios viverem! Rimos, nos despedimos e cada um segue seu rumo.


Cena 3

No salão de beleza, o homem, ajoelhado e debruçado, acaricia barriga de mulher grávida. Chama a atenção pelo singelo e belo! Fico a pensar na criança que nascerá. Qual país herdará? O que fazemos pelas gerações que virão?


Cena 4

Terreno baldio, sofá de pernas para cima serve de “lar” para um cachorro. Uma alma bondosa deixa comida e água. Ao passar, ele rosna e defende o território. Mesmo os animais irracionais precisam de atenção e “teto”!


Cena 5

A mulher caminha lendo livro “Noiva...”! Caminha e lê, simultaneamente! Admirável! Discretamente, tento decifrar o título na íntegra, mas não consigo. Vejo, porém, que é um pockets. Parece literatura cor-de-rosa. Lembro das minhas leituras de adolescente. E sigo admirado com os gostos literários...


Cena 6

A propaganda no outdoor anuncia o automóvel PT Cruiser Classic pela bagatela de 69.900,00 reais. A imagem é tentadora, mas não para o homem maltrapilho que puxa um carrinho de duas rodas, “último modelo”, transbordando de lixo reciclável. Fico a pensar sobre o absurdo do valor de um carro e, mais ainda, sobre as contradições sociais, tão bem sintetizadas naquele momento!


Cena 7

No serviço ao cliente, a moça que atende é negra; a única presente naquele recinto. Penso sobre a universidade e o sistema de cotas. Será que ela tem graduação ou estuda em instituição de ensino superior? Qual é o seu salário? O que pensa sobre o sistema de cotas para negros nas universidades públicas?


Cena 8

Um jovem anda pelas ruas do centro de São Paulo. Uma criança o aborda e pede dinheiro. Ele olha em volta e observa, num canto, uma senhora no chão com outras crianças, inclusive de colo. Ainda não havia lido Dostoievski e não discutiria se o ambiente influencia ou não o destino das pessoas (vide a personagem Sonia, em “Crime e Castigo”), mas imagina o futuro daquelas crianças. Ele chora lágrimas de revolta contra um mundo que produz tais coisas. Sua moral cristã o leva a indignar-se, mas ele ainda não compreende as causas sociais da miséria humana. Seu julgamento é moral, embora sofra.