De pacote em pacote se desvaloriza a escola

De pacote em pacote se desvaloriza a escola

Educação: De pacote em pacote se desvaloriza a escola

e seus profissionais

Walter Takemoto

 

A Prefeitura Municipal de Salvador mal tinha acomodado o seu novo prefeito ACM Neto e a Secretaria Municipal de Educação, a única que manteve um secretário da trágica gestão do João Henrique, já recebia os professores que retornavam das férias, e às vésperas do carnaval baiano, com um “treinamento” oferecido para a implantação de um programa chamado “Alfa e Beto”, que consiste de materiais didáticos para alunos do 1º ao 5º ano do ensino fundamental, materiais para professores e treinamento para que possam usar os mesmos em sala de aula.

Antes de tudo é preciso que se diga de onde é que surge esse material denominado Alfa e Beto.

No inicio de janeiro de 2003, dez anos atrás, o senador ACM (avô do prefeito de Salvador), o governador da Bahia e dirigentes nacionais do PFL (partido que deu origem ao DEM do prefeito) reuniram prefeitos e secretários de educação no Hotel Fiesta para conhecerem o novo programa de alfabetização do PFL: o Alfa e Beto!

"Na época esse programa foi apresentado para a equipe técnica da Secretaria Estadual de Educação da Bahia analisar o conteúdo dos livros, e parte dos técnicos considerou problemático o material, por apresentar erros conceituais e atividades didáticas inadequadas"

Sim, o mesmo que o Prefeito ACM Neto compra agora foi lançado pelo seu avô em 2003 como o programa do Partido da Frente Liberal para erradicação do analfabetismo!

Na época esse programa foi apresentado para a equipe técnica da Secretaria Estadual de Educação da Bahia (na qual o prefeito ACM Neto atuava como assessor do secretário) analisar o conteúdo dos livros, e parte dos técnicos considerou problemático o material, por apresentar erros conceituais e atividades didáticas inadequadas, mas a decisão final foi política e não pedagógica. Na ocasião, a equipe teve como resposta do Sr. João Batista (dono do Alfa e Beto) a afirmação “não discuto com pedagogos, que são os responsáveis pelos problemas da educação”. Em seguida, esse senhor “educadamente” se levantou e jogou no lixo o parecer técnico.

Decisão Política ou Pedagógica?

Apesar do parecer desfavorável da equipe técnica, na época por decisão do senador ACM o pacote Alfa e Beto foi “implantado” em algumas escolas de Salvador, e da mesma forma que chegou às escolas “de surpresa” depois foi retirado, sem nenhuma discussão ou avaliação dos seus resultados.

E hoje, a decisão do Prefeito ACM Neto e do Secretário, herdado do João Henrique, João Carlos Bacelar é política ou pedagógica? Pretende o prefeito e o secretário comprando esse pacote educacional pronto oferecer a todos os educadores e crianças de Salvador uma escola pública de qualidade?

Inicialmente é preciso lembrar que a mesma Prefeitura de Salvador e a mesma Secretaria de Educação compraram entre 2008 e 2010, de uma editora chamada Aymará, livros didáticos (que chamavam de “literários”) para os alunos das escolas municipais ao custo de mais de R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais), sem licitação. Em conseqüência dessa compra, o Ministério Público abriu um processo e o Tribunal de Contas considerou irregular o contrato firmado pela Prefeitura, determinando a suspensão do que ainda não havia sido pago, um valor inferior a 10% do total, ou seja, a Prefeitura já havia efetuado o pagamento quase integral de todo o valor. Nessa época o Sr. João Carlos Bacelar assumia como secretário da educação de Salvador e declarou para a imprensa: “Não suspendi [o pagamento] por irregularidades ou coisa do tipo, a decisão foi porque o contrato não era prioritário para a gestão”. Ou seja, o atual secretário considerou que a compra do material da Aymará não tinha sido irregular, indo contra o parecer do Tribunal de Contas e o Ministério Público, e só suspendeu o pagamento por ter outras prioridades. Provavelmente a sua prioridade era o Alfa e Beto!

Como se pode ver por esse episódio da compra de livros didáticos da Aymará, esses pacotes educacionais oferecidos como “o milagre” para resolver todos os problemas das escolas públicas, são vendidos a peso de ouro para as secretarias de educação.

E a que peso de ouro a Prefeitura Municipal de Salvador troca a Aymará pelo Alfa e Beto do PFL? Algumas perguntas precisam ser respondidas pelo Prefeito e seu Secretário:

• Qual a análise técnica realizada pela equipe pedagógica da secretaria e os educadores das escolas municipais sobre o uso dos materiais da Aymará? Quais resultados foram obtidos?

• Qual a análise técnica que a equipe pedagógica da secretaria e os educadores das escolas municipais realizaram dos materiais do Alfa e Beto que referendou a compra dos mesmos pela Secretaria?

• Qual o custo por aluno/ano dos materiais da Alfa e Beto?

• O que a Secretaria vai fazer com as toneladas de materiais do Programa do MEC “Pacto pela Alfabetização” e os livros didáticos escolhidos pelos professores que a Prefeitura recebe gratuitamente?

Essas duas últimas questões são fundamentais de serem respondidas pela Secretaria de Educação e debatidas por todos os educadores das escolas públicas de Salvador e do Brasil.

Nos últimos anos, com a importância dada pelos meios de comunicação aos resultados das avaliações externas realizadas pelo Ministério da Educação (SAEB, Prova Brasil,


"As grandes editoras e grupos empresariais passaram a vender pacotes prontos (Positivo, Objetivo, Anglo, Alfa e Beto, COC, etc) prometendo que os resultados virão a toque de mágica, sem nenhum esforço que  exija mais do que assinar um contrato de dezenas de milhões de reais"

IDEB, entre outros), criando classificações entre as melhores e as piores escolas públicas, ou comparando o desempenho de uma escola municipal periférica com uma escola privada de elite, alguns secretários de educação passaram a acreditar que é possível comprar “um remédio infalível”, que coloque as “suas” escolas no topo da classificação e possa colher os frutos políticos eleitorais dos resultados. Com isso, as grandes editoras e grupos empresariais passaram a vender pacotes prontos (Positivo, Objetivo, Anglo, Alfa e Beto, COC, etc) prometendo que os resultados virão a toque de mágica, sem nenhum esforço que exija mais do que assinar um contrato de dezenas de milhões de reais.

E esses secretários deixam de utilizar os livros didáticos fornecidos pelo Ministério da Educação, e que são avaliados por especialistas de universidades públicas, sem custos para os cofres públicos estaduais e municipais, para comprarem os pacotes vendidos por essas empresas sob a promessa que os alunos terão um ensino equivalente ao oferecido pelas escolas privadas. Ou seja, os secretários criam uma despesa desnecessária, e elevada, que além de tudo representa uma afronta aos profissionais da educação das secretarias e escolas. E representa uma afronta pelos seguintes motivos:

• Por trás da compra de pacotes educacionais privados estão presentes uma concepção de educação e seus respectivos objetivos, e a adesão a esses materiais representa reduzir o processo educativo à transmissão de um determinado conteúdo estruturado, desarticulado da formação dos alunos em outros âmbitos fundamentais, como para valores, atitudes e para o pleno exercício da cidadania, submetendo as políticas educacionais a busca de resultados, seja da secretaria e escolas nas avaliações externas ou dos alunos em provas e vestibulares. 

• Ao aceitar pacotes educacionais e entregar aos grupos empresariais que os produzem a responsabilidade por “treinar” e “controlar” o uso dos mesmos pelos professores, a secretaria retira das equipes técnicas a função de responsáveis por elaborar, planejar e executar, em parceria com as escolas, as ações pedagógicas destinadas a qualificar o trabalho docente, privatizando, de certo modo, as políticas educacionais.

• Esses pacotes desqualificam, também, a função docente, a importância do professor em sala de aula e na relação com os seus alunos, ao colocá-los na condição de “aplicadores” das atividades determinadas pelos materiais da Aymará hoje, do Alfa e Beto amanhã, e assim por diante.

• Para que as escolas vão debater, refletir e construir o seu projeto político pedagógico se os grupos empresariais já entregam um pacote pronto e fechado? Para que as equipes técnicas irão discutir com as escolas e seus profissionais as orientações curriculares se os conteúdos dos pacotes não podem ser alterados? Como é que se pode contextualizar os conteúdos a serem ensinados aos alunos, a partir de suas realidades, tendo atividades prontas e definidas? Ocorre que ao optar por esses pacotes fechados, a secretaria entregou para um grupo empresarial privado e movido pelo lucro a responsabilidade pela política educacional do município.

• No caso específico da Rede Municipal de Educação de Salvador, significa também negar toda uma história pedagógica construída por seus educadores que desde a década de 90 vem discutindo, a duras penas, uma concepção de alfabetização que tem como princípio fundante a construção do conhecimento por professores e alunos. Significa inclusive negar os próprios documentos e orientações curriculares da rede e as Propostas Pedagógicas das suas escolas. Trata-se, portanto, de “matar” um conhecimento produzido durante décadas e também jogar no lixo o dinheiro público investido em formação continuada em serviço dos educadores desta rede nas últimas décadas.

Essas, e muitas outras questões são fundamentais de serem discutidas por todos os profissionais da educação que atuam e defendem a escola pública.

Não passa por pacotes educacionais a melhoria da qualidade da escola pública, assim como também não passa pela quantidade de inovações tecnológicas. A questão central da educação, que existe desde o dia em que se construiu a primeira escola pública no Brasil, e que se agravou quando se democratizou o acesso para todas as crianças e adolescentes, é a qualificação e a valorização do professor. A transformação da qualidade da escola pública começa e se realiza na sala de aula, na relação do professor com os seus alunos, na qualidade do ensino que é realizado pelo professor e que determina a qualidade da aprendizagem de todos os seus alunos.


"Nesse sentido, não existe nenhuma outra prioridade possível que não seja o investimento efetivo e permanente no desenvolvimento profissional dos professores e na valorização do trabalho que realizam
em sala de aula"

Nesse sentido, não existe nenhuma outra prioridade possível que não seja o investimento efetivo e permanente no desenvolvimento profissional dos professores e na valorização do trabalho que realizam em sala de aula, na construção de sua autonomia enquanto profissional capaz de refletir sobre a sua prática e produzir novos conhecimentos, e de compartilhar com a equipe escolar seus dilemas e descobertas.

Se muitos secretários, como no caso atual de Salvador, não compreendem a complexidade presente na relação de ensino e aprendizagem, e quais são as prioridades educacionais nas quais os recursos públicos devem ser investidos para que a escola pública tenha qualidade, e os alunos possam aprender na idade e na série adequada, é preciso então que os próprios educadores assumam a responsabilidade de discutir e interferir nas políticas educacionais, retirando das mãos daqueles que são transitórios esse poder de decisão.

Não será trocando Aymará por Alfa e Beto que as crianças de Salvador terão a aprendizagem de qualidade que merecem e têm direito social e político. E não será com o Alfa e Beto que os educadores de Salvador, sejam os técnicos da secretaria ou as equipes escolares, se colocarão na condição de quem é capaz de exercer plenamente sua profissão e, portanto, serem valorizados pelo trabalho que realizam.

E cabe aos sindicatos sair do debate meramente reivindicatório, em que se negocia pontualmente algumas concessões do governo, que a curto prazo perdem validade, para efetivamente assumir o debate coletivo acerca da educação que interessa aos educadores e aos alunos das escolas públicas de Salvador e da Bahia, definindo as prioridades que realmente representam valorização e desenvolvimento profissional, qualidade de aprendizagem para os alunos, e que podem mudar o grave quadro educacional baiano.
Não é mais possível aceitar que a escola pública, seus profissionais e alunos continuem convivendo com políticas educacionais que ao longo de décadas representou a exclusão de milhões de crianças, adolescentes e jovens baianos - realidade que a grande maioria dos professores conhece de perto e como experiência de vida – e que permanecem em pleno século XXI alargando as diferenças entre ricos e pobres, negros e brancos, e os que possuem ou não proximidade com quem está no poder.

É inadmissível que alguns poucos, que não são educadores, decidam por milhares de professores, dezenas de milhares de alunos e por toda a sociedade, o que é prioridade a partir de interesses que são estranhos à educação e seus profissionais. Ao mesmo tempo em que investem dezenas de milhões de reais de recursos públicos, na calada da noite ou no recesso das férias, sem nenhuma discussão com os profissionais da educação, quando se coloca a questão da valorização profissional sempre alegam falta de recursos. Ao mesmo tempo que investem no que não é necessário, dezenas ou centenas de escolas apresentam péssimas condições de trabalho e estudo, faltam professores, funcionários e recursos materiais e pedagógicos de qualidade.

Alterar essa situação depende do quanto os sindicatos e os educadores se dispõem, efetivamente, a assumirem em conjunto com os alunos e seus familiares a condição de protagonistas da discussão sobre a política educacional que interessa às escolas públicas, colocando um ponto final nos desmandos que marcam como as elites e seus governantes trataram as políticas educacionais na história do nosso país.

♦ Walter Takemoto é educador


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