Da crise da dívida às alternativas

Da crise da dívida às alternativas

 

Richard Duncan: da crise da dívida às alternativas

Um grande estudioso das finanças globais debate as origens do desarranjo atual e aponta, como uma das saídas, redistribuição mundial de riquezas que inclua renda básica universal

Por Richard Duncan no Viomundo

Richard Duncan é autor do livro The Dollar Crisis, lançado em 2003, que anteviu a crise financeira global deflagrada em 2008 com a implosão do banco de investimentos Lehman Brothers nos Estados Unidos. Em entrevista à revista New Left Review, ele define o capitalismo em que vivemos como a era do “creditismo” e prevê que qualquer regulamentação do sistema financeiro resultará num colapso econômico global, por revelar as falcatruas nas quais o sistema hoje se sustenta. Ele identifica a origem da crise atual na decisão dos Estados Unidos de abandonar o padrão-ouro, que exigia que o país tivesse depositados 25 centavos em ouro para cada dólar impresso pelo Tesouro.

Sugiro a leitura da entrevista completa, muito interessante. Em inglês, aqui.

No livro “Crises do dólar”, publicado em 2003, examinei como os desequilíbrios globais estavam criando bolhas nas economias que tinham superávit comercial e como os dólares agiam como bumerangues de volta para a economia dos Estados Unidos. Conclui que a expansão ilimitada do crédito possibilitada pela era pós-ouro, pós sistema monetário internacional de Bretton Woods, foi onde tudo começou.

Você advoga pela volta ao padrão-ouro?

Não. Mas penso que se os Estados Unidos tivessem mantido o padrão-ouro não estariam tão próximos do colapso. A economia global seria muito menor do que é; a China não seria nada do que é hoje. Teria havido muito menos crescimento, mas teria sido um sistema mais estável. Mas agora que estamos onde estamos, não tem volta. Se os Estados Unidos tivessem de voltar atrás, o tipo de deflação necessária seria absolutamente insuportável — como na Grã Bretanha em 1926. Mas é importante entender quais foram os efeitos de abandonar os mecanismos de ajuste automáticos inerentes ao sistema de Bretton Woods e ao padrão ouro clássico pré-1914 — eles serviam para corrigir automaticamente grandes desequilíbrios comerciais e os déficits governamentais.

Oficialmente, o sistema monetário internacional que emergiu desde 1973 e a quebra de Bretton Woods ainda não tem um nome. No livro eu chamei de padrão dólar, já que o dólar dos Estados Unidos se tornou o meio para os bens de reserva no lugar do ouro. O livro focou em como o novo sistema permitiu a criação das bolhas de crédito mundiais. O total de reservas internacionais, a melhor medida da oferta global de dinheiro, saltou mais de 2 mil por cento entre 1969 e 2000, com os bancos centrais criando dinheiro de papel numa escala sem precedentes.

A quantidade de dólares em circulação disparou. Uma das características do padrão dólar é que permite aos Estados Unidos incorrer num gigantesco déficit comercial, já que paga pelas importações em dólares — dos quais o Federal Reserve [Banco Central] pode imprimir quantos quiser, sem ter que lastreá-los em ouro — e em seguida recebe aqueles dólares de volta de seus parceiros comerciais quando eles investem em bens denominados em dólares — papéis do Tesouro, ações corporativas, instrumentos de financiamento imobiliário –, o que eles são obrigados a fazer se quiserem ganhar algum juro.

O economista francês Jacques Rueff comparou este processo a um jogo de buricas no qual, depois de cada rodada, os ganhadores entregam tudo o que ganharam aos perdedores. Quanto maior o déficit dos Estados Unidos, maior a quantidade de dólares volta através do vasto superávit financeiro norte-americano.  A outra opção para os parceiros comerciais dos Estados Unidos — o que “especialistas” estão sempre pregando — seria trocar os dólares por suas próprias moedas, fortalecendo o câmbio e tornando suas exportações muito caras para competir pelo mercado dos Estados Unidos, ficando assim fora do jogo.

A era pós-Bretton Woods teve muitas crises financeiras mesmo antes de 2008 — na América Latina nos anos 80, no Japão nos anos 90, na Escandinávia em 1992, na Ásia em 1997, Rússia, Argentina, Brasil, a bolha do dot.com. Qual é sua explicação para isso?

Os economistas austríacos estavam basicamente certos sobre o papel que o crédito joga. Enquanto ele se expandir, vai criar um boom artificial, empurrando uma espiral de crescimento econômico e inflacionando o preço dos bens, o que gera ainda mais expansão de crédito. Mas sempre chega o dia em que a economia superaquecida e o crescimento do valor dos bens supera o crescimento dos salários e da renda. Bolhas sempre estouram e quando isso acontece começa uma espiral reversa: queda do consumo, do valor dos bens, falências, concordatas, aumento do desemprego e um sistema financeiro em colapso. A depressão começa — o que, de acordo com os austríacos, significa que a economia vai voltar a algum tipo de equilíbrio pré-crédito.

Nada cai para sempre; em algum momento o valor dos bens se alinha à renda do público e a economia estabiliza. O que mudou sob o padrão dólar foi o advento da criação de vastas quantias de crédito, criando ciclos de boom-and-bust mais rápidos e profundos. Na verdade, o primeiro destes ciclos depois do fim da era de Bretton Woods aconteceu nos anos 70, quando os bancos de Nova York reciclaram os petrodólares depositados pelos paises da OPEP [Organização dos Paises Exportadores de Petróleo] e fizeram empréstimos a paises da América do Sul e da África, enchendo as suas economias de crédito. Quando o boom dos “milagres” estourou, resultou na crise da dívida do Terceiro Mundo nos anos 80.

Mas a criação de crédito desestabilizador realmente decolou quando os Estados Unidos passaram a praticar déficits comerciais de mais de 100 bilhões de dólares, a partir dos anos 80; alguns anos depois Washington começou a praticar também grandes déficits de orçamento, os quais podia financiar usando a entrada de dólares do superávit financeiro. Quando estes dólares entravam nos sistemas bancários dos países que tinham grandes superávits comerciais com os Estados Unidos, tinham o impacto de dólares turbinados — ou seja, a quantia original poderia sem emprestada e reemprestada pelos bancos daqueles países várias vezes –, provocando uma explosão de crédito que gerou superaquecimento econômico e disparada dos preços de bens, primeiro no Japão nos anos 80 e depois nas economias dos Tigres Asiáticos nos anos 90.

Em paises como a Tailândia, em particular, a entrada de capital quente atraído pelo crescimento econômico inicial serviu para tornar a bolha de crédito ainda maior. Eventualmente, investimento acima do necessário provocou excesso de capacidade produtiva e de oferta, seguidos por uma espiral de queda de lucros, falencias e crises na bolsa de valores, deixando os bancos locais entulhados de empréstimos impagáveis e governos profundamente endividados. Depois da crise asiática de 1997, a onda de capital retornou aos Estados Unidos, criando a bolha da ‘nova economia’ [internet] e um boom de crédito.

Não há dúvida de que o Japão, por exemplo, derivou benefícios econômicos tangíveis de seu crescimento baseado em exportações. Sem o poder de compra que veio de seus superávits comerciais com os Estados Unidos a economia japonesa teria crescido a um ritmo muito menor nos anos 60 e 70. Mas o impacto pouco avaliado é o que o superávit comercial japonês teve na expansão do crédito doméstico assim que os dólares entraram no sistema bancário do Japão. Foi isso que ajudou a encher a bolha — a relação entre crédito/PIB aumentou de 135% em 1970 para maciços 265% em 1989.

O Japão tentou exportar maciças quantias de capital na metade dos anos 80, para evitar que a economia superaquecesse: depois de 1985, diante da grande valorização do yen, houve uma grande transferência da capacidade industrial japonesa para as economias da Ásia, dando origem ao crescimento dos Tigres Asiáticos: Tailândia, Indonésia, Coreia do Sul, Malásia. Mas, depois de tantos anos com superávit comercial, crescentes reservas internacionais e oferta de dinheiro à vontade, foi impossível para o Japão evitar o superaquecimento drástico do final dos anos 80. Depois que a bolha japonesa estourou nos anos 90, o preço dos imóveis caiu mais de 50% e o valor das ações, 75%; 22 anos depois, os bancos japoneses ainda estão carregados de empréstimos impagáveis e a dívida do governo é a maior do mundo — 230% do PIB.

[...]

A ascensão da China ameaçou a política dos Estados Unidos [acordada com Alemanha e Japão, nos acordos de Plaza, em 1985] de desvalorizar o dólar para aumentar suas exportações?

É uma questão complicada, mas penso que, com a passagem do tempo, a indústria norte-americana desistiu dos Estados Unidos, ao se dar conta de que poderia lucrar fabricando fora dos Estados Unidos em países de baixíssima renda. E assim começou. Aos poucos, todas as grandes corporações se deram conta de que poderiam aplicar o outsourcing. Um momento chave foi no início dos anos 90, quando se tornou interesse de amplos setores da sociedade norte-americana ter um dólar forte e uma moeda chinesa fraca, ou moedas fracas em todos os países nos quais as empresas estadunidenses estavam produzindo para exportar de volta para os Estados Unidos. A questão relativa à Alemanha e ao Japão nos anos 80 tinha sido diferente, já que as forças de trabalho dos dois países tinham salários relativamente altos comparados com os dos Estados Unidos. Foi apenas depois da ascensão dos Tigres Asiáticos e principalmente depois que a China se juntou a eles nos anos 90 que a indústria estadunidense se deu conta de que poderia lucrar muito mais fazendo tudo fora de casa. Depois de 1997, os déficits comerciais dos Estados Unidos aumentaram dramaticamente.

Mais geralmente, como  o padrão dólar afetou a economia dos Estados Unidos?

Assim que foi removida a exigência de que 25% de cada dólar deveriam ser lastreados em ouro, foi removido também o limite para a criação de crédito. Tinha sido fácil para os Estados Unidos manter o lastro em ouro nas primeiras décadas do pós-guerra, já que o país tinha a maior parte das reservas em ouro do mundo. Mas com as empresas multinacionais de mudança do país e os crescentes gastos do governo, o padrão-ouro se tornou uma limitação em 1968. Assim, o Congresso simplesmente mudou a lei a pedido de Johnson [ex-presidente Lindon, que promoveu a expansão do envolvimento militar dos Estados Unidos no Vietnã], removendo a necessidade do lastro em ouro. Sem limites no crédito, o crescimento do crédito explodiu. Naturalmente, crédito e dívida são duas faces da mesma moeda. Nos Estados Unidos, a dívida total — do governo, dos domicílios, corporativa e do setor financeiro — expandiu de U$ 1 trilhão em 1964 para mais de U$ 50 trilhões em 2007.

Crescimento de crédito nesta escala passou a ser visto como algo natural; mas, na verdade, é algo inteiramente novo sob o sol — só se tornou possível porque os Estados Unidos romperam a ligação entre o dólar e o lastro em ouro. Esta expansão de crédito criou o mundo em que vivemos. Tornou os norte-americanos materialmente muito mais prósperos do que teriam sido. Financiou a estratégia da Ásia de crescer através das exportações e trouxe a idade da globalização. Não apenas tornou a economia mundial muito maior do que teria sido em outras circunstâncias, mudou em si a natureza do sistema econômico. Eu argumento que o capitalismo norte-americano se tornou algo diferente — em meu novo livro, A Nova Depressão, eu chamei de ‘creditismo’.

Quais seriam as principais características do ‘creditismo’?

Primeiro, o papel expandido do Estado. O governo dos Estados Unidos hoje gasta 24% do PIB — um de cada quatro dólares. Todas as grandes indústrias são subsidiadas, de uma forma ou outra, e metade da população dos Estados Unidos recebe algum tipo de apoio do governo. Veja, uma pessoa pode argumentar que o capitalismo foi um fenômeno do século 19 que morreu na Primeira Guerra Mundial; mas o formato atual não é, claramente, como o capitalismo deveria funcionar. Em segundo lugar, o banco central hoje cria dinheiro e manipula seu valor. Em terceiro lugar — talvez o mais interessante —  a dinâmica de crescimento é inteiramente diferente do passado. Sob o capitalismo, os empresários investiam, alguns tinham lucro, que poupavam; em outras palavras, acumulavam capital e repetiam o ciclo: investimento, poupança, investimento, poupança. Era lento e difícil, mas é como o crescimento econômico funcionava. Mas há décadas a dinâmica do crescimento econômico dos Estados Unidos — e crescentemente do mundo como um todo — é dirigida pela criação de crédito e pelo consumo. Os bens usados como garantia para empréstimos saltaram mais de 2.000% do fim da era de Bretton Woods até o fim dos anos 90. Desde então, quintuplicaram.

O problema é que o ‘creditismo’ já não sustenta o crescimento econômico porque o setor privado dos Estados Unidos não pode mais sustentar qualquer dívida. A razão entre a dívida por domicílio e a renda pessoal disponível era de cerca de 70%, da metade dos anos 60 à metade dos anos 80; desde então, disparou para atingir 140% em 2007, na véspera da crise. Ao mesmo tempo, a renda média domiciliar está em declínio e a diferença entre o valor de um imóvel e a dívida existente para quitar o financiamento está em baixa recorde [Nota do Viomundo: Lembrando que muitos norte-americanos refinanciam as casas para conseguir dinheiro para despesas correntes, como comprar automóvel ou mandar o filho para a universidade]. Em 2010, os domicílios norte-americanos tinham dívida de U$ 13,4 trilhões — 92% do PIB.

NLR: Podemos discutir um pouco este conceito de ‘creditismo’ como sucessor do capitalismo? Primeiramente, agências de crédito — bancos, empresas, emprestadores de dinheiro — existiam no século 19 em grande escala. Em segundo lugar, o capitalismo passou por uma série de fases históricas, mas nunca foi ‘puro’ e livre de apoio estatal; sempre houve algum grau de apoio e houve épocas de  muito maior restrição ao capital que hoje. O capitalismo norte-americano do século 19 era protegido por grandes barreiras de tarifas e ajudado pelo expansionismo militar dos Estados Unidos — de forma icônica, a Cavalaria massacrou os indígenas para abrir espaço para as ferrovias. Setores não lucrativos da indústria norte-americana podem ser pesadamente subsidiados hoje, mas não é o capitalismo em geral que os fundos federais estão apoiando? Parece haver uma razão para continuar usando o conceito clássico de capitalismo, que tem sido uma ferramenta confiável de análise tanto para a esquerda quanto para a direita, pelo menos enquanto persistirem as relações de propriedade privada e do trabalho assalariado. ‘Creditismo’ pode ser uma corrupção do capitalismo, mas não continua sendo capitalismo?

Richard Duncan: Sim e não. Nos Estados Unidos não, porque toda grande indústria é subsidiada de uma forma ou outra pelo governo — toda a manufatura que sobreviveu, boa parte dela relacionada a gastos militares. Todos os hospitais e companhias farmacêuticas tiram proveito dos programas do Medicare e Medicaid. As universidades também recebem subsídios. Os agricultores recebem subsídios do governo. Os níveis de preços ainda são geralmente determinados pelas forças do mercado, mas os gastos do governo dirigem estas forças — na base permitem a flutuação dos preços, mas no topo tudo é dirigido e sustentado pelos gastos do governo. Acredito que o maior impedimento para enfrentar a crise é essa crença de que temos uma economia capitalista. Os telespectadores da Fox News [NdoV: Direitistas convictos] todos acreditam que temos uma economia capitalista, que o governo é diabólico e que nada pode fazer na situação atual.

Eles não entendem o grande papel que o governo joga e que se o gasto do governo fosse reduzido a economia entraria imediatamente em colapso. Ajudaria se eles entendessem que não temos capitalismo, que temos um tipo diferente de economia. Não é uma crise do capitalismo, é uma crise do creditismo e temos de trabalhar com o sistema que temos. E embora fosse bom ter controle sobre os banqueiros, se forem controlados demais vamos explodir todo o sistema — hoje os bancos valem tão pouco que as perdas seriam enormes se isso ficasse explícito; toda a poupança do mundo seria destruída com a falência do setor bancário. Creditismo é um sistema que requer a sobrevivência do crescimento do crédito e só o governo pode promover este crescimento — o setor privado não pode arcar com mais nenhuma dívida.

NLR: Então existe um caráter polêmico no conceito de creditismo, ele foi criado para influenciar a política?

Richard Duncan: Certo. Eu gostaria de persuadir não apenas os formuladores de política, mas o público em geral. Não é impossível mudar a percepção da opinião pública de onde ela se encontra agora, que é num debate chato entre austeridade e Keynesianismo, nenhum dos quais, atualmente, faz qualquer sentido.

NLR: Outro termo que tem sido usado neste estágio do capitalista é ‘financeirização’, ou capitalismo financeirizado, e seria interessante saber como você o compara ao creditismo. Foi sugerido, quando o ritmo da economia dos Estados Unidos começou a fracassar, que o governo intervisse nos anos 90 com uma forma privatizada de Keynesianismo: que o crédito fosse usado, em outras palavras, para manter os níveis de demanda, em vez de usar os programas clássicos de investimento público propostos pelo Keynesianismo.

Richard Duncan: Penso que provavelmente é verdade, se você olhar para a forma como Alan Greenspan encorajou a expansão do crédito e a forma como todos negaram a existência de qualquer tipo de bolha: isso beneficiou os banqueiros e os políticos, mas também beneficiou as pessoas, pelo menos enquanto tudo estava em expansão, uma vez que isso acontecia num período de crescente globalização, que colocou forte pressão para rebaixar os salários nos Estados Unidos. Para comprar os eleitores, que estavam perdendo emprego e não tinham aumento de salário, o jeito foi valorizar seus imóveis — o valor dos imóveis sofreu alta e assim os eleitores puderam gastar mais mesmo sem aumentos salariais. [NdoV: Uma prática comum nos Estados Unidos é refinanciar a casa própria, de forma a receber uma bolada do banco para gastos correntes, como comprar um barco, um automóvel ou pagar a faculdade dos filhos]. Isso funcionou muito bem durante dez a quinze anos, e as autoridades aparentemente queriam que funcionasse por mais tempo — mas as bolhas tem de estourar, no fim das contas. Sim, penso que você está certo, embora seja difícil dizer se foi planejado ou simplesmente evoluiu assim, o que pode ser o caso, já que era o jeito mais cômodo.

Mas vale enfatizar que a expansão do crédito nos Estados Unidos a partir dos anos 90 não teria acontecido sem o impacto antiinflacionário da importação de manufaturados das economias que pagam salários extremamente baixos [NdoV: Chamado nos Estados Unidos, muitas vezes, de efeito Walmart, a empresa que é a maior importadora do mundo de produtos chineses de baixíssimo preço].

A inflação baixa permitiu taxas de juros baixas. A escala da diferença de renda é enorme: o PIB per capita do México é 20% do PIB per capita dos Estados Unidos; o PIB per capita chinês é apenas 11%. Mas outro efeito da globalização é que a expansão do crédito tinha começado a produzir uma redução do crescimento nos Estados Unidos bem antes da crise de 2008. No livro A Nova Depressão eu demonstro que existe uma correlação entre crescimento total do crédito e crescimento econômico nos Estados Unidos desde os anos 50. Sempre que o crédito expandiu menos de 2%, a economia dos Estados Unidos entrou em recessão — ou quase, em 1970. Mas a partir do início dos anos 80 a diferença entre as duas taxas se tornou muito mais pronunciada: o crédito total disparou, mas o crescimento econômico continuou fraco, ciclo a ciclo, a não ser durante o boom da ‘nova economia’ [internet e correlatos] no final dos anos 90. Parte da explicação tem relação com o fato de que o crescimento do crédito estimulou a demanda nos Estados Unidos, mas a demanda foi saciada com importados; então houve pouco do efeito multiplicador que a produção nos Estados Unidos poderia ter tido.

Além disso, o excesso de capacidade produtiva criada por anos de expansão do crédito e pelo deslocamento do capital era um novo fator antiinflacionário. É fácil aumentar a oferta agregada de uma economia: simplesmente aumente o crédito para o setor manufatureiro — é o que aconteceu no boom da ‘nova economia’ nos Estados Unidos. Mas quando a capacidade industrial está pronta, ela não some quando falta demanda; em vez disso, o excesso de capacidade pressiona para baixo os preços das mercadorias, mesmo enquanto o uso das instalações industriais cai. É muito mais difícil agregar demanda, que no final das contas está ligada ao poder de compra do público. Nos últimos trinta anos, a expansão do crédito produziu uma vasta expansão na capacidade de produção industrial do mundo, mas o poder de compra da população mundial não subiu no mesmo ritmo. Temos um excesso de capacidade industrial em escala mundial.

NLR: No livro A Crise do Dólar você sugeriu uma solução radical para este problema…

Richard Duncan: Uma das curas que sugeri foi um salário mínimo global, começando pelo aumento dos salários nas fábricas da China controladas por estrangeiros em um dólar por dia, ano após ano — isso não quebraria a Apple ou a Foxconn. Para ser diplomático, sugeri que os países em desenvolvimento formassem um cartel do trabalho, da mesma forma que a OPEP formou um cartel do petróleo; mas, na verdade, isso não funcionaria, todo mundo ia burlar. A forma mais eficaz de fazê-lo seria o secretário do Tesouro dos Estados Unidos ir à TV e anunciar: se você não conseguir provar que paga seis dólares por dia ao seu trabalhador, em vez de cinco, vamos colocar uma tarifa de 20% no que importamos de vocês. E vamos pedir aos trabalhadores que digam quanto estão recebendo. Escrevi isso dez anos atrás, e se tivesse sido implementado a essa altura o salário mínimo teria triplicado, de cinco para 15 dólares por dia — e isso teria criado mais demanda agregada para absorver todo o excesso da capacidade industrial.

Sim, é crucial encontrar um forma de aumentar o poder de compra na base da pirâmide — caso contrário a economia mundial vai voltar ao que era no começo da revolução industrial, quando os trabalhadores ganhavam apenas para a subsistência e não podiam comprar o que fabricavam. Em certo sentido, esta é a economia mundial na idade da globalização. Com a entrada de novos países produtores no mercado mundial, especialmente a China, a capacidade de produção disparou; mas os salários, não.

Eles estão em queda no Ocidente e a tendência demográfica, com  o grande número de jovens em busca de emprego, não permite que os salários subam de forma rápida nos países em desenvolvimento. Isso está no coração da crise global. Por quinze a vinte anos, isso foi resolvido com a inflação dos preços de bens nos Estados Unidos, que permitiu que os norte-americanos sacassem contra seus imóveis [refinanciando] e gastassem, importando produtos e preenchendo o que poderia ter vindo de aumentos salariais. Mas agora o jogo acabou. Os norte-americanos já não podem sustentar qualquer dívida; os preços de imóveis cairam 34%, em média, nos Estados Unidos. A única coisa que pode preencher o vazio são os gastos do governo — é o que está evitando que os Estados Unidos mergulhem em depressão.

NLR: Quais foram os objetivos do governo dos Estados Unidos ao lidar com a crise? Como você avaliaria as políticas até agora?

Richard Duncan: O objetivo da política do governo dos Estados Unidos tem sido a de perpetuar a expansão do crédito para evitar um colapso. Até agora os Estados Unidos conseguiram mais ou menos sustentar o nível total de dívida no mercado de crédito. Conseguiram isso acumulando um déficit de U$ 5 trilhões, o qual provavelmente não teriam conseguido financiar se o Banco Central [Federal Reserve] não tivesse imprimido U$ 2 trilhões para injetar na economia. Inicialmente, em 2007 e 2008, o resgate do setor financeiro e o estímulo de U$ 787 bilhões foram financiados com a venda de papéis do governo. Mas aquela rodada inicial de ajuda ao setor financeiro já tinha custado U$ 1 trilhão — cerca de U$ 544 bilhões em empréstimos aos bancos norte-americanos, U$ 118 bilhões ao Bear Stearns e [seguradora] AIG e U$ 333 bilhões à agência de financiamento de papéis comerciais. Então o Banco Central começou sua política de ‘quantitative easing’ em novembro de 2008. Naturalmente, QE é um eufemismo para criação de dinheiro do nada: a ‘quantidade’ se refere ao dinheiro em existência, o ‘easing’ significa criar mais — ‘facilitar’ as condições de liquidez.

A primeira rodada, QE1, foi usada principalmente para dar alívio aos bancos e outras instituições que estavam carregadas de papéis podres do mercado imobiliário. O programa foi ampliado em março de 2009, de U$ 600 bilhões para mais de U$ 1,75 trilhão, para durar até março de 2010. Assim que acabou, a economia dos Estados Unidos entrou numa fase ruim no verão de 2010. Em agosto de 2010 Bernanke já estava falando em outra rodada, a QE2, que foi anunciada formalmente em novembro, para continuar até junho de 2011. Daquela vez o Banco Central imprimiu U$ 600 bilhões, que usou para comprar de volta papéis do governo, financiando assim o déficit do orçamento. Com algumas diferenças, o mesmo caminho foi seguido pelo Banco Central Europeu e pelo Banco da Inglaterra, mas em escala menor.

Dada a natureza do debate sobre o déficit de orçamento dos Estados Unidos, é importante enfatizar qual seria a alternativa se o governo não tivesse se envolvido. O crédito total teria começa a se contrair em 2008, quando o setor privado não teria mais condições de pagar os juros de sua dívida e o tipo de espiral dívida-deflação descrita por Irving Fisher teria acontecido. A economia dos Estados Unidos teria mergulhado em uma nova Grande Depressão e, com ela, o resto do mundo.

[...]

Desde 2011, eu diria que os custos do QE se tornaram maiores que os benefícios, que tem dado retorno cada vez menor. O ‘quantitative easing’ criou inflação no preço dos alimentos, o que é muito danoso para 2 bilhões de pessoas que vivem com menos de 2 dólares por dia. Li que os preços globais dos alimentos subiram 60% durante QE2 e este foi um dos fatores que levaram à Primavera Árabe. O aumento nos preços do petróleo foi muito negativa para a economia dos Estados Unidos; a queda do consumo nos Estados Unidos em 2011 se deveu ao aumento nos preços da comida e do petróleo. Voltamos à velha teoria sobre a quantidade de dinheiro em circulação: se você aumentar a quantidade de dinheiro, os preços sobem. Até agora, isso teve pequeno impacto no preço das manufaturas, por causa do grande efeito deflacionário da globalização e a redução de 95% no custo marginal do trabalho que ela representou.

Então, não vemos inflação nos produtos industrializados. Mas os preços dos alimentos aumentaram em todo lugar. Se o preço em dólar dos alimentos sobe — se o preço do arroz em dólar sobe — o preço do arroz aumenta em todo o mundo; caso contrário, o produto seria vendido no mercado dolarizado. Se o preço do arroz nos Estados Unidos aumenta, também aumenta na Tailândia. E quando o Banco Central dos Estados Unidos imprime dinheiro, o preço da comida sobe. Esta é a grande desvantagem, o grande problema real do QE — caso contrário, seria uma coisa boa: imprima dinheiro, faça o preço das ações subir na bolsa e todo mundo ficará rico e feliz. Mas existe também este impacto, de criar inflação no preço dos alimentos.

NLR: Qual o efeito que o QE [Quantitative Easing, impressão de dinheiro] tem tido nos lucros e no investimento? O lucro dos negócios nos Estados Unidos atingiu 15% este ano, de acordo com a [revista britânica] Economist, mas as corporações parecem sentadas sobre uma montanha de dinheiro que não está sendo usado.

Richard Duncan: Sim, os lucros estão bem altos, primeiro porque a remuneração do trabalho tem ficado com uma porção cada vez menor. Além disso, relativamente ao PIB, a taxação corporativa nos Estados Unidos foi a mais baixa desde os anos 50. A arrecadação no país como um todo ficou em menos de 15% do PIB, o que é, de novo, o índice mais baixo desde os anos 50. Sim, os lucros das corporações tem sido excepcionalmente bons, embora neste trimestre, de repente, todos estejam preocupados com uma queda repentina.

Mas há um problema fundamental: não existem oportunidades de investimento viáveis. Tanto crédito foi dado e tanta capacidade de produção construída que já temos muito de tudo relativamente à renda como é hoje distribuída e absorvida. Se investir mais, você vai perder dinheiro; se você pegar seu dinheiro e comprar títulos do governo, pode preservar o dinheiro para usar num dia melhor — mas isso ajuda a empurrar as taxas de juros para baixas históricas. É por isso que, mesmo no Japão, depois de duas décadas de déficits fiscais maciços, a taxa de juros de um papel de 10 anos do governo é de 0,8%; na Alemanha, 1,2%; nos Estados Unidos, 1,5%; no Reino Unido, cerca de 1,6%. Nunca foram tão baixas e isso é parte da razão. Quando a bolha estoura, não há lugar para investir dinheiro com lucro, então é melhor colocar em papéis do governo.

NLR: Quais são as opções de longo prazo?

Richard Duncan: Acho que há três opções para o futuro da economia dos Estados Unidos — três caminhos que poderiam ser seguidos. Opção um é a dos libertários e do Tea Party: eliminar o déficit. Isso resultaria em imediata depressão e colapso, o pior cenário possível.

A segunda opção é a que eu chamo de modelo do Japão. Quando a grande bolha econômica do Japão estourou 22 anos atrás, o governo japonês começou a gerar grandes déficits de orçamento e tem feito isso por 22 anos. A relação dívida/PIB aumentou de 60% para 240%. Isso é o que os Estados Unidos e o Reino Unido estão fazendo agora: gerando déficits maciços para impedir o colapso da economia.

Eles podem continuar a fazer isso por outros cinco anos com pequena dificuldade e talvez até por dez anos. A dívida do governo dos Estados Unidos é apenas 100% do PIB, o país poderia prosseguir neste caminho por cinco anos sem atingir 150%. Embora não seja claro o quanto é desejável aumentar, sabemos que não pode aumentar para sempre. Mais cedo ou mais tarde — digamos, dez ou quinze anos — o governo dos Estados Unidos estará tão falido quanto o da Grécia e a economia norte-americana vai desabar numa Grande Depressão. Esta é a opção dois. Melhor que a um, já que é melhor morrer em dez anos do que morrer agora; mas não é o ideal.

Opção número três é o governo dos Estados Unidos continuar emprestando e gastando agressivamente, como faz agora, mas mudando a forma como gasta. Em vez de gastar em consumo e para a guerra, por exemplo — o governo dos Estados Unidos gastou até agora U$ 1,4 trilhão para invadir o Iraque e o Afeganistão — deveria investir; não apenas para reformar estradas e pontes, mas investir agressivamente em tecnologias transformadoras do século 21, como energia renovável, engenharia genética, biotecnologia e nanotecnologia, em grande escala. O governo dos Estados Unidos poderia colocar um trilhão de dólares em cada uma destas indústrias nos próximos dez anos — ter um plano para desenvolver estes novos setores da economia.

Um trilhão de dólares, digamos, em energia solar nos próximos dez anos: não estou falando em construir paineis solares para o mercado; estou falando em cobrir o deserto de Nevada com paineis solares, construir uma linha costa-a-costa para transmitir esta energia; converter a indústria automobilística para a eletricidade, substituir os postos de gasolina por postos para recarregar baterias e desenvolver nova tecnologia para fazer o carro elétrico andar a 110 km/hora. Então, em dez anos os Estados Unidos terão energia gratuita e sem limites.

O déficit comercial será equilibrado, já que não teremos de importar qualquer petróleo estrangeiro e os Estados Unidos poderão gastar 100 bilhões de dólares a menos com os militares, que não precisarão defender o petróleo do Golfo [Pérsico]. O governo dos Estados Unidos poderia taxar a eletricidade produzida domesticamente, ajudando a reduzir o déficit do orçamento; e o custo de energia para o setor privado provavelmente cairia 75% — isso, em si, poderia gerar uma onda de inovação no setor privado capaz de criar nova prosperidade.

Se o governo dos Estados Unidos investisse um trilhão de dólares em engenharia genética, é provável que poderia criar milagres médicos: cura do câncer ou formas de reduzir o processo de envelhecimento. Temos de pensar em Projetos Manhattan dos tempos de paz: juntar os melhores cérebros, a melhor tecnologia e definir alvos; usar o ‘creditismo’ para produzir resultados. Podemos todos ver os defeitos do creditismo — eles são óbvios. Mas, como sociedade, penso que os Estados Unidos estão desprezando as oportunidades que existem dentro do novo sistema econômico — a oportunidade para o governo emprestar quantidades maciças de dinheiro pagando juros de 1,5% e investir agressivamente em tecnologias transformativas que poderiam reestruturar a economia dos Estados Unidos, para que ela se livre da dependência debilitadora do setor financeiro — que se tornou um gigantesco esquema Ponzi — antes que ele entre em colapso. Caso contrário, a economia dos Estados Unidos vai, mais cedo que se pensa, entrar numa espiral letal de dívida-deflação.

NLR: Presumivelmente essa estratégia do ‘creditismo’ se aplicaria apenas à economia dos Estados Unidos?

Richard Duncan: Não necessariamente. Por exemplo, o Banco da Inglaterra imprimiu tanto dinheiro para comprar papéis do governo que agora controla mais de um terço de toda a dívida do Reino Unido. Não custou um centavo para o banco comprar todos estes papéis — nem precisou comprar papel ou tinta para imprimir dinheiro, agora é tudo eletrônico. Por que não cancelar esta dívida? Não custaria nada a ninguém; mesmo que falisse o Banco da Inglaterra, ele poderia imprimir mais dinheiro para se recapitalizar. Da noite para o dia, o Reino Unido teria uma dívida um terço menor e a qualidade de seu crédito aumentaria enormemente.

O governo anunciaria sua pretensão de tirar proveito desta oportunidade histórica para aumentar os gastos e investir em novas indústrias, para que o país pudesse finalmente se livrar de sua dependência debilitadora do esquema Ponzi das finanças e desenvolver indústrias manufatureiras novamente. Por exemplo: jogar 100 bilhões em Cambridge para investir em engenharia genética nos próximos três anos, para se tornar a força dominante em tecnologia genética no mundo. Criaria com isso empregos e ao mesmo tempo poderia reformar a infraestrutura.

NLR: Mas estas novas indústrias não estariam sujeitas à mesma falta de demanda existente hoje?

Richard Duncan: Bem, não haveria falta de demanda para uma terapia molecular que retardasse o envelhecimento ou curasse uma doença fatal. O objetivo seria mirar em inovações tecnológicas que fossem completamente transformadoras, como foi a revolução tecnológica agrícola dos anos 60, que mudou a natureza da produção global de alimentos. De certa forma esta é uma oportunidade sem precedentes, por causa da quantidade de dinheiro que os governos investiriam agora, quando as taxas de juros estão tão baixas. Se houvesse direcionamento [do investimento] para tecnologias transformadoras, poderiamos criar mercados para produtos que nem existem ainda, onde haveria demanda. Se pudessemos mudar a economia dos Estados Unidos, tirá-la da dependência do petróleo para a da energia solar, isso livraria imensa quantidade de dinheiro para gastar em outras coisas. De forma polêmica, quero enfatizar que não podemos apenas esperar por uma recuperação cíclica dos velhos tempos — não vai acontecer.

Temos um novo sistema econômico. Ou nos damos conta disso e tiramos proveito das oportunidades para emprestar e investir, ou o sistema vai desabar numa depressão severa, desfazendo uma expansão de crédito de U$ 50 trilhões. Vai ser pelo menos tão ruim quanto nos anos 30.

New Left Review: Em 2003 você disse que a economia chinesa era uma bolha esperando para estourar. Como você a vê hoje?

Richard Duncan: Uma bolha ainda maior esperando para estourar. Quando eu escrevi The Dollar Crisis, o superávit da China com os Estados Unidos era de U$ 80 bilhões; agora é de U$ 300 bilhões, mas os Estados Unidos não podem continuar a expandir seus déficits comerciais, o que significa que o superávit da China vai cair, criando um ambiente muito mais difícil. Em 2009, quando o superávit chinês foi corrigido significativamente, a manchete foi: 20 milhões de operários perdem o emprego e voltam para casa para plantar arroz.

Aquilo quase estourou a bolha. A resposta do governo chinês foi deixar os bancos chineses aumentarem o total de empréstimos em 60% nos dois anos seguintes. Como resultado deste estímulo maciço, todo mundo emprestou dinheiro e os preços das propriedades dispararam. Mas agora, três ou quatro anos depois, ninguém consegue pagar de volta, o sistema bancário pode estar próximo de um colapso — embora, oficialmente, a taxa de inadimplência seja extremamente baixa — e terá de ser resgatado pelo governo.

Todo o modelo chinês está em dificuldades sérias: eles tem expandido sua produção industrial em 20% por ano faz décadas, e agora há capacidade excessiva de produção em todos os setores. Os norte-americanos já não podem comprar a produção e 80% dos chineses ganham menos de 10 dólares por dia, assim não conseguem comprar o que eles produzem em suas próprias fábricas. Se eles continuarem a expandir sua capacidade industrial, o problema vai apenas piorar. Penso que eles vão ser obrigados a seguir o modelo do Japão, que tem grande déficits de orçamento para evitar que a economia desabe numa depressão; se eles fizerem isso agressivamente, num bom cenário a China talvez tenha crescimento médio de 3% pelos próximos dez anos.

NLR: De qualquer forma, há um potencial mercado para a primeira geração que vai comprar automóveis e máquinas de lavar, em escala maciça — centenas de milhões de pessoas? Não está adiante de nós?

Richard Duncan: Não necessariamente, a não ser que os salários chineses aumentem — gente que ganha 10 dólares por dia não pode comprar uma máquina de lavar; mesmo que pudesse, o apartamento não seria suficientemente grande para caber uma máquina. O desafio é, se os salários chineses atingirem a quantia astronômica de 15 dólares por dia, existem 500 milhões de pessoas na Índia que trabalham por 5 dólares/dia e os empregos vão se mudar para lá. Então, há o risco de uma corrida para o salário mais baixo, a não se que a gente concorde em criar um salário mínimo global.

NLR: Como você vê o estado atual do setor bancário dos Estados Unidos? Em agosto o New York Times soou o alarme sobre o fato de que o cartel de grandes bancos era o único regulamentador do mercado de derivativos de U$ 700 trilhões, mas depois disso parece que se calou.

Richard Duncan: Uma forma de ver o problema é que quem cria a riqueza tem o poder político. Sob o feudalismo, o poder estava nas mãos da aristocracia que tinha terra. Sob o capitalismo industrial, os capitães da indústria controlavam o poder político. Mas nas últimas décadas a riqueza nos Estados Unidos vem da criação de crédito. Quando os bancos criaram mais e mais riqueza, os banqueiros se tornaram influentes politicamente, de forma crescente; no fim dos anos 90 se tornaram incontroláveis. Primeiro repeliram a [lei] Glass-Steagall [que, entre outras coisas, separava os bancos de consumo dos bancos de investimento] e, no ano seguinte, aprovaram uma coisa chamada Commodity Futures Modernization Act, que removeu as regulamentações dos mercados de derivativos e permitiu a eles vender os papéis no varejo quase sem nenhuma regulamentação. Desde 1990, o total de contratos de derivativos aumentou de U$ 10 trilhões, que já era um número grande, para U$ 700 trilhões — o equivalente a 100 mil dólares por pessoa no planeta, ou o PIB global combinado dos últimos 10 anos. Não há nada no mundo que você pode oferecer em garantia para estes contratos de derivativos; o sistema está se tornando cada vez mais surreal. Você pode imaginar o lucro que os bancos conseguem a partir dos U$ 700 trilhões — primeiro criando os derivativos, depois vendendo e usando os papéis para finança estruturada.

Os derivativos são usados basicamente como veículos de jogatina: você pode apostar na direção das taxas de juros ou das commodities, ou qualquer outra coisa. Mas a maior parte dos negócios não é entre setores reais da economia; dois terços são entre os próprios bancos. Noventa por cento dos contratos de derivativos são vendidos no varejo, o que significa que nenhum regulador sabe o que está acontecendo; mas 10% são vendidos em bolsas, portanto sabemos algo sobre eles. Da última vez que olhei, o movimento daqueles 10% — em dinheiro que troca de mãos, todos os dias — era de U$ 4 trilhões. Agora, se os outros 90% venderem da mesma forma — pode ser mais, menos, não sei — isso seria alguma coisa perto de U$ 40 trilhões por dia.

Se houvesse mesmo um imposto bem pequeno nestas transações de derivativos o governo teria uma enorme fonte de renda, imposto que outras pessoas não teriam de pagar. A maior parte dos negócios é fechada em Londres e Nova York, assim não há o risco de mudança — a ameaça de que todo esse negócio mudaria para a China; os chineses não deixariam seus bancos fazerem estas loucuras. Todos os grandes escândalos de contabilidade dos últimos vinte anos —Fannie Mae, Freddie Mac, General Electric — envolveram finança estruturada, com os culpados usando derivativos para manipular seus portfólios e evitar a cobrança de impostos; os bancos ganham grandes tarifas com isso.

Dado o que sabemos sobre mercados desregulamentados e o incentivo da indústria bancária para promover finança estruturada, parece difícil que nestes U$ 700 trilhões não haja todo tipo de fraude acontecendo. Se você fosse um país do Golfo Pérsico, produtor de petróleo — sem dar os nomes — por que você não manipularia o preço do petróleo, com a ajuda de um dos grandes bancos de investimento dos Estados Unidos/ou uma das grandes multinacionais do petróleo, quando ninguém vê o que você está fazendo?  Você fecha contratos que empurram o preço do petróleo para cima e o preço futuro do petróleo empurra para cima o preço à vista. A maioria das commodities é provavelmente manipulada desta forma, sendo o petróleo a mais óbvia.

NLR: O objetivo da lei Dodd-Frank não era acabar com a venda de derivativos no varejo?

Richard Duncan: A Dodd-Frank exigia que os bancos colocassem todos os derivativos em bolsas até a metade de 2011 — mais de um ano atrás. Mas a data foi empurrada para o futuro, sem especificar quando. Em algum momento os reguladores devem ter se dado conta de que, se você colocar tudo à venda nas bolsas, revelaria tamanha fraude e corrupção que todo o sistema implodiria. O valor real dos bancos poderia se revelar algo como menos U$ 30 trilhões — é por isso que não falem, são muito grandes para falir porque estão muito falidos para o governo ser capaz de absorvê-los.

Os bancos deveriam ser obrigados a fazer negócios com derivativos nas bolsas e ter margens de segurança dos dois lados, da mesma forma que quando uma pessoa tem uma conta com um corretor de ações; é ok emprestar dinheiro, mas é preciso ter uma certa margem de segurança; e então, se alguém enfrenta um problema, tem margem suficiente para cobrir as perdas e cair fora. Da forma como é hoje, não é feito através de bolsas, não tem transparência — ninguém sabe quem está fazendo o que — e não há margem de segurança. A indústria reclama que adotar margens sairia muito caro, vai prejudicar os negócios. É como dizer que ter de pagar por seguro de saúde ou seguro da casa própria prejudica meu negócio — mas é o preço da segurança. Se não houver seguro de graça, tem de pagar.

Naturalmente que a indústria está lutando com unhas e dentes, porque já não pode mais criar crédito, já que o setor privado não pode mais assumir dívida; se eles forem forçados a abandonar o proprietary trading nas suas próprias contas, como a regra Volcker exige; se forem forçados a negociar os derivativos em bolsas — então não serão mais a grande fonte de criação de riqueza e seu controle e exercício do poder político serão grandemente diminuídos. Eles estão tentando desesperadamente manter sua capacidade de criar riqueza em um ambiente muito difícil. O creditismo é muito menos estável ou sustentável que o capitalismo industrial — e parece estar bem próximo do abismo.

NLR: Então não há esperança de que legislação financeira reforme o setor? Você argumentaria em defesa de sustentar o sistema bancário, porque seria um desastre global se fosse reestruturado?

Richard Duncan: Não diria que não tenho nenhuma esperança nisso, mas é muito difícil, porque teriam de encontrar uma forma de reestruturar o sistema bancário sem causar seu colapso completo e não sei se existe tal fórmula. Não sei o que vai acontecer com o sistema bancário. Não está claro como eles vão continuar lucrando se não podem aumentar a oferta de crédito e não podem expandir a porção sem regulamentação do mercado de derivativos na mesma taxa exponencial. O problema é que se o sistema bancário falir, vai destruir tanto crédito que tudo o mais desabaria, da mesma forma que desabou quando os meios de pagamento foram destruídos em 1930 e 1931. Agora é a oferta de crédito que os formuladores de política estão determinados a impedir que se contraia, pela mesma razão.

Não penso que vão deixar qualquer banco europeu falir. Em novembro de 2011 houve muita conversa sobre a falência dos bancos franceses, mas estava claro que o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional iriam resgatá-los. Caso contrário, o Banco Central dos Estados Unidos socorreria, por exemplo, o Société Générale — se o Soc Gen falir, o Deutsche Bank cai e, em seguida, o J.P. Morgan. Vão todos falir juntos. Então seria o caso de resgatar o Soc Gen — ficaria mais barato que o Banco Central dos Estados Unidos resgatar todo mundo. Não há escolha. Não deu outra, o Banco Central Europeu deu uma cambalhota [mudando sua posição], imprimiu um trilhão de euros e salvou todo mundo. É o que vão continuar a fazer enquanto for possível, porque sabem que do contrário haverá o colapso dos anos 30.

NLR: Trabalhar as formas positivas e negativas do creditismo — parece ser o essencial do que você defende. É o sistema que temos, mas devemos assumir o controle dele, adotar programas de perdão de dívida e estratégias de investimento racional que prometam ser produtivas.

Richard Duncan: Exatamente. Penso que da próxima vez poderemos fazer melhor.

http://ponto.outraspalavras.net/2013/01/16/richard-duncan-da-crise-da-divida-as-alternativas/




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