Escola Pública hoje:relatando e refletindo um pouc
Escola Pública hoje: relatando e refletindo um pouco mais
Regina Milone
- Relatos acompanhados de reflexões sobre mais alguns casos que acompanhei, trabalhando como pedagoga em escolas públicas:
- Milicianos e traficantes: esses costumam ser os heróis da garotada, os que parecem fortes, poderosos, os que as meninas querem namorar e aqueles pra quem os próprios pais, muitas vezes, empurram suas filhas para ganharem presentinhos, para elas e para toda a família, à custa de favores sexuais, prostituindo as próprias filhas. Tive oportunidade de acompanhar vários casos desses.
- E as brigas entre os alunos? Espelhando o que viam em casa, queriam resolver tudo aos socos e pontapés, tanto meninos quanto meninas. Tive que intervir, para separar, algumas brigas feias, de onde saí machucada. Certa vez, uma mãe de adolescente de uns 14 anos de idade chegou à escola aos berros, com um pedaço de pau na mão (parecia um cabo de vassoura), querendo falar com a filha dela, que havia brigado fisicamente com uma colega na véspera, para entregar o pedaço de pau para a menina se vingar da outra com quem havia brigado. E ainda dizia: “se ela não encher essa garota de “porrada”, eu é que vou encher a minha filha de porrada, porque filha minha não apanha de ninguém!”. Consegui acalmá-la, depois de muito tempo e com a ajuda de outras pessoas da escola, fazendo-a assinar um documento onde admitia tudo que tinha dito e feito desde o momento em que pisou na escola aos berros, documento este em que pedia desculpas, pois era o único jeito de termos alguma garantia de que ela nem a filha esperariam a outra garota lá fora da escola para surrá-la, depois do horário das aulas, pois, se fizessem isso, levaríamos o documento à polícia.
Aliás, os alunos em geral, dessas comunidades, costumam apanhar muito em casa, o que os próprios pais e/ou responsáveis nos contavam como se estivessem, dessa forma, cumprindo com suas obrigações de pais. Não havia ou pouco havia diálogo e sobravam agressões de todos os tipos.
- Outra questão seríssima: as doenças se multiplicam. Os profissionais, pelas péssimas condições de trabalho e pelos baixos salários, acabam pedindo licenças médicas consecutivas, muitos estão com Síndrome de Burnout, deprimidos, estressados, tristes e irritados. Convivendo com o que eles têm que conviver dentro das escolas, passamos a ver quantos motivos realmente eles tem para isso e é muito triste, pois uma profissão tão importante e fundamental como a de professor anda cada dia sendo mais desrespeitada e desvalorizada. Como encontrar ânimo para continuar assim?!
- Em relação aos alunos e suas famílias, as histórias são tristíssimas. Não só as de violência, que são tantas – muitas vezes as mães, por exemplo, têm que agüentar um homem alcoólatra, que bata nelas porque não têm família, dinheiro nem outro lugar pra ir -, mas também as histórias de lutas admiráveis, mesmo em meio a tanta pobreza, de tantas pessoas que trabalham muito para que seus filhos possam vir a ter uma vida melhor do que a delas, o que, com a escola que temos hoje, dificilmente acontecerá. É um funil apertado, por onde pouquíssimos passarão. A maioria não chega nem ao Ensino Médio (antigo 2º Grau).
- Outro problema cada dia mais grave e presente nas escolas é o da gravidez na adolescência, que contribui muito para que o quadro de pobreza e ignorância se perpetue. Desenvolverei esse assunto em outro artigo depois, pois merece uma atenção mais individualizada.
- O medo da violência também é muito grande. Uma das escolas onde trabalhei era quase como se fosse o quintal da casa de um vereador miliciano, perigoso, que empregou toda a sua família lá. Escrevi sobre essa escola aqui no blog, no artigo “Cargos de confiança, milícias… e como fica a Educação???” - http://diariodoprofessor.com/2012/09/19/cargos-de-confianca-milicias-e-como-fica-a-educacao/.
Lá, as pessoas não tinham o menor conhecimento ou competência para estarem nos cargos que estavam, mas a Secretaria de Educação dizia que aquele era “um caso sério” e deixava tudo como estava. Nessa escola, vi horrores: professores e outros profissionais da escola xingando, berrando, puxando orelha de alunos, colocando apelidos depreciativos – o bullying existe em todos os níveis e escolas, não só entre alunos – e piorando quadros que já eram bastante complicados. Certa vez deixaram um menino de oito anos de idade se batendo, preso na secretaria da escola (não era meu dia lá), até ele se cansar. O garoto esmurrava a própria cabeça e ninguém achou nada demais, pois já estavam grudando nele o rótulo de “maluco”… E ainda nessa escola, fui procurada por um padrasto desesperado, dizendo que a mãe (esposa dele) ia matar os três filhos e que ele não conseguia fazer mais nada, pois ela era amiga dos poderosos lá da comunidade e o matariam se ele se metesse. Fiquei atrás do Conselho Tutelar, muito preocupada com a situação – eu ia fazer uma denúncia anônima para a polícia, mas me desaconselharam, pois a mulher (a mãe), com quem eu já havia discutido, saberia que tinha sido eu e se vingaria -, mas o Conselho Tutelar não fez absolutamente nada, como acontecia em geral, e as crianças continuaram sofrendo com as surras e o abandono da mãe (sumia dias e deixava-os sozinhos; quando voltava, surrava-os constantemente, etc.). Era sempre um jogo de “empurra-empurra”, onde as desculpas sempre são a falta de pessoal, a falta de ajuda de outros órgãos, etc. Detalhe: os cargos do Conselho Tutelar também são de confiança, isto é, não são concursados e os funcionários parecem não saber nem o que estão fazendo ali!
E esses exemplos que estou citando aqui são apenas alguns entre milhares que acompanhei, direta ou indiretamente.
- O Sindicato dos Educadores é atuante, mas geralmente bastante corporativista, como pude ver em alguns episódios que acompanhei de perto, e mantém uma postura de esquerda radical antiga, sem nenhuma reflexão ou autocrítica a respeito, como se ainda vivêssemos há pelo menos uns cinqüenta anos atrás!
Aliás, a falta de autocrítica é um dos maiores problemas, em geral. Cada segmento – alunos, professores, pedagogos, administradores, funcionários, etc. – estão sempre acusando uns aos outros, mas mostram-se intolerantes na hora de ouvir o outro, se colocar no lugar dele, se interessar realmente e, com isso, rever a si mesmo, às próprias atitudes, idéias e emoções.
- Os preconceitos são muitos. As crianças continuam sendo rotuladas, desde cedo, por colegas e, algumas vezes, também por professores (e os que não concordam com o bullying, também não o levam muito a sério e, por isso, pouco fazem), com apelidos humilhantes, depreciativos que reduzem sua auto-estima, já baixa, à zero. Como aprender qualquer coisa assim? Como o cognitivo pode funcionar nessas condições emocionais tão adversas? Não tem como!
- Ouvi coordenadores e pedagogos dizendo pra mães de alunos, por exemplo: “a senhora ‘dá mole demais’ pra ele; o garoto precisa apanhar mais!”. Parece inacreditável e, no entanto, é cotidiano. É considerado “normal” agir assim.
- Certa vez ouvi, em Reunião de Professores, que bom era o tempo da Ditadura Militar, que não era essa bagunça de agora. Que naquele tempo, os alunos tinham que obedecer, obedeciam e pronto. Além desse exemplo, sempre foi comum ouvir, dos profissionais da escola, que o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente; ECA era geralmente pronunciado como a expressão “ecaaaa!!!”, de nojo de alguma coisa -, era um horror, que só tinha servido pra piorar a Educação, porque agora nem tocar em um aluno eles podiam, senão o aluno poderia denunciá-los pra polícia. Quer dizer, se pudessem, ainda apelariam para a violência física com esses alunos e achando que tinham todo o direito!
- É claro que existem os profissionais idealistas, ainda abertos às mudanças, mas são minoria e, com os anos de trabalho, muitos acabam se cansando, pois dar aula em escola pública, hoje em dia, virou uma verdadeira guerra, tremendamente desgastante, onde os professores passam mais tempo tendo que tentar organizar minimamente a turma, que não ouve, não quer saber de nada, é agitada, agressiva, etc., para poder simplesmente começar a dar as suas aulas.
- O conhecimento que a escola insiste em passar hoje é o mesmo de muitos anos e não faz mais o menor sentido para essas turmas. Se na minha época de aluna – tenho 51 anos -, já nos perguntávamos pra que estudar determinadas coisas, hoje em dia isso é ainda pior, até porque existe um pragmatismo que faz com que esses alunos só valorizem, em geral, aquilo que vai servir para que ganhem bastante dinheiro, rápido e ainda jovens. O conhecimento em si, a curiosidade por aprender coisas novas, anda cada vez mais escassa nesse universo concreto, estreito, sem poesia ou imaginação. E isso atinge a maioria dos pais, alunos, professores, coordenadores, diretores e pedagogos, infelizmente. Dessa forma, a inteligência que se desenvolve, quando se desenvolve, é fragmentada, parcial, pouco capaz de abstrair e de criar.
- Embora a escola seja laica, na prática não é bem assim que funciona. Uma questão muito presente nas escolas públicas é a da religião, sendo a evangélica a dominante. Em muitos casos a religião funciona como consolo e companhia para muitos, consegue ajudar, contribui para estimular a perseverança, mas, em muitos outros casos, reforça um moralismo antigo que só reforça a idéia de que aluno bom não é o que questiona, critica ou cria alguma coisa original e sim aquele que é quietinho, obediente e conformado.
- A maior queixa de todos, dentro da escola, é a questão da disciplina. E é o que esperam, na prática, que o orientador educacional (meu caso) faça, como se alguém, sozinho, pudesse “disciplinar” toda uma instituição! Além disso, não é papel do pedagogo, seja do orientador pedagógico ou educacional, ficar resolvendo problemas de disciplina! Podemos ajudar nisso e só. Não somos “super-heróis”! E ainda acabávamos sempre criticadas por não estarmos dentro de sala de aula e, por isso, “não sabermos o que eles, professores, passam”! Mas os pedagogos também são professores e já deram aula, como eu, fato que muitos professores desconhecem ou esquecem na hora de criticar.
E, mesmo não sendo o nosso papel, quando levamos idéias para ajudar nesse quadro – e levei muitas! -, sempre ouvíamos: “ah, isso aqui não funciona não!”, “com esses alunos? Nem pensar!”, “isso é muito teórico; na prática não funciona” (mesmo sem ter tentado), “isso não tem nada a ver com os nossos alunos”, etc. Isto é, as resistências são muitas e dificultam tremendamente que ao menos um início de mudança aconteça. São baldes de água fria por todos os lados…
Mas a ânsia maior dos profissionais da escola é essa: disciplina. Ainda hoje, em pleno ano de 2012, essa é a maior preocupação e o maior desejo de todos. Mas, como não era e nem é a minha, embora considere disciplina importante sim, mas dentro de todo um contexto muito maior que precisa ser modificado, acabei desistindo do trabalho naquelas escolas. Depois de anos, adoeci pelo imenso desgaste e acabei parando, com Síndrome de Burnout (escreverei um próximo artigo só sobre isso), embora continue educadora e mantenha contato próximo com quem fiz amizade.
- Usando um pouco a Psicologia para pensar alguns aspectos desse quadro todo, vemos que uma das formas de manifestação da Sombra – todos nós somos luz e sombra, consciente e inconsciente – é quando aparece como mecanismo de defesa e/ou de resistência e negação. Podemos citar Sacha Nacht, psicanalista freudiano e um dos teóricos da “análise das resistências”, para quem a regra fundamental adquire valor sobretudo se o paciente não consegue segui-la. Suas dificuldades em associar traduzem resistências, sendo a análise destas um momento essencial para alcançar o inconsciente, isto é, no caso das escolas, para alcançar o que existe de menos bem intencionado em cada um que dela faz parte é necessário vencer muitas resistências. Em outras palavras, em relação às escolas, encarar a Sombra e conhecê-la melhor é importante até para ajudar a descobrir o que pode existir de positivo e que também esteja escondido ou mascarado por ela. Sem olharmos o que está escondido dentro de cada um de nós e debaixo dos tapetes das instituições, secretarias e ministério da educação nesse país, fica difícil se pensar em qualquer mudança realmente profunda e estrutural no cotidiano escolar.
Infelizmente, pude observar como a “sombra” é vista e assumida por pouquíssimos – isso foi algo que ficou muito claro para mim -, e, por isso, escolhi seguir nas áreas de Educação e Saúde de outra forma, escrevendo neste blog, por exemplo.
E vocês???
Regina Milone
Pedagoga, Arteterapeuta e Psicóloga
Rio, 26/10/2012