Quando a Educação para adultos funciona

Quando a Educação para adultos funciona

 

Quando a Educação para adultos funciona
Estevan Muniz

 

cieja

Ao contrariar métodos tradicionais e despertar alunos para aprendizado em convivência, escola revela: suposto “declínio” da EJA é consequência do tradicionalismo, não do desinteresse do público

 

Caminhar pelo Centro de Integração de Educação de Jovens e Adultos (Cieja) de Campo Limpo pode ser uma aula sobre o que é democracia e inclusão – na prática. Pessoas com necessidades especiais, entre cegos, surdos, mudos, com síndrome de Down, compõem os círculos – e não fileiras – das salas de aula. Todos podem estudar. Adolescentes e idosos que não tiveram a oportunidade de frequentar a escola quando crianças procuram, juntos, se graduar no ensino básico.

Localizada na zona sul de São Paulo, próxima às favelas do Parque Santo Antônio e do Godoy, o Cieja Campo Limpo faz parte de um modelo desenhado pela prefeitura de São Paulo no início da década de 1990, que previa a ampliação do atendimento de Educação de Jovens e Adultos (EJA), tradicionalmente uma modalidade oferecida só à noite, para vários turnos ao longo do dia, adaptando-se às obrigatoriedades dos trabalhadores paulistanos.

Em três anos, a quantidade de alunos jovens e adultos na rede pública caiu 17,2% e diversas salas de aula de EJA foram fechadas no Brasil. De 39,1 milhões de matrículas que o país tinha em 2009, o país passou a ter 32,4 milhões neste ano. As razões? São várias. Para o Fórum EJA-SP, um grupo da sociedade civil que reivindica políticas públicas para a modalidade, trata-se de falta de interesse do governo. Uma de suas integrantes, a historiadora e doutora em educação Maria Alice Santos, que também faz parte do projeto MOVA-Brasil, um movimento que promove a alfabetização em diversos estados do país, disse à RBA acreditar que as políticas públicas são sustentadas por um pensamento de que apenas a alfabetização basta.

Segundo ela, o governo federal investe muito no Programa Brasil Alfabetizado, que prevê exclusivamente o ensino da leitura e da escrita, mas falta adotá-lo também na escolarização dos jovens e adultos.“O aluno fica entre oito e onze meses no Brasil Alfabetizado, mas se ele não amplia o conhecimento da escrita e da leitura, esquece-o. O aluno que passa por um período de alfabetização precisa garantir seu direito à continuidade”, disse Maria Alice.

E ela também aponta que há pouco investimento na divulgação do atendimento, já que os governos estaduais e municipais afirmam que fecham as salas de aula de EJA, por falta de demanda. Mas, para a coordenadora do Cieja de Campo Limpo, Eda Luiz, a escassez da demanda é devido a um problema de concepção de educação.

Enquanto o número de matrículas nas outras escolas segue em queda constante, a escola que ela coordena manteve-se a todo vapor, com um corpo de alunos que só não cresce por falta de espaço. “A maioria das escolas trata os alunos de EJA como se fossem crianças. A escola regular é formatada para atender crianças de 5 a 14 anos e não está preparada para receber a modalidade EJA”, comentou. Ela critica que a maioria do atendimento em EJA é feito por escolas comuns, que abrem suas portas somente à noite. “O modelo dos Ciejas foi criado pela prefeitura Luiza Erundina para expandir o atendimento de jovens e adultos para além da noite. Em uma cidade como São Paulo, que funciona 24 horas, não pode se pensar que os trabalhadores só podem estudar à noite”, disse Eda.

O Cieja Campo Limpo – o maior da cidade – atende seus 1.492 alunos matriculados em seis turnos pela manhã, tarde e noite. Neste período, os alunos são as pessoas que de fato trabalham o dia todo. À tarde, são as donas de casa que estudam. E pela manhã, são as pessoas que trabalham durante a noite inteira e que vão descansar só depois da aula. O aumento de períodos disponíveis foi bem sucedido no modelo inicial desses centros de educação de jovens e adultos, que foi ampliado na prefeitura de Marta Suplicy, responsável por criar dez unidades e inserir a educação profissional no modelo, nomeando-os Centros de Educação Integrada de Jovens e Adultos.

Em 2006, o governo municipal de José Serra (PSDB) considerou o programa dos Ciejas irregular. E, como à época havia um embate entre municípios e estado sobre qual ente federativo deveria assumir financeiramente o atendimento em EJA, o então prefeito decidiu extinguir os Ciejas e repassar as turmas para os cursos noturnos nas escolares regulares.

Eda e seus alunos, que teriam de deixar de estudar, com o fim do Cieja de Campo Limpo, se mobilizaram e conseguiram impedir os planos de Serra. Seu então secretário de Educação, Alexandre Schneider, deu a Eda a responsabilidade de reestruturar o projeto dos Ciejas. “Passei dias visitando todos os Ciejas do município, vendo o que cada qual precisava, conversando com coordenadores, alunos e professores. Posso me orgulhar que esse projeto tenha sido construído pela população”, contou ela. Eda conseguiu manter as portas abertas dos centros, e hoje há 13 deles na cidade. Mas só os do Campo Limpo e Butantã, na zona oeste, adequaram-se à sua proposta de oferecer tratamento aos estudantes diferentes das escolas regulares e com gestões democráticas.

“Imagine um adulto que trabalhou o dia inteiro, saiu correndo do trabalho, correu do ponto de ônibus e, quando chega na porta da escola, dizem a ele que não pode entrar, porque está atrasado, e terá de esperar pela próxima aula. Ele se cansa. É por isso que a desistência é tão grande”, disse Eda. Para ela, as escolas que oferecem a modalidade EJA têm de envolver os estudantes em seu regimento e na manutenção da estrutura. No Cieja Campo Limpo, todos os conflitos são resolvidos em assembleias.

Juntos, professores e estudantes estabelecem regras de comportamento para resolver cada problema de convivência. “Temos discussões, não confrontos. Os mesmo meninos que causam problemas fora da escola precisam saber que aqui tem limites. Aqui pode estudar quem quiser, mas não é terra de Deus dará, pelo contrário, eles sabem que quando entram aqui têm de se respeitar, de se cumprimentar, e que não podem fumar”

Quem já trabalhou em escolas públicas pode ser surpreender ao saber que são os próprios alunos que cuidam da merenda escolar, sendo responsáveis pela despensa da escola. “Quando a prefeitura passou a nos dar merendas, por muitos dos nossos alunos serem pobres economicamente, eles pegavam muitas unidades e levavam pra casa. Desse jeito, os mantimentos acabavam de forma muita rápida e ficávamos dias sem os lanches. Eles, então, passaram a fazer uma distribuição mais coerente. É mais ou menos assim que se dá o ensino com jovens e adultos”.

Parte da estrutura do Cieja Campo Limpo, que ocupa duas grandes casas, foi cedida pela prefeitura, que sustenta o quadro de funcionários, e parte doada pelo empresário Marcos de Moraes – conhecido por se envolver com projetos sociais na periferia paulistana – entretanto, são os estudantes e funcionários que trabalharam nas reformas, nas decorações e na limpeza dos espaços.

“Quando fizemos a última reforma, ficou tão bonito, que os alunos preferiam ficar aqui do que em suas casas. Eles pediam licença pra trazer a família, sentavam no pátio, tiravam foto e mandavam para os amigos, dizendo: ‘olha a casa onda eu estudo’. As meninas, quando conheciam namorados novos, não levavam em suas casas, porque muitas não tinham nem banheiros, e me pediam para marcar encontros no jardim”, contou Eda.

A escola faz uso do Método Paulo Freire, que parte dos contextos sociais dos estudantes para se fazer a alfabetização, e usa o modelo das Escolas Democráticas. O Cieja Campo Limpo cumpriu um papel importante de ajudar a pacificar as favelas do Godoy e do Parque Santo Antônio, de acordo com ela. Essas duas comunidades têm gangues e organizações criminosas que estão em conflito entre si. Muitos estudantes do Cieja são integrantes desses grupos.

“Quando eles entraram aqui, falavam uma para o outro: te espero lá fora etc. E muitas brigas aconteciam, e eu tinha de entrar para separar. Mas o que eu fiz? Tirei as carteiras e coloquei mesas sextavadas. Se ia cuidar de jovens e adultos, não podia ter carteira. Carteira é pra criança. Queria que os estudantes se enxergassem e convivessem. Tínhamos policiais e meninos da Fundação CASA, evangélicos e umbandistas estudando juntos. E na mesa sextavada, você tem que interagir com todos, os problemas têm de ser resolvidos. O trabalho em grupo fez com que eles fossem se aceitando e percebendo que podem ter suas convicções, mas têm de se respeitar”.

A escola tem turmas especiais para alunos com síndrome de down e outras necessidades especiais. A cada estudante especial que chega às portas do Cieja Campo Limpo, a direção da escola procura um professor e recursos junto à prefeitura, para atendê-los. Ronildo, que é cego, já foi um dos alunos. Ele nasceu deficiente visual, sua mãe foi embora de casa quando ainda era criança, e o pai cuidou sozinho dele e de seus irmãos. Logo cedo, aprendeu acordeão e violão e passou a pedir esmola no Largo Treze de Maio, também na zona Sul. Pensava que era o único destino possível a pessoas cegas, mas passou a frequentar o Cieja Campo Limpo, aprendeu a ler, formou-se e hoje é advogado e professor de deficientes visuais na escola.

A boa experiência com cegos atraiu, inclusive, pessoas favorecidas economicamente. Eda contou que suas salas recebem um engenheiro e uma enfermeira que perderam a visão e, agora, aprendem braile. Com o método do Cieja Campo Limpo em ação desde 1997, hoje, estudantes que antes eram traficantes e, segundo Eda, não tinham qualquer preocupação comos demais, ajudam a muitos cadeirantes a subir e descer as rampas dos corredores da escola “Assim que eles chegam, têm de saber que aqui todo mundo ajuda todo mundo. É a importância da concepção de educação que você tem. Temos de pensar: o que esse homem e mulher pensam da vida?”.

Para a socióloga Helena Singer, talvez a maior autoridade em educação democrática no Brasil, o modelo do Cieja Campo Limpo pode ser uma solução para o problema da queda no número de matrículas de EJA. Ela é diretora pedagógica da Associação Cidade Escola Aprendiz, uma organização que milita pela educação integral e fomenta a criação das chamadas “bairro-escolas”, uma combinação entre escolas, famílias e comunidades em torno do processo educacional, e é também uma das fundadoras do Instituto de Educação Democrática Politeia, que se pretende uma “incubadora” de escolas democráticas.

Helena estudou o Cieja Campo Limpo em seu pós-doutorado e frequentemente leva às suas instalações os integrantes dos núcleos de pesquisa do Cidade Escola Aprendiz , para eles conhecerem o trabalho de Eda e de sua equipe. “A gente leva a Eda nas escolas que a gente trabalha, e vice-versa. Temos muita troca, é uma cooperação”, disse.

Ela explica que as escolas democráticas são comunidades de aprendizagens, autogestionadas, com participação iguais de estudantes, professores e funcionários. “Transformar essas escolas em comunidades de estudantes adultos é uma solução. Acredito que a proposta pedagógica do Cieja Campo Limpo tem todas as condições de ser universalizada e não depende de um grupo, ou de uma diretora sensacional. Se tiver vontade política, dá pra fazer”, afirma.

Para ela, reunir-se para discutir as regras da escola são um remédio contra a evasão. “A assembleia é um dispositivo fundamental pra permanência do estudante na escola, em qualquer nível, mesmo no ensino fundamental, com criança ainda pequena, porque cria o sentido de pertencimento. A pessoa participa da elaboração das regras, e a partir disso ela cria umcompromisso com aquele lugar e se responsabiliza com o efetivo cumprimento das regras estabelecidas. Passa-se a ter uma preocupação com o bem coletivo, o que não acontece na maioria das escolas, porque os alunos são tratados em sua individualidade, e sua participação na escola é super passiva – então, se um aluno abandona a escola, é um problema só dele”, afirmou Helena.

“No nível da educação de jovens e adultos, fazer da escola uma comunidade é ainda mais importante, porque são pessoas já prontas, do ponto de vista do seu amadurecimento social, então elas compreendem a importância que têm e se sentem valorizadas. Quando você trata um adulto como um ser passivo, como uma criança, ele se sente desvalorizado. Então, chamá-lo à responsabilidade que ele já tem, por ser adulto, é muito importante”.

Ela contou que não conhece nenhuma escola tão radical em matéria de inclusão. “É uma escola que tem na sua proposta pedagógica o acolhimento. E isso poderia acontecer mesmo em EJAs noturnos, em qualquer horário, em qualquer estrutura, porque é uma atitude de equipe. Desde o momento que passa a porta, você já se sente acolhido e bem vindo. A escola se molda para que o aluno esteja lá.”

“Se uma mãe tem crianças pequenas e não pode deixá-los sozinhos em casa para ir à escola, pode trazer os filhos que eles serão cuidados enquanto ela aprende. Se é um cadeirante, que não consegue se movimentar direito, seus colegas vão ajudar a empurrar a cadeira. Quando chegaram os surdos, os professores foram estudar libras. Aí chegaram os cegos, e eles foram atrás do equipamento de braile. A escola vai fazer o que for preciso para manter o aluno ali, qualquer que seja a condição dele”, disse Helena.

De acordo com ela, há poucas escolas democráticas no Brasil. “A legislação brasileira prevê os conselhos escolares, como uma representação discente e docente na gestão da escola. Só que na prática, eles não acontecem. Em geral, não passam de uma estrutura que está só nos papeis. Só se efetiva em escolas que assumem isso como proposta política pedagógica”. Para Helena, as políticas públicas deveriam fortalecer os processos de criação de projetos político-pedagógicos das escolas comuns e das que atendem jovens e adultos.

O projeto político-pedagógico, chamado de PPP, é o que indica os caminhos do ensino de uma escola e determina qual será seus objetivos. Ela explica: “é a identidade da escola. O projeto político-pedagógico seria o resultado de um amplo processo envolvendo os professores, os alunos, os funcionários e a comunidade, onde a escola está inserida. Seria um processo de construção do papel daquela escola naquele lugar. Só que isso está em lei, mas não tem políticas públicas eficientes pra fazer isso funcionar. As políticas são muito fragmentadas e visam formação de professores e distribuição de merenda e de material, e essas coisas fragmentadas nunca vão dar conta de transformar uma escola em uma comunidade”, disse.

 

http://www.professoramarli.com/artigos2013/art89.html

 




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