Inconstitucionalidade PL daESP
PARECER: PL 136/2017 – Rio Grande/RS – INCONSTITUCIONALIDADE
EMENTA: PROJETO DE LEI 136/2017 – VÍCIO DE INICIATIVA – INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL.
1. Cabe ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa de Projetos de Leis que versem sobre a organização no ensino. Logo, eventual proposta da Câmara de Vereadores nesse sentido resulta em vício de iniciativa.
2. A Constituição Federal garante ampla liberdade de ensino, e pedagógica, a liberdade de expressão e o pluralismo de ideais como princípios da educação, garantias estas que não podem ser violadas por norma infraconstitucional que vise impor condutas que cerceiem a ação dos educadores.
3. No mesmo sentido, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDESC) e o Protocolo de San Salvador, documentos em que o Brasil é signatário, estabelecem a ampla liberdade de ensino visando a inclusão das diferenças étnicas, sociais e de orientação sexual, tendo ambos força Constitucional.
4. Desta forma, o PL 136/2017 goza de total inconstitucionalidade formal e material, devendo ser rejeitado pela Câmara de Vereadores e, caso aprovado, vetado pelo Chefe do Poder Executivo.
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Veio para análise o Projeto de Lei nº 136/2017, protocolado sob o número 3867/2017, pelo Vereador Júlio César Pereira da Silva (PMDB), na Câmara do Município de Rio Grande.
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A referida proposta tem por objeto a instituição, no âmbito do sistema municipal de ensino, do “Programa Escola Sem Ideologia de Gênero”. Dentre os principais pontos indicados na justificativa verifica-se uma preocupação com uma suposta ação ideológica dos professores na formação sexual, política e moral dos alunos, propondo que estes se abstenham de emitir opiniões pessoais sobre questões econômicas, morais, religiosas ou partidárias, “vedando, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero”.
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Propõe, também, que os professores vedem a ação de outros alunos neste sentido.
Relatei, agora passo ao parecer.
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Inicialmente, é relevante analisar a existência de competência constitucional da Câmara de Vereadores para apresentar projeto de Lei versando sobre a organização do sistema de ensino. Trata-se de matéria reiteradamente analisada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que entende haver vício de iniciativa neste tipo de projeto:
Ementa: ACAO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. VICIO DE ORIGEM. CUMPRE SER DECLARADA A INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI MUNICIPAL QUE, AO DISPOR SOBRE A ESCOLHA DE DIRIGENTES ESCOLARES, USURPOU MATERIA DE COMPETENCIA PRIVATIVA DO EXECUTIVO LOCAL. AFRONTA AO DISPOSTO PELOS ARTS. 10, 60, II, “D” E 82, VII, DA CARTA ESTADUAL. (7 FLS – D) (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70005357330, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Carlos Stangler Pereira, Julgado em 28/04/2003)
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Há, portanto, flagrante inconstitucionalidade na proposta, em razão da invasão de competência privativa do Chefe do Poder Executivo.
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Quanto ao mérito, estamos diante de um movimento articulado em território nacional que visa impor regras de natureza moral, política e religiosa ao processo de formação dos alunos.
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É importante frisar, no entanto, que a Carta Constitucional de 1988 estabelece como fundamentos da República Federativa do Brasil o pluralismo político e de ideias, a liberdade de expressão e de opinião e a dignidade da pessoa humana. Sendo assim, não pode o poder público estabelecer limites ao ensino dilapidando a capacidade intelectual do professor.
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Destaco, especialmente, os incisos II e III do art. 206 da Norma Fundamental:
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
………………………………………………………………………………………………………………………………..
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
………………………………………………………………………………………………………………………………..(grifamos)
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Ora, se a própria norma superior do nosso ordenamento jurídico concede liberdade para a divulgação de pensamento, de ideias e de concepções pedagógicas, não pode norma municipal dispor em contrário, pois ofenderia de forma expressa regra constitucional imperativa.
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Diga-se de passagem é, no mínimo, uma contradição falar em pluralismo de ideias e neutralidade do estado como pretende o Vereador proponente, pois se o estado é neutro, não é plural, pois garante a predominância exclusiva de um tipo único de pensamento.
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O debate sobre sexualidade faz parte do processo de formação de alunos, da sua própria realidade e vivência, e excluir tal tema do ambiente escolar é o propor o afastamento dos educandos da realidade, sem contar o risco de fomentar o ódio e o preconceito de gênero, raça, sexo e cultura.
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Na prática, o nobre Edil propõe um sistema de organização educacional autoritário, no qual ao aluno é vedado conhecer realidades distintas daquela vivenciada no âmbito familiar. Fazendo uma analogia com a obra de Platão, é como se o estudante vivesse em uma caverna e a este fosse negado o direito de conhecer um mundo distinto das sombras que são pinceladas na parede.
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A proposta, em si, pode produzir um efeito perverso na educação e reforçar o preconceito contra grupos socialmente discriminados e vulneráveis, como bem indica Nota da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UNB) referente a projeto semelhante imposto pelo legislativo de Alagoas:
“O projeto de lei que propõe criminalizar professores sensíveis aos temas dos direitos humanos representa uma grave ameaça ao livre exercício da docência e constitui um retrocesso na luta histórica de combate à cultura do ódio, à discriminação e ao preconceito contra mulheres, negros, indígenas, população LGBTT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros], comunidades tradicionais e outros segmentos sociais vulneráveis”
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No mesmo sentido, a posição da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, vinculada ao Ministério Público Federal:
[…], a Constituição Federal adota explicitamente uma concepção de educação que prepare o/a estudante para o exercício de cidadania, que respeite a diversidade e que, portanto, possa viver em uma sociedade plural e com múltiplas expressões religiosas, políticas, culturais, étnicas, etc.
Esses objetivos de uma educação democrática igualmente estão expressos no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais (PIDESC) e no Protocolo de San Salvador.
O artigo 13 do PIDESC estabelece que a educação tem objetivos de fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais e capacitar todas as pessoas a participar de uma sociedade que favoreça a compreensão e tolerância entre as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos.
Portanto não há neutralidade axiológica no que se refere à realização desses objetivo, que são dirigidos à formação de pessoas tolerantes, que respeitem os direitos humanos e as diferenças.Os estudantes, por outro lado, tem o dever de aprender acerca desses valores, para que a vida em sociedades plurais e a paz em um mundo com tanta diversidade cultural seja possível. Do mesmo modo os pais não têm poder de decisão quanto à obrigatoriedade do ensino desses valores, inclusive quando seus filhos estejam matriculados em escolas confessionais. (grifamos)
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Portanto, além de violar a Constituição Federal, a proposta do nobre Vereador também ofende Normas Internacionais onde o Brasil é signatário.
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Por fim, é importante destacar que o próprio Supremo Tribunal Federal já se manifestou pela inconstitucionalidade de projetos dessa natureza, na ADI nº 5537/MC-AL, com voto lavrado pelo Ministro e Constitucionalista Luiz Roberto Barroso:
Ementa: Direito constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Programa Escola Livre. Lei estadual. Vícios formais (de competência e de iniciativa) e afronta ao pluralismo de ideias. Cautelar deferida. I. Vícios formais da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas: 1. Violação à competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (CF, art. 22, XXIV): a liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias são princípios e diretrizes do sistema (CF, art. 206, II e III); 2. Afronta a dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação: usurpação da competência da União para estabelecer normas gerais sobre o tema (CF, art. 24, IX e § 1º); 3. Violação à competência privativa da União para legislar sobre direito civil (CF, art. 22, I): a lei impugnada prevê normas contratuais a serem observadas pelas escolas confessionais; 4. Violação à iniciativa privativa do Chefe do Executivo para deflagrar o processo legislativo (CF, art. 61, § 1º, “c” e “e”, ao art. 63, I): não é possível, mediante projeto de lei de iniciativa parlamentar, promover a alteração do regime jurídico aplicável aos professores da rede escolar pública, a alteração de atribuições de órgão do Poder Executivo e prever obrigação de oferta de curso que implica aumento de gastos. II. Inconstitucionalidades materiais da Lei 7.800/2016 do Estado de Alagoas: 5. Violação do direito à educação com o alcance pleno e emancipatório que lhe confere a Constituição. Supressão de domínios inteiros do saber do universo escolar. Incompatibilidade entre o suposto dever de neutralidade previsto na lei, e os princípios constitucionais da liberdade de ensinar, de aprender e do pluralismo de ideias (CF/1988, arts. 205, 206 e 214). 6. Vedações genéricas de conduta que, a pretexto de evitarem a doutrinação de alunos, podem gerar a perseguição de professores que não compartilhem das visões dominantes. Risco de aplicação seletiva da lei, para fins persecutórios. Violação ao princípio da proporcionalidade (CF/1988, art. 5º, LIV, c/c art. 1º). 7. Plausibilidade do direito e perigo na demora reconhecidos. Deferimento da cautelar.
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Desta forma, concluímos que não restam dúvidas sobre a absoluta inconstitucionalidade formal e material do Projeto de Lei nº 136/2017, que tramita na Câmara Municipal de Rio Grande.
É o Parecer.
MSC. SANDRO ARI ANDRADE DE MIRANDA
OAB/RS 52.550