Hierarquia entre os direitos
SOBRE A HIERARQUIA ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Por Jailson de Souza e Silva¹ (jailson@observatoriodefavelas.org.br)
Rio de Janeiro – Poucas vezes, em momentos de escrita, senti-me tão indignado, triste, enraivecido e impotente com a situação que vivemos em nossa cidade no campo da segurança pública. Impossível escapar desse sentimento: a situação falimentar do governo do Rio de Janeiro é conhecida de todos. Ela foi provocada pela presença no controle do estado e do governo federal de um grupo político corrupto, incompetente e insensível às necessidades da maioria da população; pela crise econômica nacional/internacional e a queda do preço e da indústria do petróleo. Para sair dela, faz-se urgente a busca de soluções inovadoras e participativas, que contem com o apoio da sociedade e das organizações comprometidas com o desenvolvimento, numa perspectiva republicana, do Rio de Janeiro. O que temos assistido, todavia, é exatamente o contrário: um governo sem legitimidade e capacidade de escapar da paralisia, que escolheu destruir as políticas sociais e se manter no cargo oferecendo benesses a parlamentares e fazendo concessões ao poder judiciário. Que escolheu o desgoverno e a inação como estratégias.
Nesse quadro, chama atenção o processo de desmonte da política de segurança pública, em particular a destruição da estratégia das Unidades Policiais Pacificadoras – UPPs. Não é preciso ser especialista em segurança para se reconhecer que a Policia, especialmente a Polícia Militar, age na atual conjuntura sem qualquer tipo de controle de sua cúpula ou uma estratégia global. Em um quadro de denúncias sucessivas de sucateamento dos equipamentos e serviços das suas forças e estruturas, vemos a ressurgência, com uma intensidade que nos desacostumamos a ver e com maior impacto que antes das UPPs, de práticas de guerra estabelecidas pela polícias, em particular contra uma facção criminosa específica. Jacarezinho, Alemão, Rocinha, Cidade de Deus, Nova Holanda/Parque União: grandes favelas, dentre outras, transformadas em filiais do inferno nas últimas semanas. Tudo em função da ação descontrolada, irracional, de uma polícia que alega não ter recursos nem para combustível, mas promove enfrentamentos de alta intensidade e custo, sem nenhum resultado digno de nota. O que resta depois dessas operações é o imenso gasto de munição, imensa mobilização de policiais e, acima de tudo, a destruição de vidas, humanas vidas: jovens policiais, jovens traficantes, crianças e tantos outros moradores de favelas em que não existe esperança de paz ou de respeito à dignidade humana. Os dados das primeiras semanas do ano são públicos e assustadores, tanto em termos de vítimas das forças policiais quanto de população civil morta em pretensos confrontos. E agora, em Nova Holanda, outra vez, uma criança é assassinada. Quem responde por essa vida? Quem responde por essa morte? Quem vai explicar para essa mãe que sua vida pode voltar a ter sentido e que ela é uma cidadã de direitos?
O mais triste, indigno e chocante é o fato de o que chama a atenção da grande mídia e, por extensão, da maior parte da população, não é o quadro de guerra e suas vítimas, mas o fato de que, seja por iniciativa dos traficantes e/ou por desacerto da polícia, as principais vias da cidade têm sido fechadas em função dos enfrentamentos: Avenida Niemeyer, Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela, …. Nesse quadro, fica exposta para toda a cidade, país, mundo um efeito perverso a mais nessa inacreditável política de extermínio que tem as favelas como arena de guerra. Para a população local, paradoxalmente, esses fechamentos, nesse quadro dantesco, são o menor dos problemas. A ironia é que, talvez, diante deles, o conjunto da população da cidade, ciosa de seu direito de ir e vir, possa começar a perceber os malefícios dessa guerra e condenar essa estratégia suicida. Com isso, na busca de garantir um direito central, talvez todos possam começar a defender a garantia de um direito muito mais fundamental e elementar dos moradores e moradoras das favelas: a vida.
¹ Jailson de Souza e Silva é Fundador do Observatório de Favelas, diretor geral do Instituto Maria e João Aleixo; ativista do grupo em construção “mobilizados pela democracia Radical”.