Heróis farroupilhas questionados
Massacre de Porongos ainda é polêmico porque questiona ‘heróis farroupilhas’, diz historiadora
Luís Eduardo Gomes
Neste 20 de setembro, assim como em todos os outros, o Rio Grande do Sul volta a celebrar a memória da Revolução Farroupilha e dos heróis farroupilhas, eternizada e romantizada pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). Por outro lado, e ainda que se tenha avançando em trazer à tona a história dos negros que participaram do conflito, a participação do corpo de guerreiros Lanceiros Negros ainda permanece à margem da narrativa oficial.
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Em conversa com o Sul21, a Prof. Dra. Daniela Vallandro de Carvalho*, do Departamento de História da Unicentro – Guarapuava-PR – e especialista no tema, explica quem foram estes homens, qual o contexto que os levou a participar da guerra e o que aconteceu com eles após o fim do conflito. Confira a seguir.
Sul21 – Quem eram os Lanceiros Negros?
Daniela Vallandro de Carvalho: Os Lanceiros Negros eram homens escravizados, que foram alçados à condição de soldados farroupilhas. A necessidade de homens nas tropas, bem como a experiência e conhecimento que possuíam, tanto do território sulino, como das lides do homem do campo, necessárias naquele contexto de guerra volante, foram fundamentais para a criação de regimentos que os incorporassem ao exército farroupilha.
De forma geral, esses homens que se tornaram lanceiros foram recrutados entre escravarias distribuídas pelo sul, sudeste e sudoeste e da província. É importante lembrar que durante os dez anos de guerra, nunca toda a província foi farroupilha, isto é, haviam regiões de maior domínio dos farrapos, e outras que jamais tiveram a penetração necessária para ser considerada dominada, ainda que estejamos falando de um tipo de guerra que pode ser chamada de volante, ou de movimentações. Nesse sentido, os escravos da “causa” farroupilha foram, de forma geral, recrutados entre os inimigos do movimento farroupilha. Muitos soldados negros farroupilhas foram prisioneiros de guerra que passaram a engrossar as fileiras farrapas, situação que aconteceu corriqueiramente, inclusive como tática de remonta de tropas, visto que a deserção era uma realidade bastante evidente nos anos de guerra. Em alguns momentos mais em outros menos, mas a deserção sempre existiu e sempre foi um problema a ser sanado pelas elites farroupilhas. Inclusive, os documentos apontam que os primeiros escravos recrutados tenham sido retirados de escravarias de charqueadores de Pelotas que fugiam para Rio Grande e que eram inimigos da causa Farrapa.
Não podemos esquecer que a dinâmica econômica do província acaba sendo afetada durante os anos de guerra, e parece evidente que os farroupilhas primeiro retirassem escravos das propriedades inimigas, para depois, se possível, retirar os seus próprios, a fim de protelar ou minimizar os efeitos da guerra sobre a desorganização das produção econômica das regiões que dominavam. No entanto, não podemos desconsiderar que as formas de recrutamento eram diversas: compulsória, voluntária – haviam escravos que se apresentavam para a guerra – e ainda escravos que seguiam seus senhores como bandos, em uma relação de proteção, fidelidade e troca, ainda que muitos não fossem formalmente soldados. Nesse sentido, a atuação dos escravos foi muito além dos corpos de lanceiros negros como foi além da participação apenas nos exércitos farroupilhas.
Sul21 – Qual foi o contexto que permitiu a criação desse regimento? Quais eram as promessas feitas a eles?
Daniela: Eu falei que os Lanceiros Negros foram recrutados tanto pela necessidade de tropas quanto pela experiência que possuíam. No entanto, se levarmos em conta que os dois regimentos criados se deram nos primeiros quatro anos de guerra, isto é, o 1º Corpo de Lanceiros criado em 1836 e o 2º Corpo de Lanceiros em 1838, a ideia da necessidade de tropas perderia um pouco de força em detrimento da experiência destes homens, pois nos cinco primeiros anos de guerra, ainda que os farrapos tivessem a deserção sempre como horizonte, esse não parecia ser um grande problema entre as autoridades farroupilhas.
O que quero demarcar aqui é que o recrutamento de escravos/soldados para as tropas, sobretudo para os corpos de lanceiros, não era tão desordenado como poderia parecer. Evidente que, em um contexto de guerra, a mobilização se dá de forma diferente aos momentos de paz, ainda assim, haviam certos parâmetros, ao menos, na teoria, que eram preconizados pelos líderes da causa. A ampla documentação que trabalhamos nos apontou que haviam alguns critérios a serem seguidos, como por exemplo a preferência de melhores e mais habilidosos homens para os corpos de cavalaria em detrimento à infantaria. Isso pode parecer pouco importante, mas de fato não era, se dimensionarmos que a Cavalaria historicamente se constituiu em uma arma importante dentro do exército, sobretudo na região sulina.
As possibilidades abertas a estes escravos, de compor uma arma melhor “simbolicamente” que outras, levou a resultados específicos e problemas grandes ao final da guerra. Muitos destes escravos recrutados eram altamente especializados: domadores e campeiros, ofícios desempenhados com maestria por escravos, que adentravam a província ainda meninos através do tráfico atlântico, e que sobre eles recaia um grande investimento de seus senhores. Aprender a lide do campo, domar cavalos, costear gado, remontar cavalhadas, carnear gado, produzir charque, todas estas eram atividades feitas por escravos africanos e crioulos e que exigiam tempo de preparo e de treinamento até atingirem a idade adulta e se tornarem efetivamente homens importantes na composição das escravarias das elites agrárias sulinas. E são justamente esses homens que são buscados para compor esses corpos, o que não impedia que na prática nem todos fossem altamente especializados, mas que havia uma preferência destes e muitos deles existiram nestes corpos, isso temos certeza.
Não se sabe desde quando existiu uma promessa de liberdade condicional aos escravos que lutassem ao lado dos rebeldes farroupilhas, mas é possível que desde o início do conflito isso já fosse uma ideia – mesmo que vaga – que circulou entre as elites rio-grandenses rebeladas, devido à presença de escravos nas tropas (na tomada de Porto Alegre, em 20 de setembro de 1835 eles já estavam lá). À medida que a guerra foi tomando contornos mais definidos e a necessidade de soldados se fez presente, somada à presença de alguns deles já espalhados pelas tropas, a proposta de liberdade condicional tornou-se imperiosa.
Assim, esta foi referendada por dois decretos em maio de 1839 (11/05/1839 e 16/05/1839), os quais traziam implícitos que este acordo tácito entre escravos e rebeldes já vigorava informalmente no sul do Império. Além disso, o primeiro decreto de maio de 1839 respondia a um aviso do Governo Imperial de novembro de 1838, que tentava minar a participação crescente dos escravos nas hostes farroupilhas. No entanto, as autoridades legalistas/imperiais não deixavam de comentar de forma frenética, durante todo ano de 1838, o quanto os farroupilhas estavam armando escravos, e quão perigoso isso estava se tornando, à medida que “armavam seus algozes”. Todavia, esse discurso foi se alterando à medida que esse recrutamento cresceu, e as autoridades imperiais, não sem muita discussão e divergência, passaram eles próprios a chamar escravos à guerra, como forma de desarticular/esvaziar as hostes farroupilhas. “Homens de cor, que estais entre o inimigo, abandonai-os e vindes se apresentar e sereis perdoado e Liberto! Aproveitai-vos”, fora um dos chamamentos dos legalistas a estes homens. Isto é, os discursos e chamamentos com promessas de liberdade ao findar da guerra para os escravos se conformaram, tanto pela necessidade, como pela intensidade que ocorreram, de forma que ambos os grupos em litígio usaram de retóricas para recrutar escravos.
Não há dúvidas, porém, que foram os farroupilhas que deram início ao recrutamento de escravos, mas isso é de fato o que menos importa, e sim sabermos que tais práticas estiveram disseminadas nessa guerra por ambos grupos, como estratégia política dos mesmos. Armar escravos e chamá-los às armas, era necessário e perigoso. Mas ocorreu e deu aos escravos possibilidades antes impensáveis. Como diz o historiador Marcus Carvalho (UFPE), “a guerra foi para estes homens uma experiência transformadora”. O andamento da guerra desenhou seus rumos e criou situações complicadas e difíceis de serem contornadas pelo estado imperial brasileiro ao findar dessa guerra perdida pelos farroupilhas. A questão da propriedade privada e das indenizações pela ida de escravos para as fileiras militares esteve na ordem do dia desses recrutamentos. Muitos proprietários de escravos eram temerários a estes chamamentos por conta da perda efetiva de mão-de-obra e de propriedade privada. Para tanto, muitos reivindicavam do estado indenizações por conceder suas posses à causa.
De fato, muitos foram indenizados pelo Estado Imperial, inclusive ainda durante a guerra. As promessas, no entanto, foram bem eficazes aos proprietários de escravos legalistas, já a promessa de liberdade aos escravos, de fato, pouquíssimo se efetivou. Parte do acordo foi cumprida, isto é, àquela que dizia respeito às elites oneradas com a guerra, traço, infelizmente bem típico das elites políticas brasileiras.
Sul21 – Como o MTG se relaciona com o episódio?
Daniela: O MTG tem uma relação problemática com o episódio, basicamente porque há nele, institucionalmente, uma postura cristalizada sobre Porongos (ainda que eu conheça pessoas ligadas a ele que sejam mais arejados em relação à questão). Explico: há fundamentalmente no seio do MTG uma concepção equivocada tanto de história, como de cultura gaúcha. Todas suas posições, no meu entendimento como historiadora, partem dessas diferenças do que o MTG tem pensado como história do Rio Grande do Sul e o que os historiadores acadêmicos entendem sobre a história do Rio Grande do Sul. Evidentemente que somos mais habilitados a pensá-las do que um movimento que a reivindica como seu dono e que dita seus parâmetros. Todo movimento de conformação identitária e de coletividades parte da mesma lógica: a de inventar tradições, história e mitos para lhes conferir unicidade, liga, dar sentido a seus mundos. Não estou querendo dizer que há necessidade de consenso, mas são posturas diametralmente opostas, por exemplo, quando o MTG entende a história como algo a ser recuperado do passado, algo que foi e que está lá, guardado num tempo longínquo e que não pode ser alterado. A história nem sempre foi e será da mesma forma, ela é alterada a todo o momento. Reformulada, reescrita, reinterpretada, revisitada. Da mesma forma a cultura gaúcha. Por isso falei em cristalização de Porongos. E há outra questão que está ligada a essa forma de ver a história e a cultura gaúcha que é a mitificação da guerra, de seus personagens. Estes, muito mais que personagens históricos, verossímeis e plausíveis historicamente, mas personagens que transpuseram a barreira da história para dar forma à identidade regional, inventar quem fomos para dizer quem somos. A Guerra Civil Farroupilha é um mito fundador da identidade gaúcha, não tenhamos dúvida disso. Mas todos hão de convir que temos uma longa história antes dessa guerra, como também posterior a ela. Mas isso não importa quando se trata de elencar no passado fatos, eventos, personagens e dar a ele um sentido que é conferido do presente. No caso, no século XX, nos idos dos anos 40, quando o MTG foi criado.
Ao macular homens de carne e osso, o MTG retira-lhes humanidade e os alça a condições de heróis. E heróis não são questionáveis. E, por isso, o Massacre de Porongos, como tem sido visto por uma parcela importante de historiadores, ganha tanto peso na discussão. Canabarro e Caxias, só para pegarmos dois envolvidos diretamente no evento, não podem ser entendidos ou aceitos como traidores, por que seria o mesmo que dizermos que os gaúchos todos são traidores, são portadores de um caráter duvidoso. Mas os homens de carne e osso o são, todos eles, passíveis de escolhas, erros, acertos, acordos. Quero deixar claro que acho legítima essa forma de ver o mundo, como essa forma de história e cultura, mas não me impede de entendê-la e analisá-la dentro de discussões maiores, como numa chave de entendimento de identidades construídas e invenções de tradições.
Não vejo problema que as pessoas pratiquem esse “culto às tradições”, mas como todo culto, ele é dogmático, fechado e não incorpora outras perspectivas. Não pode e não deve se renovar, pois estaria descaracterizando aquilo que foi construído como “o verdadeiro gaúcho”. Mas sinto dizer, esse não existe, ele é mais múltiplo do que queremos, mais misturado do que imaginamos. Talvez meu desejo maior como pesquisadora e professora é que isso seja compreendido pelos cultuadores da tradição. Que o debate aconteça. Mas, se há uma perspectiva mais humana, mais histórica, mais verossímil sobre o gaúcho, sobre sua cultura, e sobre a história do Rio Grande do Sul, essa tem sido oferecida é pelos historiadores acadêmicos e suas pesquisas.
Sul21 – A Batalha de Porongos, atualmente, é reconhecida como o palco de um grande massacre dos negros que lutavam de ambos os lados do conflito. Qual era a “versão oficial” da batalha e quando e como ela começou a ser questionada?
Daniela: Para começar, temos que evidenciar que a batalha não foi uma batalha. Há um problema no próprio termo utilizado. Batalha pressupõe um combate de guerra, onde dois lados se enfrentam senão em condições semelhantes, mas passíveis de desenvolver um combate. Não foi o que ocorreu em Porongos, por isso o termo massacre parece o mais apropriado.
De qualquer forma, temos muitas interpretações. Os debates sobre a questão começam já alguns anos após a Guerra Civil Farroupilha, nos idos de 1850, levantada por Domingos José de Almeida. Do que temos conhecimento, ele parece ser o primeiro a questionar se Canabarro teria ou não traído os lanceiros. A partir de então, o fato gerou uma acalorada controvérsia entre os estudiosos que se debruçaram sobre o tema. Tal evento passa a receber diversas denominações – batalha, surpresa, traição ou massacre –, cada uma delas carregando em si os significados e os entendimentos atribuídos ao evento, conforme a interpretação efetuada.
Através da Carta de Porongos, um primeiro grupo de estudiosos defende a tese de que o general farroupilha David Canabarro teria, propositadamente, desarmado e separado os lanceiros do restante das tropas acampadas nas imediações do Cerro de Porongos para que fossem aniquilados pelo exército imperial sem oferecer resistência. Ele desejaria, assim, livrar-se deles para facilitar a assinatura do tratado de paz que vinha sendo negociado, já que o Império do Brasil mostrava-se contrário à ideia de premiar com liberdade os escravos rebeldes. Dar-lhes a liberdade era algo não cogitado pelas elites, pois se temia que um grande contingente de negros livres pudesse não só pôr em risco a estrutura social no qual estava assentada a sociedade escravocrata como também possibilitar que estes homens com larga experiência militar e politizados pudessem incitar outros escravos, insatisfeitos com sua condição a lutarem pela liberdade. Por outro lado, não lhes dar a liberdade também poderia levar os escravos a incitarem insurreições, bem como promoverem fugas em massa para o Uruguai, onde a escravidão havia sido recentemente abolida. Relatos de pessoas que estiveram presentes na batalha informam ainda que o general farroupilha teria sido avisado da aproximação das tropas inimigas e não tomou providências. Por este enfoque interpretativo, o episódio foi considerado uma traição de Canabarro aos soldados negros a ele subordinados.
Outra corrente afirma que a Carta de Porongos foi forjada pelos imperiais com o objetivo de desmoralizar Canabarro, único chefe farroupilha que ainda teria condições de aglutinar as desgastadas forças rebeldes. Felix de Azambuja Rangel, contemporâneo do conflito, deixou relato afirmando ter tomado conhecimento do momento em que Moringue mostrou a citada correspondência a Caxias e este assinou e mandou tirar as cópias posteriormente divulgadas entre os farroupilhas. Manuel Patrício de Azambuja, outro contemporâneo da guerra, teria escutado do próprio Francisco Pedro de Abreu uma confissão desta trama, bem como sua afirmação de que teria produzido bom efeito a “bomba” lançada entre os farrapos. Nesta perspectiva, a Carta seria falsa e o ataque aos lanceiros uma “surpresa”, já que eles teriam sido pegos desprevenidos e não teria havido intenção de seus líderes em facilitar o seu extermínio.
Seja como for, hoje em dia parece haver consenso entre os pesquisadores de que estes guerreiros negros foram atacados em uma situação extremamente desfavorável. Eles estavam extenuados pela longa duração do conflito, em inferioridade de armamentos e de pessoal e encontravam-se desavisados do perigo iminente, sendo eliminados em quantidade considerável. Nesse sentido, a adoção do termo “massacre” não implica necessariamente em adesão à tese da traição ou da surpresa, mas sim o reconhecimento das condições severamente desiguais do conflito.
Sul21 – Quais seriam as versões mais importantes neste conflito?
Daniela: Para mim está claro, dentro das análises que faço, das fontes que tenho e da maneira como problematizei a questão, que há mais evidências indicando que houve um massacre do que o contrário. Não trabalho com a ideia de conflito ou confronto, porque ambos pressupõem uma paridade de forças, e do ponto de vista histórico, não foi isso que ocorreu. Pensando no problema de recrutar escravos em um universo onde escravo não podia ser recrutado por não possuía condição de cidadania, como era o séc. XIX, mas que de fato era recrutado largamente por toda Cuenca del Plata, muito antes da Guerra Civil Farroupilha, pensar nas experiências e habilidades destes escravos cavalarianos dentro do seu processo de especialização escrava, pensar sob a ótica da problemática que se tornou não as promessas de liberdade a estes homens – que abriria terríveis precedentes em uma sociedade que ainda não questionava as estruturas escravistas e tinha sua mão de obra largamente assentada no trabalho escravo, pensar que além das promessas de liberdade havia a promessa de incorporar esses negros como soldados do exército imperial ao findar da guerra (um dos pontos do tratado que pôs fim a guerra), o que geraria um fato no mínimo inusitado ao estado imperial brasileiro e ao exército imperial, qual seja; tornar livres e fazer destes homens que por dez anos haviam pego em armas contra o império, seus soldados imperiais. Isso normalmente é negligenciado quando se fazem análises sobre Porongos.
Nesse contexto e sob estes aspectos, é mais bem plausível o acordo das lideranças interessadas no findar da guerra e a matança de uma quantidade significativa de homens, do que criar problemas futuros insolúveis. Ainda que a solução tomada – o massacre de Porongos – não tenha sanado completamente esses problema. Por quê? Porque muitos outros escravos foram soldados e os que sobreviveram questionaram esses acordo, reivindicaram seus direitos tão anunciados ao longo da guerra, quando imperiais e farroupilhas gritaram aos quatro ventos para que esses homens viessem se tornar seus soldados. Houve de fato, uma disputa de ambos grupos por essa força, por esses soldados, e eles/escravos eram sabedores disso, situações que se expressam em alguns casos analisados onde conseguimos perceber, no pós-guerra, reivindicações não só de liberdade, mas também pela incorporação dos mesmos ao exército na condição de soldado.
Essas são evidencias que estão relacionadas à problematização de uma pesquisa, mas há outras mais pontuais, e que parecem muitas vezes convencer melhor os leigos no assunto, como, por exemplo o fato do documento em si da carta de Porongos. O documento é sabidamente uma cópia, e por muito tempo esse foi um argumento – frágil por assim dizer – que sustentou versões de que esse documento havia sido forjado para macular os heróis farroupilhas. No entanto, fazer cópias de documentos “oficiais” no séc. XIX não era algo estranho, tampouco durante uma guerra como aquela. Não são poucos os documentos que eram ditados por comandantes a subordinados e feito diversas cópias para que fossem entregues a várias outras pessoas. Temos que lembrar que estamos falando de um período onde não existia fotocópia e a forma mais rápida das informações circularem se davam de maneiras distintas de como a nossa racionalidade permite compreender hoje. Dentre outras evidências pontuais, a linguagem usada na Carta de Porongos também é encontrada em alguns outros documentos escritos pelo Caxias, o que nos ajuda a perceber uma forma própria dele de escrever a determinados assuntos e reforça a ideia de que esse documento evidencia sim, tanto um acordo, como é original, se assim podemos nos referir a ele.
Sul21 – Qual foi o destino dos negros que sobreviveram ao conflito e quais as mudanças que a Guerra (ou Porongos) trouxe para os negros que viviam no Estado?
Daniela: Nem todos os escravos recrutados tiveram o mesmo destino. Pelo contrário, seus caminhos foram tão plurais quanto suas participações e inserções na guerra, como tentamos demonstrar até aqui. As fontes nos possibilitaram seguir/reconstruir o rumo de alguns escravos sobreviventes que foram entregues ao exército legalista e, posteriormente, remetidos ao Rio de Janeiro. A partir delas, foi possível compreender a maneira como estes escravos/soldados foram vistos e considerados pelas autoridades por eles responsáveis.
Houve, portanto, um grupo específico de escravos, sobreviventes da guerra, que foram entregues ao Presidente da Província ao final do conflito e remetidos ao Rio de Janeiro. Todos eles pertenceram em algum momento do conflito aos Corpos de Lanceiros Negros que serviram no exército Farroupilha a partir de 1837. Estes homens passaram por experiências semelhantes como o recrutamento, a guerra, os batalhões segregados, a deposição das armas, a travessia da Província de São Pedro à Corte Imperial e uma vida que forjaram, à duras penas, nas instituições militares no Rio de Janeiro.
Os destinos dos escravos que lutaram na Guerra Civil Farroupilha não estavam dados nem escolhidos à priori, conformando-se concomitantemente final da guerra e ao universo político que se desenhava naquele momento. Vários problemas surgiram com o fim do conflito regencial sulino e o Estado Imperial teve de criar formas de solucioná-los, à medida que apareciam. Assim, uma das questões em voga foi o cuidado necessário das autoridades provinciais e imperiais para com os escravos em armas e a possibilidade que estas experiências abriram aos cativos, tanto nos anos anteriores (quando do conflito aberto entre imperiais e farrapos) como nos anos seguintes, quando o Império havia restaurado o controle interno, iniciando os preparativos para conflitos externos no universo platino.
De forma geral, as lideranças farrapas pouco se importaram com o destino de seus ex-comandados. Os negros escravos que Netto outrora comandou foram sendo aos poucos depositados nas Instituições Militares na Corte Imperial, tendo muitos deles vivido por anos nestes lugares em situações precárias, duvidosas e imprecisas, alguns recebendo ração e um mísero soldo (tão mísero que por vezes era abonado em fumo) e vivendo, em sua maioria, como serventes.
Assim, os “escravos libertos” seguiram um trajeto mais ou menos padrão após chegarem à Corte, que incluía serem inicialmente colocados no Depósito de Recrutas da Praia Vermelha, depois remetidos ao Arsenal de Guerra, e de lá, remanejados ao Hospital Militar ou à Fortaleza de Santa Cruz, conforme as necessidades das instituições e a utilidade de cada um em serviços específicos. Ou ainda, conforme as punições que mereciam, devido a seus comportamentos inadequados. A longa travessia feita por estes escravos, desde o momento em que foram entregues às lideranças imperiais, passando pela viagem na Barca “Triumpho da Inveja”, até sua chegada à Corte Imperial e o posterior encaminhamento às diversas Instituições Militares no Rio de Janeiro, constituiu um momento de incertezas, tanto para os que estavam sendo conduzidos, como para aqueles que precisariam agora destinar-lhes funções e lidar com estes homens. Temos ao menos duas trajetórias mais consistentes que são bastante elucidativas das difíceis e imprecisas condições pelas quais esses homens passaram a viver dentro destas instituições, ao menos pelo período de dois anos, inclusive tendo eles, coletivamente (ainda que capitaneados pelo africano Salvador Braga) escrito um abaixo-assinado ao Imperador, pedindo uma definição para suas vidas, expondo a situação em que se encontravam, ou seja, estavam sendo tratados como escravos, embora não os fossem mais. Neste documento, estes negros demonstram ainda que sabiam que muitos outros como eles, isto é, na condição de escravos e agora libertos, já existiam dentro da estrutura formal do exército. Isto é, reivindicavam suas condições de soldados, como lhes havia sido prometida, como condição para decorrente de sua participação na guerra e pelo que havia ficado acordado no tratado que pôs fim à mesma. Assim, dentre as muitas trajetórias analisadas em minha pesquisa, posso afirmar que a condição dos escravos no pós-guerra oscilou entre precariedades, ambiguidades e promessas de melhoria de condições que pareciam não chegar nunca, visto o caso dos escravos remetidos à Corte Imperial.
Em alguns casos mais pontuais, houve certa mobilidade/ascensão social de alguns destes personagens, mas que não estão diretamente ligados ao acordo de Caxias com os próceres farroupilhas no final da guerra, e sim tem a ver com as redes que os próprios escravos criaram com alguns de seus comandantes e que lhes oportunizaram um melhoria nas suas vidas no pós-guerra.
*Daniela é autora da tese Fronteiras da Liberdade: “Experiências Negras de Recrutamento, Guerra e Escravidão: Rio Grande de São Pedro, c. 1835-1850 e, em breve, lançará uma história gráfica sobre o tema