Guerra ao Terror
Nice: a “Guerra ao Terror” fracassou
Como as potências ocidentais participaram diretamente da criação da Al-Qaeda e do ISIS. Por que a restrição às liberdades e novos bombardeios fortalecem o fundamentalismo e deixam populações desprotegidas. Quais as alternativas
Por Antonio Martins | Edição de vídeo: Gabriela Leite
A década de 2010, que começou com o frescor da Primavera Árabe e as rebeliões dos Indignados e Occupy, pode converter-se em retrocesso e tragédia globais. Os fundamentalismos alimentam-se reciprocamente, numa espiral descendente que destrói vidas e liberdades – e, pior, pode comprometer as chances de sair da crise civilizatória de forma positiva.
Diante da brutalidade e covardia do atentado em Nice – provavelmente cometido por um fundamentalista islâmico – , as potências ocidentais estão respondendo de forma bruta e covarde. O presidente francês, François Hollande, anunciou ainda ontem à noite a prorrogação do Estado de Emergência – que suspende direitos fundamentais – e novos ataque na Síria e Iraque. Só aí, a intervenção ocidental matou centenas de milhares de pessoas, além de desencadear uma guerra civil sem fim e tornar o país praticamente inviável. Mais guerra poderá deter o terrorismo?
No vídeo de hoje, vamos examinar dois aspectos centrais ligados ao terror. Primeiro: qual o papel do Ocidente na origem da Al-Qaeda, ISIS e outros grupos? Segundo: por que a proposta atual dos governantes ocidentais – responder à violência do terror com mais violência – satisfaz a indústria da guerra, mas tornará a carnificina maior, expondo as populações civis e desencadeando um enorme retrocesso civilizatório.
Ao condenar o atentado de ontem, que até o momento produziu 84 mortes, o presidente Hollande afirmou: “toda a França está ameaçada pelo terrorismo islâmico”. Seu colega alemão, Joachim Gauck, foi mais longe e garantiu que o ataque expressa “um ataque contra o mundo livre”. Este tom – mundo livre contra barbárie islâmica – está presente nas declarações da maior parte dos governantes ocidentais, e na cobertura da mídia.
Porém, um exame dos fatos mostrará algo que esta mesma mídia cuidadosamente esconde. O suposto “mundo livre” participou diretamente da criação da barbárie representada pelo terrorismo.
Como o cristianismo e o judaísmo, outras religiões monoteístas, também o Islã tem seus ramos ultra-fundamentalistas e violentos. O califa Ali, sucessor de Maomé, foi assassinado, no ano de 661, por um membro da seita Karajita, que pregava a violência como forma de resolver conflitos de poder.
Mas o ressurgimento moderno destes ramos só ocorreu, a partir dos anos 1950, pelo estímulo de governos ocidentais incomodados com um fenômeno que marcou o período. O mundo árabe levantou-se, no Oriente Médio e África, contra a dominação britânica e francesa, estabelecidas desde o fim da I Guerra Mundial. Líderes nacionalistas como Mohammad Mossadegh, no Irã e Gamel Nasser, no Egito, lutavam para restaurar a dignidade de seus países e o controle de riquezas naturais – petróleo, principalmente – capturadas por corporações transnacionais.
A estratégia ocidental foi estimular outra corrente, a da tradição islâmica feudal. Em 1945, nos estertores da II Guerra Mundial, o presidente norte-americano Franklin Roosevelt encontrou-se longamente, a bordo de um porta-aviões ancorado no Golfo Pérsico com o rei saudita Abdul Aziz e deu início a esta aliança.
Trinta anos mais tarde, esta aliança sofreria uma inflexão violenta. Os Estados Unidos participaram diretamente da formação do que seria a Al-Qaeda e cultivaram Bin Laden. Estimularam o terror islâmico como arma de guerra contra a União Soviética, que patrocinava um governo laico no Afeganistão e acabou invadindo o país para apoiá-lo. A história está contada em detalhes neste texto de Outras Palavras. Uma de suas fontes é o grande jornalista inglês Robert Fisk, que se entrevistou três vezes, no Paquistão, com o terrorista saudita.
A participação direta da Arábia Saudita nos atentados contra as torres gêmeas é, aliás, um dos grandes segredos diplomáticos contemporâneos, como mostra este texto, do jornal britânico The Independent.
O fundamentalismo islâmico voltaria a ser usado pelas potências ocidentais, com arma de guerra, a partir de 2011, no Oriente Médio. O Estado Islâmico – ISIS – surgiu no Iraque, como resultado da destruição do Estado Nacional e do acirramento dos conflitos entre sunitas e xiitas, após a invasão do país pelos Estados Unidos.
Num livro fundamental, “A Origem do Estado Islâmico”, o jornalista australiano Patrick Cockburn conta como Washington apostou durante dois anos no ISIS, por enxergar nesse grupo terrorista uma possível mão de gato contra um inimigo estratégico: o presidente da Síria, Bashar Al-Assad. Mesmo depois que esta aliança foi rompida, o ISIS continuou a ser sustentado por dois aliados estratégicos dos Estados Unidos no Oriente Médio: a Arábia Saudita e a Turquia, que inclusive é membro da OTAN, comandada por Washington.
O segundo ponto central a discutir é a ineficácia da chamada “Guerra ao Terror”, e do uso da força bruta como resposta à brutalidade do terrorismo.
Num outro texto publicado em Outras Palavras, o jornalista Roberto Savio aponta as contradições trágicas da estratégia dos governantes ocidentais. Savio destaca, por exemplo: em todos os atentados ocorridos na Europa, e atribuídos à Al-Qaeda e ao ISIS, os terroristas não vieram de fora. Eram cidadãos europeus, em quase todos os casos, ou residentes há muitos anos na Europa. Ou seja: as cercas que agora bloqueiam a imigração, em muitos países europeus, são totalmente ineficazes contra eles.
Ele também frisa: o imenso aparato do Estado Policial é impotente contra o chamado “lobo solitário”, como o terrorista de ontem à noite, em Nice. Quem poderia imaginar que um caminhão de entregas poderia se converter em arma contra multidões? Em que tipo de descrição da Abin brasileira poderia se enquadrar o motorista? Ele usava roupas estranhas? Mostrava-se especialmente nervoso?
Parece óbvio, mas a propaganda ideológica não permite enxergar. Um esforço eficaz contra o terrorismo exigiria, antes de mais nada, o fim da chamada “Guerra ao Terror”. Este texto, publicado no blog do professor Reginaldo Nasser, demonstra que tanto o número de atentados quanto o de mortes multiplicaram-se por dez desde o início desta “Guerra”. Repare, em especial, no gráfico.
Cristãos, muçulmanos, judeus e ateus conviveram e convivem muito pacificamente em diversas partes do mundo – o Brasil, por exemplo; ou a China, que tem uma população muçulmana do tamanho de meia França.
Mas os objetivos da “Guerra ao Terror” parecem ter muito pouco a ver com a ideia de neutralizar o terrorismo. São dois, essencialmente. Primeiro: aumentar até onde for possível os orçamentos militares – algo evidentemente favorável à poderosíssima indústria de armamentos e seu lobby. Veja o orçamento militar dos Estados Unidos, comparado com o de todos os outros países do mundo.
Segundo: estabelecer o que o filósofo Giorgio Agamben chamou de estado de emergência, a suspensão permanente da liberdades individuais. Nos anos 2010, o capitalismo parece cada vez mais hostil à democracia. A grande questão é saber: saberemos reinventá-la, para enfrentar os riscos de uma sociedade comandada pelas forças frias do mercado, da competição e da guerra? Por quais caminhos?
Chama a atenção que não haja, diante deste horizonte turbulento e ameaçador, articulação internacional dos movimentos que lutam para superar o capitalismo. Durante alguns anos, na década passada, os Fóruns Sociais Mundiais começaram a cumprir este papel. Porém, esvaziaram-se e já não repercute. Talvez uma das grandes necessidades do momento seja restabelecer, em novas bases, os laços que se romperam.
http://outraspalavras.net/blog/2016/07/15/nice-a-guerra-ao-terror-fracassou/