Andrea Caldas
A doutora em Educação da UFPR, Andrea Caldas

Em 2008, Andrea Caldas defendeu tese de doutorado em Educação na Universidade Federal do Paraná (UFPR) sobre a desistência e a resistência na carreira docente. Concluiu que os professores tomavam a primeira ou a segunda atitude pelo mesmo motivo. “A desistência é a expressão de fracasso exatamente de quem resistia, daquele que foi o mais envolvido, o mais apaixonado, o que mais deu o seu tempo e sua energia”, diz.

Sete anos depois, como diretora do setor de Educação da mesma universidade e coordenadora do Fórum Estadual de Educação do Paraná, ela acompanhou, chocada, a violenta repressão do governo estadual paranaense, comandado por Beto Richa (PSDB), aos educadores, deflagrada em 29 de abril. “Parecia que eu estava entrando em um filme de guerra. As pessoas desistiram e eles continuavam jogando bombas”, diz. Passadas algumas semanas, ela teme que a repressão vença e prevê que, neste caso, haja novas desistências.

Para ela, o exemplo do Paraná é emblemático de uma situação que ocorre no País todo e aponta para retrocesso. “A maioria das greves não é por conquistas. Os professores estão tentando evitar a perda de direitos”, analisa. Leia relato do que ocorreu:

Carta Educação: Como vinha acompanhando a greve dos professores do Paraná?

Andrea Caldas: Eu tenho acompanhado o movimento há algum tempo porque nós, do Setor de Educação, temos relações próximas com o sindicato e porque eu pesquiso o tema. Desde o início em fevereiro, já vinha visitando acampamento e prestando solidariedade. Na segunda fase, que começou em abril, minha condição de coordenadora do Fórum Estadual de Educação, também incluía esta observação. Estávamos preocupados porque desde que foi deflagrada a segunda fase, em abril, havia um cerco policial ali no Centro Cívico, um aumento do efetivo policial.

CE: Como foi no dia 29 de abril, data da repressão que chamou atenção do País?

AC: No dia havia um clima de tensão por causa da votação do projeto que revê o Regime Próprio da Previdência Social dos servidores estaduais. Sabia-se que o governo ia tentar evitar que os professores acompanhassem, ou mais ainda, tentassem, impedir a votação. Eu estava em casa vendo ao vivo pelo canal de tevê do sindicato. Vi o avanço do batalhão de choque e as rajadas de gás lacrimogêneo pelo helicóptero, coisa que nunca tínhamos visto. Era uma coisa até um pouco esperada a movimentação policial, mas tomou uma dimensão assustadora. Parecia operação de guerra. Nesse momento, a transmissão de tevê foi interrompida porque as pessoas que estavam filmando foram atingidas. Fiquei muito assustada e me dirigi para lá por ímpeto. Tenho alunos, ex-alunos, colegas que estavam lá.

CE: Então você chegou depois dos ataques?

AC: O ato começou às 13h30 e a violência, alguns minutos depois. Cheguei lá às 15h30, as pessoas já tinham se deslocado para a prefeitura, que é 500 metros para frente, em busca de abrigo. Ou seja, não havia mais sinal de resistência. No entanto, nas duas horas que fiquei lá, continuou a repressão. O batalhão não deixou de ir para cima dos manifestantes. A coisa foi assustadora, a sensação era de que estava entrando em um filme: macas passando, gente machucada e a violência seguindo. As pessoas choravam muito. Estavam perplexas. No caminhão o sindicato dizia “nós já recuamos, parem, por favor”, não adiantava.

CE: Quais eram as causas do movimento grevista?

AC: Uma série de benefícios dos funcionários em geral está sob ameaça. A greve dos professores e funcionários da escola teve maior visibilidade porque no caso deles teve uma série de situações que já haviam mobilizado. Uma delas foi o atraso no pagamento das férias em janeiro, a outra foi a interrupção dos salários dos temporários, professores que atuam com contrato precário. Geralmente, eles têm a rescisão do contrato em dezembro e são reencontrados em fevereiro, e enquanto isso, recebem seus direitos pela demissão, que é o que garante sobrevivência. Desta vez, foram dispensados e não foi pago nada. Então, a situação ficou dramática. Muita gente não tinha como pagar as contas. Foram para as ruas vender coisas, sapatos, livros, bijuterias em feiras solidárias de arrecadação. Isso teve um grande apoio da sociedade. Também mudaram o porte da escola e passaram a contratar menos funcionários de apoio e desistiram da contratação dos aprovados em um concurso depois que já haviam escolhido os cargos. A adesão à greve foi de 100%, porque as escolas não tinham quadro suficiente para funcionar. Tinha escola grande que caiu de dez para três serventes e disciplinas sem professor. Normalmente, os diretores ficam neutros ou até contrários em situação de greve. Desta vez houve apoio. Muitos estão, inclusive, sofrendo ameaças de punição.

CE: Como você relaciona esta situação a outras greves de professores pelo País?

AC: São pelo menos nove estados. Acho que o quadro é o mesmo, infelizmente. Um processo muito pautado pela lógica do ajuste fiscal. O governo federal vem anunciando cortes e os estaduais estão aderindo ou porque de fato precisam ou porque aproveitam para enxugar. O que você percebe, de modo geral, e acho que isso é distintivo desse período, é que a maioria das greves não é por conquistas de direitos. São movimentos tentando evitar a perda de direitos conquistados. A greve do Paraná não reivindicava no primeiro momento reajuste, agora chegou nisto por causa da data-base. Com contextos muito distintos é isso que marca em outros estados. Muitos param por descumprimento da Lei do Piso, seja pelo valor, seja pelo direito às horas de preparo remuneradas. Em São Paulo é por condições de trabalho, por causa das salas de aula que voltaram a superar 50 alunos por professor. Talvez vivemos nos últimos anos um relativo aumento salarial, uma série de conquistas na área de educação. Parece, ironicamente em tempos de pátria educadora, que a gente começa a ver um movimento de retração desses direitos.

CE: Há conexão entre a violência e o papel que o professor tem na sociedade?

AC: Um aluno de pedagogia me perguntou: vale a pena a gente continuar? De fato, chocou muito. De um lado, houve apoio muito maciço da população desde o início da greve – as pessoas iam lá voluntariamente levar roupas, mantimentos, os artistas faziam shows, as pessoas acenavam da janela nas passeatas – era uma coisa bonita. Tem também todo um discurso de valorização. Mas quando acontece essa violência fica mais evidente esse choque, o completo desrespeito à causa da educação. Isso se manifesta na forma da repressão, que significa: não vamos negociar, não vamos discutir, quem manda somos nós. Isso explicita uma situação de várias violências que o professor sofre: desvalorização salarial, social, agressões físicas dentro da escola. Acho que foi a explosão desse desrespeito. Isso está muito associado e a desvalorização da educação.

CE: Sua tese de mestrado fala exatamente sobre a desistência e a resistência dos professores, quais são os motivos de quem desiste e de quem resiste?

AC: É um trabalho que gosto muito e que tomou como referência um estudo da Universidade de Brasília, encomendada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação. A minha inquietação era identificar as causas da resistência, porque a gente acha que a desistência está mais ou meio mapeada, são estas que a gente nominou: desvalorização, sobrecarga, sensação de impotência. As pessoas chegam a um ponto que ou desistem ou ficam sem alma, anestesiadas, que é uma forma de sobreviver. Por outro lado, há um grande número de professores que são apaixonados e fazem até mais do que se exige. O mais assustador da nossa conclusão é de que as pessoas são as mesmas, o eixo é o mesmo. Não há pessoas que resistem e outras que desistem. A desistência é a expressão de fracasso, exatamente do que foi o mais envolvido, o mais apaixonado, o que mais deu o seu tempo e sua energia. Digo na minha tese que é a paixão que leva aos dois. Os que não são apaixonados, talvez não se envolvam e adoeçam tanto. Se nestas greves os professores sentirem que tudo que fizeram não vai redundar em melhora, ter ficado no relento, ter apanhado, isso vai resultar em desistência.

CE: O processo é igual há décadas?

AC: A minha tese é de 2008 e os dados são de 1999. São quase 30 anos. São momentos distintos, houve um período muito agudo de políticas neoliberais, precarizações das relações de trabalho nos anos 1990 com uma piora das condições de trabalho nas escolas. Dos anos 2000 para cá, há alguma recuperação econômica e também salarial para a maioria das categorias. Hoje estamos nesta incógnita, não sabemos se vai ser uma volta aos anos 90 ou o que será.

CE: Logo depois da repressão houve comoção nacional. Qual foi o resultado concreto disso?

AC: Vamos ter de avaliar. São duas preocupações. Se esta greve parecer derrotada podemos ter um efeito político muito negativo: as pessoas podem se convencer de que não adianta lutar, principalmente em um contexto de ataque aos contextos trabalhistas que está acontecendo diariamente. Inclusive, tenho falado com as pessoas dos sindicatos de que é preciso que construam uma forma de aproveitar essa resistência para que seja canalizada para outras atividades, de formação e debates que mexam com cotidiano da escola. Mas estou de fato preocupada, porque sinto que nos últimos tempos que o próprio discurso da mídia mudou e isso acaba influenciando a visão social. Tenho ouvido pessoas dizendo que já está na hora de terminar a greve, os alunos estão sendo prejudicados. As pessoas se comoveram pela violência contra os professores, mas não necessariamente significa um apoio à greve como forma de luta.

CE: Como os professores reagem?

AC: Eles estão em crise. Fizeram toda esta manifestação e perderam o processo de reforma da Previdência, que hoje está sendo judicializado, e o governo apresentou uma proposta de 5% de reajuste parcelado que eles consideram que é insuficiente. Ao mesmo tempo, sofrem uma série de ameaças de processos e sabe-se que há muitos casos em que as pessoas estão voltando ou pensando em voltar para as escolas por medo dessas condições. Se a greve começar a ser enfraquecida, vai ser uma derrota.

CE: Como foi o apoio de alunos?

AC: Foram os estudantes mais politizados, envolvidos em movimento estudantil. Teve também uma dimensão do apoio afetivo ao professor de cada um, mas menor. Meus alunos da faculdade, quando cheguei no dia seguinte, falaram que não iam entrar e iam lá prestar apoio. Espero que isso restabeleça boas relações no cotidiano da escola.

CE: Mudar a situação depende só do governo?

AC: Depende muito da decisão política. Tem uma crise econômica, mas se faz opções de onde cortar. Apesar do Plano Nacional de Educação, do lema Pátria Educadora, da convicção de que educação precisa ser valorizada, houve uma decisão de cortar em educação. Há outras áreas, como publicidade, que poderiam sofrer cortes. Agora, é perguntar para a sociedade: você acha que os professores têm de ganhar bem? Embora a sociedade sempre tenha valorizado a educação, quando eu comecei lá em 1988 a participar, havia certo estranhamento com greve de professores, ainda. Era uma coisa de que o professor tem de trabalhar por amor. Essa ideia de que educação de qualidade é cara é uma coisa dos últimos anos. Tem de reforçar isso para constranger os governos.

CE: Como a senhora vê as políticas públicas em andamento, Plano Nacional de Educação e agora Pátria Educadora?

AC: O irônico da história é que o lema é Pátria Educadora e você tem greves sobre retrocessos na educação. Acho que há vários estranhamentos em relação ao documento Pátria Educadora (feito pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência). Por exemplo, o fato de o documento não ter saído do MEC e que não tomou como ponto de partida as contribuições que já existem, refere-se muito pouco ao PNE. Há também a lógica da meritocracia, o documento chega a falar em escola diferenciada para jovens talentosos.

CE: O que você diz para alunos de pedagogia que se tornarão professores?

AC: Respondo que nós precisamos de professores e lutadores para mudar a sociedade. Não que vá mudar pelas mãos dos professores ou educadores, mas que esta é a esperança de se construir bases para uma sociedade diferente. É uma equação difícil, porque numa sociedade pautada pelo individualismo e pelo econômico, a educação não vai ser valorizada mesmo. Nós precisamos de pessoas apaixonadas, envolvidas para que a sociedade tenha esperança, mas quem entra tem de saber que vai trabalhar incessantemente. Não é um trabalho fácil, ainda que seja absolutamente gratificante.

CE: Isso não é pedir para trabalhar por amor e ainda lutar?

AC: Bem colocado. No fundo é também. Essa contradição está posta. Foram as greves, as reuniões de fim de semana que levaram às melhorias. No entanto, essas lutas que começam a ser feitas de forma voluntária por paixão, por envolvimento, trouxeram a uma situação melhor do que há 20 anos. A hora-atividade ter virado lei, ou seja, o professor ter direito dentro da sua hora de trabalho é uma conquista que altera a lógica de que ele tem que trabalhar por amor e isso necessariamente é o trabalho que ele tem de levar para casa. Não posso dizer para os alunos trabalharem por amor, mas estou dizendo que eles têm de lutar para que o trabalho deles seja valorizado. Não tem como fazer isso se não começando do jeito que está. Não existe a possibilidade de esperar que a educação melhore para depois começar a atuar dentro dela. São as pessoas que atuam em condições desfavoráveis que vão contribuir para que possa ser melhor.

 

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