Eu me represento
01 de junho de 2016
Protagonismo juvenil na Educação impediu reorganização arbitrária da rede estadual e pressionou pela abertura de CPI da merenda em São Paulo
Pricilla Kesley, do Todos Pela Educação
Em 9 de dezembro de 2015, às 19 horas, depois de inúmeras tentativas para impedir o fechamento do Ensino Médio da Escola Estadual Diadema, um grupo de jovens estudantes se reuniu no pátio: eles não iriam estudar naquela noite. “Tentamos de tudo, conversar com a direção, com a diretoria regional, com o secretário estadual de Educação, fizemos abaixo-assinado. Nada funcionou”, relembra Fernanda Freitas, de 17 anos, no dia em que teve início a primeira ocupação escolar na rede pública de ensino do estado de São Paulo.
Àquela altura, a instituição diademense ainda não sabia, mas seria seguida por outras 200 unidades, nas quais milhares de estudantes decidiram que precisavam ser ouvidos.
Essa força mobilizadora dos jovens, capaz de transformar a sociedade, não é nova. Em 1968, o secundarista Edson Luís de Lima Souto foi morto com um tiro à queima roupa disparado por um comandante da Polícia Militar durante uma passeata. Era o estopim de uma onda de protestos estudantis que se estenderam ao longo dos chamados Anos de Chumbo da Ditadura Militar (instituídos pelo AI-5, em dezembro daquele ano).
Já em 1992, foi a vez da luta contra a corrupção do ex-presidente Fernando Collor de Mello. O autointitulado “caçador de marajás”, hoje senador pelo PTB-AL, pediria afastamento do cargo sob forte pressão da sociedade, com destaque para o movimento estudantil, organizado na União Nacional dos Estudantes (UNE) e na União Brasileira dos Estudantes (UBES).
Vinte e quatro anos depois, o mote da força mobilizadora da juventude agora é a Educação. O movimento das ocupações sacudiu a rede pública até que o então secretário estadual de Educação Herman Voorwald caiu e um plano de reorganização proposto de maneira atabalhoada foi cancelado. Mais um momento histórico de protagonismo juvenil, com novas táticas, nova cara e as redes sociais como ferramenta. E eles falam por si.
“O mais legítimo do movimento secundarista é que não esperamos nenhum representante falar por nós, odiamos quem fala pela gente. Eu me represento. Somos nós que estamos na escola todo dia sofrendo”, deixa claro Lilith Cristina Cassius, 15 anos, aluna da Escola Estadual Maria José, na Bela Vista, em São Paulo. O sentimento é partilhado por Fernanda. “Somos autônomos é a frase que me representa. Nós temos voz”.
A cara da mobilização jovem estudantil
Fernanda faz questão de dizer que é cristã, a favor da diversidade, tem interesse nas causas feministas e LGBTs. Ela é muitas coisas. A adolescente, que toca violino e quer ser jornalista, não pode ver um problema. “Se não tiver um, eu acho”, brinca a jovem de sorriso fácil e de opiniões na ponta da língua. É assim desde sempre, mesmo antes de ser matriculada na E.E. Diadema. “No Ensino Fundamental eu já participava do grêmio. Naquela época não sabíamos o poder político do grêmio, mas fazíamos um jornal e os alunos podiam colocar suas sugestões”, lembra.
Fernanda Freitas, 17 anos, aluna do E.E. Diadema: "Somos autônomos" Foto: Pricilla Kesley/TPE
Ela, assim como milhares de jovens, descobriu, em 2015, que é possível mudar as coisas por meio de mobilização. A experiência das ocupações foi impactante para ela e para os discípulos que acabou fazendo. O movimento voltou há dois meses com a ocupação das Escolas Técnicas Estaduais (ETECs), em protestos relacionados ao escândalo da merenda; pouco tempo depois, mais uma vitória: a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na assembleia legislativa do estado de São Paulo – implantada depois de muita violência contra estudantes e ocupação da casa do legislativo estadual.
Apesar de muitas vezes serem chamados de invasores, arruaceiros e vagabundos por grandes veículos e formadores de opinião, os jovens mobilizados vêm colecionando conquistas para a rede pública de ensino. “As ocupações e greves são instrumentos que vão à raiz do problema, nesse sentido eles são mesmo radicais. É legítimo reivindicar coisas por meio desses instrumentos; e as melhorias são para todos”, pondera a educadora Lilian Kelian, que trabalha na área de juventude no Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
Há 17 anos militando na causa da Educação democrática, Lilian está feliz com o que vê nas ruas próximas ao escritório onde gerencia o projeto Jovens Urbanos: estudantes com faixas nas mãos, estudantes pedindo igualdade de gênero, estudantes pedindo fim da corrupção na Educação, estudantes militando. Também fica feliz quando liga a televisão ou abre os jornais e os estudantes de escola pública aparecem com destaque, dessa vez por motivos positivos.
“Eles falam das coisas que eu estava pensando lá em 1999, no início da minha militância: participação, política dentro da escola”, recorda, orgulhosa. “O que tem de diferente nesses jovens que estão ocupando é que eles não desistiram da escola ainda. Eles encontraram pares que acreditam que vale a pena enfrentar alguma briga pela escola”.
Lilith Cristina Cassius, 15 anos, tem muito em comum com Fernanda. Também é aluna de escola pública, gosta de música e esteve à frente de uma ocupação. A adolescente mora no Centro de São Paulo, estudou 8 anos em escola privada e, no ano passado, foi transferida para a Escola Estadual Maria José. “Descobri outra realidade”, afirma.
“Em oito anos na rede particular, não consegui gostar da escola; em quatro meses no Maria José, já me apeguei. O aluno que bota fogo na cortina não faz isso porque quer destruir a escola, ele faz isso porque ele não aprende o que tem direito de aprender e não se sente pertencente”, explica a jovem que, perplexa, ainda não acredita que tomou frente em uma ocupação em uma escola que começava a conhecer mais profundamente.
No entanto, a ação não surpreende diante do histórico (mesmo que curto) da jovem. Filha de pais jornalistas, ela está acostumada às mobilizações e ao engajamento político. Uma memória em particular a assombra.
“Em 2013, meu pai saiu para fotografar as manifestações, houve repressão policial e ele teve um olho atingido por uma bala de borracha. Aos 12 anos, fui com minha mãe a uma manifestação com faixas em apoio a ele. Aos 12 anos, tive contato com esse terror”, reflete.
Lilith Cristina, 15 anos, aluna do E.E. Maria José: "Eu me represento" Foto: Pricilla Kesley/TPE
Era o início das experiências democráticas da estudante, que participou da ocupação no Centro Paula Souza e colabora com a ocupação na Fundação Nacional das Artes (Funarte). Ela acredita que a luta por melhorias sociais é contínua e não se limita às ocupações. “Pode ser que a tática de ocupações seja usada para dar visibilidade, mas os secundaristas não fazem só isso. A gente vem discutindo o tempo todo e estamos mudando”.
Lilian Kelian concorda. Para ela, entre dezembro de 2015 e hoje, o movimento amadureceu muito. “Eles estavam envolvidos na luta em si, sem muita clareza e vontade de discutir a escola como política pública. Vejo que neste ano eles estão dando uma virada e estão pensando no que pode ser essa escola”.
Eles falam, ninguém ouve
Embora as ocupações tenham feito barulho e sucesso, o número de alunos engajados é pequeno, em comparação com o total de estudantes na rede. O desafio dos especialistas da área de Educação e da gestão pública para a aproveitar o novo fôlego de protagonismo juvenil está na interpretação das vozes de poucos, e, principalmente, no silêncio de muitos.
]Lilian pontua que não se trata de usar o poder mobilizador dos jovens, mas de reconhecê-lo e ampliá-lo. “Não sabemos o que esses jovens apáticos pensam, sabemos apenas que eles não estão presentes nos atos políticos visíveis. É um desafio dentro da democracia conseguirmos fazer essa escuta [dos jovens], porque ela é importante também”, afirma.
Na E.E. Maria José, há pouco tempo, Lilith Cristina teve uma discussão com um colega sobre, afinal, de quem era a responsabilidade de cuidar do lixo da escola. A jovem tem a resposta fresca: “Há 2 mil alunos na minha escola e duas ‘tias’ da limpeza, isso não é humano. Os alunos deviam se responsabilizar”.
A ideia vai de encontro ao do que ela pensa sobre a escola: deve ser libertadora e horizontal. “Uma escola onde eu possa circular sem ser punida por estar no corredor, por estar sentada no banco ou por entrar em uma sala em que eu não posso usar os materiais. Circular é o básico, é minha escola”.
Lilian Kelian fez parte da fundação de duas escolas democráticas de ensino privado em São Paulo: a primeira Escola Lumiar (um projeto da Fundação Ralston-Semler, no qual foi diretora escolar eleita) e a instituição privada Politeia Escola Democrática. Dessas experiências, a educadora traz a convicção de que está nos próprios estudantes a solução para aprimorar a escola, mas parece que a gestão está cega. “Eles estão mostrando o caminho para um novo Ensino Médio: participação juvenil, incorporação dos aspectos da política no currículo escolar, diversidade, atividades culturais na escola, circulação mais livre no espaço”.
Liberdade é o mantra dos alunos da ocupação. Lilith Cristina não vê sentido na separação hierárquica que a escola tem hoje. “Quem deveria dirigir a escola são os alunos, mas eles não estão acostumados a opinar na própria escola: ‘isso é meu, posso fazer dessa forma’. A escola é só mais um lugar aonde eles são obrigados a ir para sair logo e ganhar dinheiro”.
A sensação de sufoco também atormenta Fernanda, para quem a escola deveria ser um espaço onde o aluno aprende e ensina e a Educação, um processo para qualquer espaço. “Vejo muitas grades na escola e a comparo com uma prisão; você tem que usar uniforme, você tem que seguir o que a direção fala, você não pode ter opinião”.
Historiadora de formação, Lilian Kelian vem pesquisando instituições e processos democráticos ao longo da carreira; dissecando como as políticas públicas podem incorporar a participação popular. Para ela, a aversão dos estudantes mobilizados a instituições é compreensível, afinal, “estamos em uma crise política que se deve ao mau funcionamento das instituições democráticas”, explica.
Mas alerta: é preciso reaproximar os jovens da instituição. “As conquistas só se sustentam quando elas se instituem. Precisamos ter instâncias fortalecidas no interior das escolas, mas não qualquer instância burocrática. Grêmios atuantes e independentes”.
Fernanda, que sempre frequentou a escola pública, carrega uma inquietação, não entende por que as diferentes classes sociais não convivem no mesmo espaço. “A escola ideal é aquela onde um rico e um pobre podem estudar juntos, onde um preto e um branco convivem sem discriminação”.
O que mudou na Fernanda depois das ocupações? “O que mudou na Fernanda? Mudou tudo na Fernanda. Eu não me via ligada às pessoas; era comunicativa, mas algo superficial. Hoje, sei que existem problemas sociais graves, que a alienação impede que vejamos. É preciso ver”, resume.
http://www.todospelaeducacao.org.br/reportagens-tpe/38342/eu-me-represento/