Espaço para o ensino
Com poucos recursos e problemas de gestão, escolas brasileiras sofrem com infraestrutura ruim; piores condições estão nas redes municipais
Svendla Chaves
Menos de 15% das escolas brasileiras têm um nível considerado adequado de infraestrutura e apenas 0,6% alcançam o padrão avançado. As deficiências primárias como falta de acesso a água e energia estão sendo resolvidas – cerca de 95% das instituições públicas contam com esses recursos –, mas o Brasil ainda está longe de oferecer espaços adequados de ensino para a maior parte de seus alunos.
As desigualdades do país se refletem também na condição das escolas e as unidades rurais e de áreas mais pobres, principalmente do Norte e Nordeste do país, são as que apresentam as piores condições. Escolas sem paredes, em que os alunos precisam trocar de lugar conforme o movimento do sol; mobiliário inadequado, comido por cupins e apodrecido pela umidade; goteiras, pisos de terra e latrinas também fazem, ainda, parte da realidade escolar brasileira.
A falta de recursos das prefeituras reacende o debate sobre o financiamento da educação e a necessidade de aumentar os repasses para os municípios. Por outro lado, o desconhecimento dos programas federais e as dificuldades para acessá-los impedem muitas secretarias de Educação de receber as verbas disponíveis.
“Mesmo bons professores, com formação adequada, ficam sem condições de prover o melhor para os seus alunos em razão da falta de infraestrutura adequada”, explica a pesquisadora Girlene Ribeiro de Jesus, docente da Universidade de Brasília (UnB). A professora é uma das autoras do estudo “Uma escala para medir a infraestrutura escolar”, realizado por pesquisadores da UnB e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Segundo a pesquisa, 44,5% das escolas de Educação Básica – responsáveis por mais de 7 milhões de matrículas – apresentam apenas condições elementares para o funcionamento, sem recursos para proporcionar a aprendizagem.
Baseado no Censo Escolar 2011, o estudo incluiu dados de 194.932 escolas públicas e privadas, rurais e urbanas, criando parâmetros que permitem comparar a situação em diferentes regiões e dependências administrativas. Os índices mais graves estão nas redes municipais e nas regiões Norte e Nordeste, onde menos de 8% das escolas chegam a um nível adequado ou avançado de infraestrutura. Girlene aponta aspectos práticos dessas deficiências: “o ensino de ciências se torna mais significativo quando o aluno tem acesso a um laboratório. O hábito de leitura é facilitado e viabilizado quando a escola dispõe de uma biblioteca”.
O Maranhão é o estado com pior desempenho em infraestrutura: 80,7% das escolas estão no nível elementar e apenas 3,1% conseguem chegar a um patamar adequado ou avançado. Conforme dados do Censo Escolar/Inep 2013, compilados pelo QEdu – parceria entre a Meritt e a Fundação Lemann –, apenas uma em cada dez escolas públicas do estado possui biblioteca; 6% têm quadras de esporte e só 2,3% contam com laboratórios de ciências.
Desigualdades
Para compreender os números, é preciso estar atento às realidades locais. As instituições que estão na base da escala, no nível elementar, embora representem quase metade das escolas, atendem a menos de 15% dos alunos brasileiros. Isso porque há um grande número de estruturas de pequeno porte no país – e são elas que apresentam as maiores dificuldades para dispor de recursos adequados.
“Muitas vezes os números de um município impressionam, mas se referem a escolas bem pequenas”, explica o professor da UnB Luiz Araújo. O estudo também mostra isso: 57% das escolas públicas do país têm até 200 alunos matriculados, contando com no máximo dez turmas; dessas, 92,5% são municipais e 73% são rurais. Entre as escolas pequenas, 80,5% delas apresentam apenas nível elementar de infraestrutura.
Resumindo, a maior parte das escolas deficitárias é pequena, está longe dos centros urbanos, faz parte de redes municipais das regiões Norte e Nordeste e apresenta desempenho inferior à média na Prova Brasil. Também possui, em relação ao total de escolas públicas, uma proporção maior de matrículas de beneficiários do Programa Bolsa Família. Mais do que apenas retratar a situação das escolas, os dados revelam um quadro de desigualdade e a formação de um círculo vicioso de carência.
“Há um efeito de seletividade e composição nas redes de ensino. As crianças já são ‘pré-selecionadas’ para um determinado tipo de escola, a depender de onde moram e do seu nível socioeconômico”, explica Girlene. A situação é agravada pela geografia, já que o Brasil tem municípios com territórios imensos e baixa densidade populacional, em geral localizados em áreas mais pobres.
Algumas prefeituras, no entanto, vêm fugindo do padrão determinista que recai sobre as pequenas escolas da metade norte do país. Em Paragominas, município de 100 mil habitantes que está a 300 quilômetros de Belém, no Pará, o investimento em educação levou a algumas conquistas significativas. Todas as 98 escolas da rede são construídas em alvenaria, mesmo as localizadas em áreas rurais e indígenas. As escolas polo têm laboratório de informática e grande parte possui também laboratórios multifuncionais. Todas as urbanas têm biblioteca, salas pedagógicas, horta e quadra.
“Nosso município tem uma extensão territorial enorme, são dois mil quilômetros de estradas vicinais, 40 comunidades na área rural, 11 aldeias indígenas”, conta o ex-prefeito Adnan Demachki, que administrou Paragominas entre 2005 e 2012 e hoje é secretário de Proteção e Desenvolvimento Social do Pará. Para ele, o principal desafio foi o transporte dos estudantes e dos materiais para as obras. “Temos localidades que, para chegar, é preciso fazer uma longa viagem pela estrada e mais cinco ou seis horas de barco.” Demachki cita como efeito complicador o clima amazônico, com cinco meses de chuvas por ano, que deixam as estradas em condições ruins.
Financiamento
Cleuza Repulho, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), afirma que a disparidade entre as escolas rurais e urbanas está diretamente ligada ao financiamento da educação.
“As escolas do campo têm um número menor de alunos, e as receitas do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização do Magistério (Fundeb) estão relacionadas com a quantidade de estudantes.” Por outro lado, a necessidade de investimento dessas unidades é maior por causa das grandes distâncias para o transporte de alunos, professores e materiais. Segundo ela, os valores destinados para alimentação e transporte nessas áreas dificilmente atingem 30% dos valores investidos pelos municípios.
“A Constituição de 1988 determinou responsabilidades aos entes federados para a oferta da Educação Básica. Acontece que, de lá para cá, o volume de recursos na esfera municipal tem diminuído. Em contrapartida, as responsabilidades aumentaram muito rapidamente, como o desafio de oferecer pré-escola para todas as crianças com 4 e 5 anos de idade”, explica Cleuza, que também é dirigente municipal de Educação de São Bernardo do Campo (SP).
Para Araújo, é preciso um aporte maior de recursos do governo federal para a educação nos municípios e estados. Em estudo defendido na USP, Araújo avaliou os custos para a implantação de um padrão mínimo nacional de qualidade: o país precisaria investir R$ 54 bilhões a mais em educação, segundo os dados de 2011. Para ele, o governo federal tem a obrigação constitucional de colaborar com o financiamento, e esse papel é ainda mais significativo nos estados e municípios com menos recursos. Como a sistemática de financiamento da educação está atrelada à capacidade de arrecadação, onde há menor receita o potencial de investimento se reduz.
Segundo Cleuza, a maior parte das prefeituras tem pouca arrecadação própria e sobrevive de transferências, sendo cerca de 80% do custeio oriundo do Fundeb na maior parte dos municípios. “Isso porque de cada R$100 arrecadados, R$ 58 ficam com o governo federal.”
Em Palmas (TO), grande parte dos recursos utilizados na educação é municipal. “É necessária uma boa política de arrecadação, sem isso, não é possível suportar os custos”, diz a secretária Berenice de Fátima Barbosa.
A capital do Tocantins conta com estruturas escolares que são referência nacional. Em 2007, criou sua primeira escola de tempo integral no modelo padrão, totalmente financiada com recursos municipais.
Projetada para atender 1.200 alunos, a unidade tem laboratórios, piscina, bloco esportivo completo, quadras e campo de futebol gramado. E o MEC assumiu o financiamento das novas unidades no município. “É um modelo de escola muito completo, que se torna viável por não ter um custo tão alto para a prefeitura”, diz a secretária. Das 14 escolas de tempo integral em funcionamento em Palmas, três são no modelo padrão; três devem ser inauguradas ainda este ano e mais três estão em licitação. Hoje, o maior desafio da rede é o aumento de vagas na educação infantil. “Estamos ampliando e criando novos espaços, mas ainda temos três mil crianças de 0 a 3 anos na fila de espera”, conta.
Ela ainda ressalta que todos os 24 Centros municipais de educação infantil (Cmeis) têm climatização, sala de descanso e mobiliário adequado. Palmas tem hoje 32.700 alunos, sendo quase nove mil deles na educação infantil.
Desafios
Em pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgada pela Undime, 24,1% dos 3.410 secretários municipais entrevistados apontaram as insuficiências de infraestrutura, juntamente com dificuldades de conservação dos prédios, como os principais problemas de suas redes municipais. Essa era também a prioridade para 46,2% deles.
Mozart Ramos, membro do Conselho Nacional de Educação (CNE), acredita que as escolas hoje têm mais recursos que no passado, mas ainda encontram dificuldades para acessá-los. “Muitas vezes as verbas não são captadas por dificuldades na elaboração de projetos.”
Para receber auxílio financeiro do Plano de Ações Articuladas (PAR), os municípios precisam fazer o Levantamento da Situação Escolar (LSE) – diagnóstico e planejamento em sistema informatizado que engloba as necessidades de todas as escolas e é requisito para obtenção de recursos. “Muitos municípios não têm quadro técnico habilitado, com engenheiros, por exemplo, para fazer o levantamento e análise dos problemas existentes. Isso se torna um entrave para captar recursos pelo PAR”, explica.
“Em outros casos o dinheiro chega, mas as prefeituras ficam reféns das construtoras para a execução das obras”, diz. Ramos, que já foi secretário de Educação de Pernambuco, lembra de uma situação em que precisou passar por quatro empresas para concluir a construção de uma escola. “O ambiente aquecido no setor construtivo reduz o número de empresas dispostas a assumir esses projetos.”
Já as escolas indígenas e quilombolas localizadas em terrenos que não têm cadastro em cartório não podem utilizar recursos do MEC, que pede a legalização do local. Se o prédio escolar for alugado, também não pode receber verba federal para reforma. Os municípios mais pobres, que apresentam situação financeira com irregularidades, têm ainda maior dificuldade de acesso a financiamento. “É como pedir empréstimo ao banco: quanto mais inadimplente o município está, menos recursos ele consegue”, diz Luiz Araújo.
Padrão mínimo
Para normatizar os investimentos em educação, a discussão passa pela criação de um padrão mínimo de qualidade que estabeleça insumos e recursos para seu custeio, bem como as responsabilidades de cada esfera administrativa.
Com o objetivo de sustentar esse debate, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, articulada por um conjunto de organizações da sociedade civil, promoveu a construção coletiva do Custo Aluno-Qualidade inicial (CAQi), metodologia que se propõe a estabelecer um patamar de qualidade para o ensino básico. O CAQi foi balizado pela Conferência Nacional da Educação de 2010 e definido por parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) como a melhor referência para o estabelecimento de padrões mínimos de qualidade na educação pública. A deliberação do CNE, no entanto, não foi até hoje homologada pelo MEC. A proposta agora faz parte das estratégias do Plano Nacional de Educação (PNE), que tramita no Congresso.
“O MEC não aprovou o parecer porque ele obrigaria a transferência direta de recursos pelo governo federal”, acredita Daniel Cara, coordenador geral da Campanha. Para Cara, o CAQi oferece condições necessárias, mas não suficientes, para um ensino de qualidade, pois também é preciso considerar os processos pedagógicos que garantem o direito à educação Luiz Araújo, que elaborou seu estudo a partir do CAQi, diz que hoje não existe um padrão mínimo para a educação: “o parâmetro é de cada estado ou município, quando existe. Mas os mínimos oficiais também podem não ser o mínimo aceitável.” Para o pesquisador, o CAQi vai oferecer as condições necessárias para o controle social de execução do padrão mínimo.
O CAQi também inclui em seus cálculos investimentos no pagamento e valorização dos profissionais da educação. “A qualidade da educação só irá melhorar se o PNE for aprovado com a complementação do governo federal. Se isso não acontecer, infelizmente, o Brasil não vai possibilitar a melhoria da qualidade e o acesso à educação”, diz Cleuza Repulho.
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