Escola pública para pobre
17 de abril de 2017
Pesquisador de políticas educacionais da Universidade do Minho, em Portugal, Licínio Lima palestrou para 2,5 mil diretores de escolas estaduais do Rio Grande do Sul na última semana sobre participação popular na gestão das escolas. Em conversa com o blog após o evento, promovido pela Faculdade de Educação da UFRGS em parceria com o governo gaúcho, o educador falou sobre os desafios da gestão democrática, reformas promovidas pelos governos e qualidade da educação.
Ele citou como uma das conquistas da democracia portuguesa o investimento constante dos governos – de direita e de esquerda – na educação pública. Segundo Licínio, um dos maiores problemas de um país é quando a classe média abandona a escola pública.
“Quando num país a classe média desiste da escola pública, ela tende a se transformar num gueto para os filhos dos pobres, da classe trabalhadora, que são aqueles que têm menos capacidade de reivindicar do Estado o investimento numa educação de qualidade”, disse, ao emendar: “A escola pública não pode ser uma escola para pobre, para marginalizados. Não pode ser a última escolha. A escola pública é de todos”.
Licínio também falou sobre as reformas “de cima para baixo” adotadas pelos governos sem ouvir quem está na base: professores, alunos e comunidade. E também comentou sobre o projeto Escola sem Partido, que tramita no Congresso brasileiro e em assembleias legislativas, como a do Rio Grande do Sul. Para ele, não existe educação que não seja política.
Leia a entrevista completa:
Blog – A gestão democrática é um trabalho educativo, no sentido de consolidação da democracia?
Licínio Lima - São dois fenômenos implicados: não basta democratizar o regime do ponto de vista político e de funcionamento de suas instituições, sem democratizar a educação nas escolas. E, por outro lado, o avanço democrático das organizações escolares é elemento fundamental de aprofundamento da democracia.
A democracia é um processo que se vive, que se pratica, é um processo em andamento, não é um processo concluído. A educação para e pela democracia é fundamental que ocorra também nas organizações educativas para a preparação do próprio cidadão democrático. Sem cidadania ativa não haverá uma democracia mais avançada.
Como fazer a gestão democrática na prática em meio a tantas dificuldades nas escolas?
Licínio – A gestão democrática envolve três dimensões mais importantes: a primeira é a da eleição. Os órgãos de gestão das escolas devem ser eleitos, porque eles representam ideários pedagógicos e educativos. A segunda dimensão é a da colegialidade. O cerne da democracia escolar exige a colegialidade, porque só nela teremos a participação de diversos atores: professores, pais, alunos, comunidade, sociedade civil. A terceira dimensão exige as outras duas, mas acrescenta algo novo. Refiro-me à participação no processo de tomada de decisão, ou seja, a autonomia. Podemos ter uma democracia vazia se não temos o conteúdo, que se dá pela participação no processo de tomada de decisão. Se a escola tem órgãos colegiados eleitos, mas esses colegiados não têm poder de tomar decisões com mínimo de autonomia, não teremos gestão democrática. Teremos muita gestão para pouca democracia.
Temos algumas mudanças anunciadas recentemente, como a reforma do Ensino Médio no Brasil e uma reorganização das rotinas nas escolas municipais de Porto Alegre, que são alvo de críticas por educadores por não terem envolvido maior participação das comunidades escolares. Qual a sua opinião sobre isso?
Não conhecendo as propostas em detalhe, falo genericamente. As grandes reformas educativas estão completamente fora de moda, ninguém acredita nelas. Qualquer reforma, seja qual for o setor político que as faça, que pretende centrar-se na atividade legislativa, por entidades para além da escola, que pretende modernizar as escolas de cima para baixo, de fora para dentro… a história nos diz que muitas dessas reformas nunca passaram do Diário Oficial, nunca transpuseram a porta da escola, ficaram na letra da lei, independentemente da qualidade ou não da proposta.
As grandes mudanças educativas são aquelas que ocorrem com a escola e não sobre a escola e implicam os professores, os alunos, a comunidade. Portanto, hoje ninguém acredita mais – no mundo acadêmico, da pesquisa – em reformas de cima para baixo, como se a publicação de um decreto mudasse no dia seguinte as realidades e as práticas escolares. Os legisladores, mesmo os democráticos, não são deuses, não têm a capacidade de mudança imediata e automática de acordo com seus desejos ou competências técnicas porque a realidade educativa é uma realidade social e cultural que muda a ritmo lento e só muda realmente quando os atores educativos assumem o protagonismo da mudança. Ninguém muda a escola, os professores, os alunos à força. É um erro, e nós persistimos nesse engano.
Para cada força política que ganha as eleições, eu aconselho que esses líderes legítimos estudem um pouco a história e verifiquem que essa é talvez a forma mais difícil, ou impossível, de tentar mudar a educação.
Como se muda a educação então?
Licínio - Pela base. Ninguém muda ninguém a força. Paulo Freire dizia, aliás, mais radicalmente, que “ninguém educa ninguém”. Nós não iremos mudar a sociedade ao ritmo dos decretos dos governos que entram e saem. Tudo é mais complexo e implica o engajamento e a participação ativa, a mudança cultural, o trabalho coletivo e solidário. De fato é mais difícil do que parece.
Os governos entram e saem, os professores, os diretores, os alunos ficam. Portanto, quando insistimos em mudanças rápidas e urgentes, mudanças autocráticas ou tecnocráticas, decididas com a melhor das intenções muitas vezes, nós esquecemos do essencial: são as pessoas que precisam mudar do ponto de vista de suas práticas. Se mudarmos a forma da organização e não mudarmos o processo cultural, mental, o processo do trabalho e do diálogo, não chegaremos nunca a mudar a escola.
Qual a sua avaliação do projeto Escola sem Partido, que tramita no Congresso e em assembleias legislativas do Brasil?
Licínio - Se Escola sem Partido quer dizer a defesa de uma escola neutra, ou pretensamente neutra, do ponto de vista político-ideológico, isso é um absurdo. A escola não é neutra, e afirmar que ela é neutra é a declaração mais política e ideológica que eu conheço. A escola se apresenta como neutra para esconder suas aspirações políticas. Não há educação que não seja política, porque ela é realizada em torno de valores, de visões de mundo, de projetos de sociedade. Cada projeto de educação escolar implica uma visão do mundo, do ser humano, uma visão antropológica. Não há educação neutra, não há escola neutra. Sempre que alguém se atreve a afirmar que a escola é neutra, que no interior da sala de aula não se discute política, está a fazer uma declaração política ideológica fortíssima e a esconder seus objetivos políticos.
Eu não sou favorável a uma escola com partido, entendendo uma educação política confundida com doutrinação, catequização ou manipulação dos alunos. Isso não é aceitável numa democracia. Eu sou favorável a uma educação política dos valores democráticos, dos direitos humanos, até de uma aproximação dos partidos políticos da escola, sobre mediação dos professores, porque é muito importante que os nossos alunos se preparem para o debate político, para compreender as propostas diversas dos partidos que jogam o jogo democrático. A escola deve preparar para a cidadania ativa. Os nosso alunos mais tarde vão votar. Portanto, a educação política para a cidadania é um componente essencial do currículo escolar. Outra coisa diferente, é propaganda política, é doutrinação.
Quais o senhor considera os principais avanços na educação em Portugal?
Licínio - A educação foi uma das áreas com mais avanços após a revolução democrática de 1974. Os índices de educação do país são extraordinários. Claro, um país que viveu um regime autoritário durante quase meio século tem muita coisa para fazer, tem muita retaguarda educativa para recuperar. Mas fizemos muitas coisas em 40 anos. Para dar uma ideia, no início da década de 1970 tínhamos 40 mil estudantes universitários. Hoje temos 400 mil. Na faixa etária dos 25 aos 35 anos, temos 33% de graduados nas universidades e politécnicos. A meta é chegar próximo dos 40%. Obviamente este caminho é cheio de dificuldades e de contradições. Mas hoje, olhando para a educação portuguesa, podemos dizer que as últimas quatr décadas foram notáveis.
Um dos aspectos mais notáveis da educação portuguesa é a qualidade da escola pública. Tem edifícios muito bons, tem professores muito bem formados. Hoje ninguém pode entrar para o ensino – desde a educação infantil até o ensino médio – sem mestrado. Hoje nós temos uma percentagem de mestres e doutores nas nossas escolas muito elevada. Temos condições de trabalho que são importantes, temos salários na mesma escala europeia, comparáveis com os países mais desenvolvidos. Então podemos dizer que a escola pública é de muita qualidade, é para todos, uma escola que luta por mais democracia e autonomia, uma escola a qual a classe média não desistiu. E isso é um fato crucial: quando num país a classe média, a classe média alta, desiste da escola pública, ela tende a se transformar num gueto para os filhos dos pobres, da classe trabalhadora, que são aqueles que têm menos capacidade de reivindicar do estado o investimento numa educação de qualidade. E no Brasil sabe-se bem o que isso significa.
Em Portugal, não é pensada para a maioria dos professores da educação superior tem seus filhos fora da escola pública. Meu filho sempre estudou na escola pública e a maioria dos filhos dos meus colegas sempre estudaram na escola pública. Não porque nós tenhamos um especial comprometimento com a escola pública, mas porque nós entendemos que a escola pública é uma escola de qualidade, onde nós queremos os nossos filhos.
Eu creio que essa é uma das dimensões democráticas mais importantes: quando uma sociedade investe na escola pública e consegue ter uma escola pública com qualidade elevada, que atrai todas as classes sociais. A maior riqueza de uma escola pública no regime democrático é ser uma escola inter-classista, onde a diversidade social, cultural, racial, étnica, econômica ocorre, porque essa experiência é de grande riqueza em termos de cidadania.
A escola pública no Brasil é uma escola de gueto hoje?
Licínio – Ela corre grande risco. Há muitos esforços para prestigiar e investir na escola pública. Isso depende muito dos municípios, dos projetos educativos das secretarias municipais, mas também das condições de investimento. Claramente muitos países correm o risco de desinvestir na escola pública, favorecendo, em alguns casos, a escola privada e, em outros casos, condenando a escola pública. Eu hoje diria que é uma agenda democrática, cidadã, exigir a melhor qualidade que a escola pública merece. Porque ela é de todos os cidadãos, não pode ser uma escola de segunda, uma escola para pobre, para os marginalizados. Não pode ser a última escolha. Uma escola pública, que numa democracia é para todos nós, tem que ser a de melhor qualidade, a primeira opção.
Isso é um esforço enorme, sistemático, de direções para os nossos países que partiram de uma base de educação pública muito fraca, condenada ao descaso por regimes autoritários, que nunca tiveram preocupação com uma educação para todos.
Em Portugal, houve priorização de investimentos na educação pública?
Licínio - Com variações de governo para governo, ela é uma constante nos últimos 40 anos. Não seria possível construir uma escola pública com a qualidade que temos hoje se ocorresse alterações radicais em termos de investimentos e de reformas educativas de governo para governo. Houve um consenso mínimo entre as forças políticas – de esquerda e de direita – relativo ao investimento na educação pública.