Escola e doutrinação
Escola não deve ser lugar de doutrinação, mas de formação
Professor de Filosofia da Unifesp analisa projeto que tipifica 'assédio ideológico' nas escolas
O Projeto de Lei do deputado Rogério Marinho, do PSDB do Rio Grande do Norte, revela uma preocupação legítima: a escola não deve ser lugar de doutrinação, mas de formação que permita aos estudantes desenvolver a cidadania por meio do exercício da liberdade e do pensamento crítico. O exercício da liberdade e do pensamento crítico, por sua vez, só é possível quando os estudantes tomam contato com diferentes maneiras de pensar e diversas interpretações do mundo.
Vários documentos do Ministério da Educação asseguram, de longa data, esses dois princípios, quer dizer, o papel não doutrinário dos educadores e a apresentação de diferentes visões-de-mundo no ambiente escolar. Não há nenhuma novidade nisso; e a Constituição Federal é plenamente respeitada.
No entanto, o assunto torna-se extremamente delicado e complexo justamente quando se aceita que os educadores devem apresentar diferentes de visões-de-mundo: qual será o critério para decidir se, ao fazer isso, eles não caem em doutrinação?
No cotidiano pé-no-chão (e não em nossos escritórios de intelectuais e políticos, onde se especula sobre o que consideramos ideal para nós e para os outros), é impossível que um educador não revele as suas preferências pessoais e as suas opções políticas, estéticas, religiosas etc. O gesto educativo é um encontro de pessoa a pessoa; é um contato de subjetividades e não de autômatos que transmitem conteúdos pretensamente objetivos.
Dizer isso, porém, não justifica que o educador comporte-se como cabo eleitoral ou propagandista de um partido, nem como missionário de salvações religiosas ou representante de padrões estéticos ou outros. O dilema é que um(a) educador(a) autêntico(a) transpira os valores que formam sua vida. Seu modo de ser, independentemente de seus discursos, já basta para que os estudantes percebam quem é a pessoa que os educa.
Mais do que isso, em certas matérias, como Biologia, Física, Literatura, Filosofia, Psicologia, Artes, Sociologia e História (e mesmo as outras, consideradas mais “objetivas”, como Matemática e Química), espera-se que os educadores sejam capazes de manifestar, com responsabilidade, as suas opções teóricas mesmo quando abordam perspectivas diferentes das suas. Isso não apenas é reconhecido mas também recomendado oficialmente por documentos do Ministério da Educação.
Por exemplo, um(a) professor(a) de Filosofia que adote em sua visão-de-mundo a perspectiva existencialista não pode despir-se dela ao apresentar a perspectiva analítica ou outra.
Será um sinal de maturidade intelectual, como dizem as Orientações Curriculares para o Ensino Médio, se o(a) educador(a) tiver a capacidade de justificar sua perspectiva sem desprezar as outras, mas apresentando-as com rigor teórico e respeito. Pode-se também pensar nos inúmeros casos de professores de Biologia ou Física que, ao tratar da teoria da evolução das espécies surgida em decorrência da grande explosão inicial ou Big Bang, não podem dar a impressão de ser crentes em Deus quando não o são (embora essas teorias científicas precisas não sejam inconciliáveis com a crença criacionista). Espera-se deles que deem argumentos para não crer na criação e que justifiquem por que, racionalmente, o Big Bang e a evolução excluiriam um ato criador inicial.
Esses exemplos mostram como o gesto educativo plural é um caminhar no fio da navalha: convém evitar tanto a doutrinação quanto a anulação de si; resvalar para qualquer um desses opostos seria um acidente formativo grave. Mas a navalha é a própria vida. Não é algo que se controla. Portanto, também não parece possível querer excluir um dos lados do corte ou os dois. Viver e educar são atividades delicadas que exigem atenção constante.
Nada mais, nada menos, é nessa navalha que toca o Projeto de Lei do deputado Rogério Marinho. Com certa razão, ele define o assédio ideológico como toda prática que condicione a adotar posicionamentos políticos determinados, partidários, ideológicos ou pratique qualquer constrangimento nos estudantes que pensam diferentemente de seus educadores.
É facilmente compreensível que se exclua da escola o proselitismo político (como também religioso etc.). Todavia, debater, por exemplo, programas de governo de diferentes partidos e emitir opiniões pessoais equivaleria a fazer proselitismo? Se não houver emissão de opiniões pessoais, então também não há debate!
Infelizmente, hoje, há estudantes com atitudes obscurantistas e que acusam seus professores de “politiqueiros” quando trazem para a sala de aula temas culturais e políticos que não lhes agradam. Pense-se no caso recente do professor do Amazonas que pediu uma pesquisa sobre culturas africanas no Brasil e sofreu a resistência de um grupo de estudantes cristãos: orientados por pais e líderes religiosos, eles se recusaram a fazer a pesquisa, alegando que ela incentivava o satanismo e a homossexualidade.
Acusações desse tipo bastarão para incriminar os educadores por assédio ideológico? Mas os educadores não estariam no cumprimento de sua função ao trazer para a sala de aula debates culturais, políticos, religiosos, estéticos etc., visto que uma de suas atribuições é formar para o exercício da cidadania?
Dessa perspectiva, o Projeto de Lei do deputado Rogério Marinho revela uma fragilidade extrema e uma ameaça ao esclarecimento. Se ele for aprovado e implementado, trará grandes chances de instalar-se um claro procedimento de censura, incutindo nos educadores uma permanente insegurança e um desconforto terrível com a necessidade de esconderem quem são. Guardadas as devidas proporções, esse sentimento lembra aquele vivido na ditadura militar, quando os professores simplesmente não podiam ser quem eram.
Aliás, é espantoso o fato de que os intelectuais ligados abertamente aos diferentes partidos políticos não foram à imprensa para denunciar o horror que seria a volta da ditadura militar ao poder tal como solicitada recentemente por parte da população brasileira.
Por fim, o Projeto de Lei visa assegurar que a escola seja um espaço para “adotar posicionamentos ideológicos de forma espontânea, livre de assédio de terceiros”. No entanto, é de perguntar: adotar posicionamentos de forma espontânea é algo humanamente possível? Aqui não é necessário evocar debates pedagógicos para ver o equívoco dessa proposta, uma vez que o ser humano só entra no mundo objetivo dos valores por meio da intersubjetividade ou inter-relação com outros seres humanos. Não há geração espontânea na cultura. Crer nisso é dar ocasião para o subjetivismo e o pensar inconsequente, caminho inequívoco para o dogmatismo e o autoritarismo.
Se o Projeto de Lei do deputado Rogério Marinho pode ser visto como um projeto com intenções compreensíveis, ele também pode ser visto como um desserviço à busca da pluralidade e da convivência republicana. Mesmo antes de ser analisado e votado, já está ensanguentado, pois se corta na navalha da vida.
*Publicado originalmente em Carta na Escola
http://www.cartaeducacao.com.br/artigo/caminhar-no-fio-da-navalha/