Ensaio sobre a cegueira
Ensaio sobre a cegueira: a cegueira como metáfora no livro de José Saramago
Walter Praxedes
No romance Ensaio sobre a cegueira (1995), de José Saramago, a cegueira descrita é representada através de inúmeras metáforas. Já no início da narrativa as personagens são acometidas pelo chamado “mal branco”, impossível de ser diagnosticado como um dos tipos já conhecidos de cegueira. Considerando a cegueira como metáfora, ao longo deste romance Saramago tenta explicar como as pessoas vão se tornando cegas no mundo contemporâneo, como inexplicavelmente ocorreu com o primeiro cego, primeira personagem apresentada na narrativa, que cegou quando conduzia o seu automóvel: de repente a realidade tornou-se indiferenciada à sua volta.
Quando o “primeiro cego” chegou ao consultório do oftalmologista para tentar descobrir uma solução para o seu problema de visão, o médico considerou o caso urgente e passou-o à frente dos demais pacientes que aguardavam pela consulta. Porém, a mãe de um menino que aguardava sua vez não se sensibilizou diante da urgência do paciente inesperado e “…protestou que o direito é o direito, e que ela estava em primeiro lugar, e à espera a mais de uma hora. Os outros doentes apoiaram-na em voz baixa, mas nenhum deles, nem ela própria, acharam prudente insistir na reclamação, não fosse o médico ficar ressentido e depois pagar-se da impertinência fazendo-os esperar ainda mais” (EC: 22).
A pressa e insensibilidade desses pacientes diante de um indivíduo com um problema considerado mais urgente pelo médico talvez seja um primeiro indício apresentado pelo narrador de que a cegueira pode ser provocada pelo distanciamento existente entre os indivíduos nas sociedades modernas. Um distanciamento que leva cada um a observar apenas os seus próprios interesses, interesses tais que só serão limitados pelo cálculo da conveniência: “…na verdade, sentencia o narrador deste romance, ainda está por nascer o primeiro ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo, bem mais dura que a outra, que por qualquer coisa sangra” (EC: 169).
O egoísmo como cegueira é novamente mencionado quando o transeunte que ajuda o primeiro cego a voltar para casa aproveita-se da ocasião para roubar-lhe o automóvel. Mas o narrador não realiza um julgamento apressado da atitude do ladrão, e considera-o um “…simples ladrãozeco de automóveis sem esperança de avanço na carreira, explorado pelos verdadeiros donos do negócio, que esses é que se vão aproveitando das necessidades de quem é pobre” (EC: 25). Pelo visto, o narrador relativiza a importância do crime do roubo para colocar em evidência o seu julgamento sobre os motivos que levam os indivíduos a buscarem os seus interesses por meios escusos: “…No fim das contas, estas ou outras, não é assim tão grande a diferença entre ajudar um cego para depois o roubar e cuidar de uma velhice caduca e tatibitate com o olho posto na herança” (EC: 25).
Diante das necessidades animais os humanos deixam em segundo plano os seus vínculos afetivos e princípios morais, como o faz o rapazito estrábico que diante da fome deixa de chorar a ausência da mãe, e como fazem os cegos que preferem seguir as “razões do estômago” a se preocuparem com o destino dos colegas de infortúnio que são mortos quando tentavam alcançar as caixas de alimentos deixadas pelos soldados no pátio do manicômio, e “…ninguém parecia interessado em saber quem tinha morrido” (EC: 92).
A personagem “rapariga dos óculos escuros” também será apresentada na narrativa com a mesma generosidade com que, a princípio, o narrador tentou relativizar a atitude do “ladrão de automóvel”. Considerada prostituta, a moça é defendida dos julgamentos preconceituosos, peremptórios e definitivos: “Ela tem, como a gente normal, uma profissão, e também como a gente normal, aproveita as horas que lhe ficam para dar algumas alegrias ao corpo e suficientes satisfações às necessidades, as particulares e as gerais. Se não se pretender reduzi-la a uma definição primária, o que finalmente se deverá dizer dela, em lato sentido, é que vive como lhe apetece e ainda por cima tira daí o prazer que pode.” (EC: 31)
A simpatia do narrador para com a personagem “rapariga dos óculos escuros” provoca uma nova absolvição da moça, desta vez no episódio em que ela reage ao assédio sexual do “ladrão de automóveis”, causando-lhe um ferimento na perna, mesmo se depois tal ferimento levará o ladrão a procurar a ajuda de um soldado, recebendo por isso uma inesperada rajada de tiros. Numa digressão, o narrador menciona, então, um tipo de cegueira impossível de ser superada pelos humanos, que é a cegueira provocada pela impossibilidade de previsão de todas as consequências, desejadas ou não, do seus atos:
“… se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala” (EC: 84).
Cegueira é também a insensibilidade e a indiferença diante do infortúnio do outro, como as sofre o próprio médico ao tentar avisar o Ministério da Saúde sobre a epidemia de cegueira. O médico, então, conclui: “É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade” (EC: 40). Para se livrarem rapidamente de suas responsabilidades, enquanto o Ministro da Saúde e seu assessor acreditavam que o problema atingiria apenas uma minoria, trataram de isolar os cegos contagiados em um manicômio de modo a que estivessem longe da vista dos demais e não pudessem incomodar, analogamente à maneira como as sociedades modernas tratam os indivíduos considerados loucos. Ao chegarem ao local em que ficariam reclusos, o médico e sua esposa percebem o significado do tratamento que estão recebendo: “Isto é uma loucura”, constata o médico, e sua esposa concorda: “Deve ser, estamos num manicômio” (EC: 48).
Para isolar os cegos do restante da sociedade ainda sã, o governo dirige aos cegos um tratamento disciplinar impessoal, hierarquizado e autoritário, transformando o manicômio em um campo de concentração, como se pode constatar no comunicado divulgado aos internos através de um alto-falante:
“O Governo está perfeitamente consciente das suas responsabilidades e espera que aqueles a quem esta mensagem se dirige assumam também, como cumpridores cidadãos que devem de ser, as responsabilidades que lhes competem, pensando que o isolamento em que agora se encontram representará, acima de quaisquer outras considerações pessoais, um acto de solidariedade para com o resto da comunidade nacional. Dito isto, pedimos a atenção de todos para as instruções que se seguem, primeiro, as luzes manter-se-ão sempre acesas, será inútil qualquer tentativa de manipular os interruptores, não funcionam, segundo, abandonar o edifício sem autorização significará morte imediata… décimo quinto, esta comunicação será repetida todos os dias, a esta mesma hora, para conhecimento dos novos ingressados. O Governo e a Nação esperam que cada um cumpra o seu dever. Boas noites” (EC: 50-51).
De fato, logo que um dos cegos necessitou de medicamentos para um ferimento ocorrido em um conflito com a rapariga dos óculos escuros, a quem tentara molestar, e se dirigiu para o portão para falar com os soldados que guardavam o manicômio, recebeu uma rajada de tiros a queima-roupa e morreu. A atitude do soldado revela tanto o seu medo de cegar quanto a cegueira representada pelo cumprimento estrito da ordem recebida por ele para não tolerar as indisciplinas dos cegos. O narrador demonstra com isso que tanto o medo de cegar quanto o cumprimento cego às normas tornam os indivíduos cegos diante das necessidades dos outros. Comentando a ação do seu subordinado o sargento responsável pela guarda do manicômio não se mostrou menos insensível: “Deste-lhe cabo do canastro, disse. Depois, lembrando-se das rigorosas ordens que lhe haviam sido dadas, gritou, Cheguem-se para trás, isto pega-se” (EC: 81). Mais adiante na narrativa, o sargento e os soldados também ficam cegos, numa indicação de que medo, insensibilidade e crueldade também compõem o rol dos males do espírito que levam à cegueira descrita por Saramago.
Um grupo de cegos denominados pelo narrador como “cegos malvados” percebeu que se usasse da violência poderia extorquir os poucos objetos de importância financeira que porventura ainda estivessem em poder dos demais cegos, sequestrando a comida que era depositada no pátio pelos soldados. E então, “…onde deveria ter sido um por todos e todos por um, pudemos ver como cruelmente tiraram os fortes o pão da boca aos débeis… (EC: 205). Na busca do lucro, mesmo que ilusório, os cegos malvados decidem exigir um pagamento pela entrega da comida antes destinada a todos, mas por eles saqueada. Por isso o narrador vai considerar essa disputa pela vantagem na distribuição dos alimentos como uma forma de cegueira. Diante do horror provocado pelas disputas por comida, a mulher do médico sente o desconforto de continuar a ver e a testemunhar a degradação humana e se sente momentaneamente incapaz de lutar contra a opressão exercida pelos cegos malvados. Além do testemunho da mulher do médico o narrador especula com a hipótese da presença de um escritor, um “cego contabilista”, registrando a opressão e a exploração de uns cegos por outros cegos. Sua conclusão é que o escritor acaba optando pelo lado mais conveniente aos seus interesses imediatos e egoístas:
“Chegando a este ponto, o cego contabilista, cansado de descrever tanta miséria e dor, deixaria cair sobre a mesa o punção metálico, buscaria com mão trêmula o bocado de pão duro que havia deixado a um lado enquanto cumpria a sua obrigação de cronista do fim dos tempos, mas não o encontraria, porque outro cego, de tanto lhe pôde valer o olfato nesta necessidade, o tinha roubado. Então, renegando o gesto fraterno, obnegado impulso que o tinha feito acudir a este lado, decidiu o cego contabilista que o melhor, se ainda ia a tempo, seria regressar à terceira camarata lado esquerdo, ao menos, lá, por muito que se lhe esteja revolvendo o espírito de honesta indignação contra as injustiças dos malvados, não passará fome.” (EC: 161)
Logo depois, os cegos malvados decidiram novamente chantagear os demais, oferecendo-lhes a comida que estava em seu poder somente se as mulheres se submetessem aos seus desejos. O narrador parece demonstrar, assim, que pode não haver limite para a degradação humana. Entre os cegos passa a ocorrer, então, um debate moral em torno da possibilidade de atenderem ou não a exigência dos cegos malvados: “O primeiro cego começara por declarar que mulher sua não se sujeitaria à vergonha de entregar o corpo a desconhecidos em troca do que fosse, que nem ele o quereria nem ele o permitiria, que a dignidade não tem preço, que uma pessoa começa por ceder nas pequenas coisas e acaba por perder todo o sentido da vida” (EC: 167). O discurso do marido pareceu desproposital à esposa que contestou-o: “Sou tanto como as outras, faço o que elas fizerem”. O marido resistiu: “Só fazes o que eu mandar…”, E a esposa retorquiu: “Deixa-te de autoridades, aqui não te servem de nada, estás tão cego como eu”. O marido ainda tentou uma admoestação moral contra a esposa: “É uma indecência”. Mas a esposa se revela consciente de sua condição de igualdade em relação ao marido e às outras mulheres: “Está na tua mão não seres indecente, a partir de agora não comas…” E o narrador concluiu o debate: “…foi esta a cruel resposta, inesperada em pessoa que até hoje se mostrara dócil e respeitadora do seu marido”. (EC: 168). A decisão do grupo será atender à exigência dos cegos malvados, submetendo o corpo das mulheres à violência do outro grupo em troca dos alimentos. Em meio à degradação de suas vidas os cegos se apegarão ao que lhes parecerá como essencial. Mesmo as convenções morais mais arraigadas no imaginário individual e coletivo cedem diante da necessidade de alimentos e do medo da opressão exercida pelos malvados. A decisão de acatar a exigência dos cegos malvados será assimilada pelo grupo com um verdadeiro ritual sexual assim descrito pelo narrador:
“Há que dizer, ainda, que duplamente estão estas mulheres folgando, assim são os mistérios da alma humana, pois a ameaça, de todos os modos próxima, da humilhação a que irão ser sujeitas, acordou e exacerbou, dentro de cada camarata, apetites sensuais que a continuação da convivência havia debilitado, era como se os homens estivessem pondo nas mulheres desesperadamente a sua marca antes que lhas levassem, era como se as mulheres quisessem encher a memória de sensações experimentadas voluntariamente para melhor se poderem defender da agressão daquelas que, podendo ser, recusariam.” (EC: 169)
Aos poucos os humanos vão retornando, assim, à sua condição animal, suspensas muitas das suas aquisições culturais. Inúmeras são as situações em que o comportamento dos cegos no manicômio é descrito como próprio de animais: Desconfiados os cegos ficavam “…tensos, de pescoço estendido como se farejassem algo…” (EC: 49); eram “trazidos em rebanho” e “esbarravam uns nos outros” (EC: 72); se movimentavam “…de gatas, de cara rente ao chão como suínos” e os soldados os viam como “…imbecis que se moviam diante dos seus olhos como caranguejos coxos, agitando as pinças trôpegas à procura da perna que lhes faltava” (EC: 105). Os relacionamentos sexuais entre os cegos eram recriminados por eles mesmos como próprios de porcos. Quando as mulheres chegam à camarata dos malvados para atender suas exigências, o comportamento deles é descrito como se fosse de animais: “De dentro saíram gritos, relinchos, risadas… Depressa, meninas, entrem, entrem, estamos todos aqui como uns cavalos, vão levar o papo cheio, dizia um deles… Os cegos relincharam, deram patadas no chão…”.
O líder dos cegos malvados, portador de uma arma que lhe garantia a submissão dos demais, comportava-se como um gorila que escolhe para si as fêmeas do grupo: “…Excitado, enquanto continuava a apalpar a rapariga, passou à mulher do médico, assobiou outra vez, esta é das maduras, mas tem jeito de ser também rica fêmea. Puxou para si as duas mulheres, quase se babava quando disse, Fico com estas, depois de as despachar passo-as a vocês”. (EC: 176) Quando terminava o ato sexual com a rapariga dos óculos escuros, o líder dos cegos malvados “…sacudiu-se todo, deu três sacões violentos como se cravasse três espeques, resfolegou como um cerdo engasgado, acabara” (EC: 177).
Uma das mulheres não resiste aos maus tratos recebidos e morre. A violência sofrida pela morta, agride psicologicamente às demais mulheres e a mulher do médico conclui, ao retornar à sua camarata e ao seu esposo: “…já não somos as mesmas mulheres que daqui saímos… o inominável existe, é esse o seu nome, nada mais” (EC: 179).
O narrador também dá a voz a um cego que, como um animal domesticado que a tudo se adapta, aceita cômoda e fatalisticamente a situação em que viviam os cegos reclusos:
“Que isto, meus senhores, é comer e dormir. Bem vistas as coisas, nem se está mal de todo. Desde que a comida não venha a faltar, sem ela é que não se pode viver, é como estar num hotel. Ao contrário, que calvário seria o de um cego lá fora, na cidade, sim, que calvário. Andar aos tombos pelas ruas, todos a fugirem dele, a família apavorada, com medo de se aproximar, amor de mãe, amor de filho, histórias, se calhar faziam-me o mesmo que me fazem aqui, fechavam-me num quarto e punham-me o prato à porta por muito favor. Olhando a situação a frio, sem preconceitos nem ressentimentos que sempre obscurecem o raciocínio, havia que reconhecer que as autoridades tiveram visão quando decidiram juntar cegos com cegos, cada qual com seu igual, que é a boa regra da vizinhança, como os leprosos…” (EC: 109).
O medo, o comodismo e o fatalismo levam uma pessoa a se habituar a tudo, “…sobretudo se deixou de ser pessoa…” (EC: 218). Para o narrador e suas personagens, a tolerância às situações de opressão são também sintomas de cegueira: “O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos…” (EC: 131)
Numa próxima noite de horror e violência contra as mulheres, será a mulher do médico, armada pela visão e uma tesoura, que superará o medo e irá lutar pela libertação de todos os cegos do domínio dos malvados matando o seu líder:
“A cama do chefe dos malvados continuava a ser a do fundo da camarata, onde se amontoavam as caixas de comida. Os catres ao lado do seu tinham sido retirados, o homem gostava de mexer-se à vontade, não ter de tropeçar nos vizinhos. Ia ser simples matá-lo. Enquanto lentamente avançava pela estreita coxia, a mulher do médico observava os movimentos daquele que não tardaria a matar, como o gozo o fazia inclinar a cabeça para trás, como já parecia estar a oferecer-lhe o pescoço. Devagar, a mulher do médico aproximou-se, rodeou a cama e foi colocar-se por trás dele. A cega continuava no seu trabalho. A mão levantou lentamente a tesoura, as lâminas um pouco separadas para penetrarem como dois punhais. Nesse momento, o último, o cego pareceu dar por uma presença, mas o orgasmo retirara-o do mundo das sensações comuns, privara-o de reflexos, Não chegarás a gozar, pensou a mulher do médico, e fez descer violentamente o braço. A tesoura enterrou-se com toda a força na garganta do cego, girando sobre si mesma lutou contra as cartilagens e os tecidos membranosos, depois furiosamente continuou até ser detida pelas vértebras cervicais.” EC: 185)
Uma cega que até então não aparecera no relato, a “mulher do isqueiro”, também irá resistir à opressão sofrida, arriscando a própria vida para atear fogo na barricada de camas construída pelos cegos malvados para proteger a sua camarata da invasão dos seus inimigos. A mulher morre queimada, mas com o incêndio muitos cegos conseguem fugir para fora do manicômio. A cidade que será encontrada pelos cegos libertos estará praticamente destruída pela barbárie provocada pela cegueira dos seus habitantes, já que “toda a gente está cega… a cidade toda, o país, Se alguém ainda vê, não o diz, cala-se…” (EC: 215). “As ruas estão desertas, por ser ainda cedo, ou por causa da chuva, que cai cada vez mais forte. Há lixo por toda a parte, algumas lojas têm as portas abertas, mas a maioria delas estão fechadas, não parece que haja gente dentro, nem luz” (EC: 214); “… não há água, não há electricidade, não há abastecimentos de nenhuma espécie, encontramo-nos no caos, o caos autêntico deve de ser isto…” (EC: 244) Os cegos que não resistem e morrem em razão da fome e do cansaço são devorados pelos cães famintos que perambulam pelas ruas. Horácio Costa sugere um paralelo entre a situação da cidade resultante da cegueira dos seus habitantes descrita no Ensaio sobre a cegueira e a vida nas grandes cidades modernas:
“Tornada selva pela falta de visão de seus habitantes (asseveração que pode ser entendida tanto literalmente, dado o contexto do romance, tanto figuradamente, dada a situação urbana, e especialmente metropolitana, da contemporaneidade), estabelece-se ao longo do relato uma correspondência entre o labirinto da cegueira e o da cidade, na qual os habitantes, uma vez começado o seu necessário processo de deambulação para encontrarem as suas novas formas de subsistência, constantemente se perdem. A cidade torna-se, portanto, o outro do mal-branco, seu equivalente ou espelho metafórico, uma vez que ao longo da narração o leitor “vê”, devido a técnica narrativa de Saramago, na qual o espaço da descrição é amplo, o que os cegos deambuladores não vêem: a si próprios e à cidade que os vitima e é por eles vitimada.” (COSTA, 1999: 144)
Em uma situação de crise como essa as identidades se desintegram provocando a situação de incerteza que inviabiliza a convivência, uma vez que as concepções e valores humanos perdem o seu poder de sedimentar os relacionamentos. Isolados do mundo, reclusos no manicômio transformado em campo de concentração, se já não o era antes, a mulher do médico percebe o perigo da perda da própria identidade: “…tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembramos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir-nos os nomes, nenhum cão reconhece outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que lhes foram postos, é pelo cheiro que identifica e se dá a identificar, nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo-nos pelo ladrar, pelo falar, o resto, feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não existisse… (EC: 64).
Esta constatação da mulher do médico pode ser assimilada à opção do próprio narrador, que não utiliza de nomes próprios, mas de sinais exteriores ou dos papéis sociais desempenhados pelos indivíduos, para designar as personagens, tornando homóloga a história que conta à sociedade contemporânea, na qual a impessoalidade dos relacionamentos no mercado ou nas organizações burocráticas tornam dispensável o conhecimento sobre o nome e a verdadeira identidade de cada ser individual.
A personagem “mulher do médico”, a única a não cegar em toda a narrativa, permite interpretarmos que são os seus valores e ações que a tornam imunizada contra o contágio. Quando o marido, já contagiado, solicita-lhe que não se envolva com o seu problema: “Deixa-me, deixa-me”. Ela discorda: “Não deixo, gritou a mulher, que queres fazer, andar aí aos tombos, a chocar contra os móveis, à procura do telefone, sem olhos para encontrar na lista os números de que precisas, enquanto eu assisto tranquilamente ao espectáculo, metida numa redoma de cristal à prova de contaminações. Agarrou-o pelo braço como firmeza e disse, Vamos, meu querido” (EC: 39). Logo depois, a mulher simula estar cega para ser levada na ambulância que recolheria o marido contagiado. Durante todo o relato a mulher do médico tentará manter a lucidez, se esforçando para resistir à degradação e tentando colaborar para que os cegos se não pudessem viver inteiramente como pessoas, que ao menos não vivessem inteiramente como animais.
Com o caos da civilização provocado pela generalização da cegueira, os habitantes passam a vagar pela cidade em busca de comida e abrigo. Será a mulher do médico que vislumbrará uma saída para o grupo de cegos sob os seus cuidados: “…se nos separarmos seremos engolidos pela massa, destroçados… por isso o que proponho é que, em lugar de nos dispersarmos, ela nesta casa, vocês na vossa, tu na tua, continuemos a viver juntos…” (EC: 245). O médico logo entende o alcance destas palavras: “Disseste que há grupos organizados de cegos…, isso significa que estão a ser inventadas maneiras novas de viver, não é forçoso que acabemos destroçados como prevês” (EC: 245). O mais experiente do grupo conclui: “Regressamos à horda primitiva, disse o velho da venda preta, com a diferença de que não somos uns quantos milhares de homens e mulheres numa natureza imensa e intacta, mas milhares de milhões num mundo descarnado e exaurido” (EC: 245). O olhar da mulher do médico além de desvelar o mundo para os outros cegos permite que ela enxergue a necessidade de união do grupo, pois para ela “…organizar-se já é começar a ter olhos” (EC: 282).
O autor expressa dessa forma tanto os valores sociais que quer condenar como a crueldade, o egoísmo, a indiferença, o consumismo e a competição, que fazem com que os cegos estejam “sempre em guerra” (EC: 189), quanto os valores que pretende que prevaleçam como o respeito ao outro, a dignidade, a coragem, a solidariedade, e a convivência. Se, por um lado, Saramago dá a entender que a racionalidade capitalista das sociedades modernas centrada no individualismo egoísta pode levar ao caos, com a degradação da convivência humana e do meio ambiente, a união do grupo proposta pela mulher do médico pode fazer com que prevaleçam entre os humanos os vínculos afetivos e os valores éticos.
Neste livro, portanto, o autor expõe a cegueira para evidenciar a importância do olhar, como nos explica a professora Teresa Cristina Cerdeira da Silva:
“… esse Ensaio sobre a cegueira pode ser lido inversamente como um ensaio sobre a visão. Esses cegos chegaram ao fundo do poço de onde puderam ver surgir suas fraquezas, sua arrogância, sua intolerância, sua impaciência, sua violência, a monstruosidade dos universos concentracionários. Mas assistiram também à sua própria força, à sua solidariedade, à sua generosidade, ao seu espírito revolucionário e à revisão de seus próprios preconceitos. Este, repito, é um ensaio sobre a visão: do outro, das relações humanas, das linguagens e seus clichês, da verdade, do poder e até dos gêneros literários nesse romance que, como se sabe, se quer ensaio. Porque este não é tão-somente um romance cujo assunto é a cegueira, mas também um ensaio entendido como experiência, experimentação que revele a possibilidade de enxergar para além das aparências, para além dos seus próprios limites convencionais.” (SILVA, 1999: 294)
A cegueira pode ser encarada, assim, como um conjunto de representações falsas que embora surjam na própria vivência, nas relações sociais cotidianas, podem se autonomizar e passar a dominar o vivido, bloqueando a apreensão da realidade e a práxis, e impedindo a busca do novo. Tais representações dissimulam a realidade, uma vez que alguns cegos “…não o são apenas dos olhos, também o são do entendimento” (EC: 213) e assim difundem o seu mal como ocorre quando um “…olho que está cego transmite a cegueira ao olho que vê…” (EC: 111).
A cegueira que se alastra sobre as sociedades modernas no mundo contemporâneo, na forma como é descrita por Saramago é tanto mais surpreendente porque, como escreveu Lefebvre “…el projecto subyacente a la modernidad de una absoluta primacia del saber, de la razón, de la ciencia y de la técnica, suscitó la contrapartida: el antisaber, la antirrazón (sinrazón e irracionalismo), la antiteoría… Se puede considerar la hipótesis de una descomposición de la sociedade en Occidente. No es la peor hipótesis. Los síntomas de disolución de la cultura, de la vida social no son ni escasos ni difíciles de descubrir; (LEFEBVRE, 1983: 213).
Esse tipo de cegueira impede que os riscos produzidos pelo desenvolvimento da sociedade industrial sejam antevistos e equacionados através de um redirecionamento ou da limitação deste próprio desenvolvimento. Como o autor expressa pela voz da mulher do médico “…o tempo está-se a acabar, a podridão alastra, as doenças encontram as portas abertas, a água esgota-se, a comida tornou-se veneno” (EC: 283), e é preciso pressa para que identifiquemos as causas destes problemas gerados pelos próprios humanos em nossa época, e consigamos superá-los. O escritor-cidadão quer, assim, utilizar-se de sua expressão para trabalhar contra a degradação do homem e da sociedade, contra o sofrimento e a exploração. A epidemia de cegueira descrita é a alegoria sobre o horror vivenciado mas não visto; o olhar é a capacidade de ver e de reparar os males da convivência humana nas sociedades contemporâneas: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” (EC: 7).
Referências
COSTA, Horácio (1997). José Saramago – O período formativo. Lisboa, Editorial Caminho, 389 p.
______ (1999). “Alegorias da desconstrução urbana: The memoirs of a survivor, de Doris Lesing, e Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago”. In: BERRINI, Beatriz (org.). José Saramago: uma homenagem. São Paulo, EDUC, pp. 127-148.
GOLDMANN, Lucien (1967). Sociologia do romance. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 223 p.
LEFEBVRE, Henri (1983a). La presencia y la ausencia – contibucion a la teoria de las representaciones. México, D.F., Fondo de Cultura Economica, pp. 277.
SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da (1989). José Saramago – Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 278 p.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira (1996). São Paulo: Cia. das Letras, 310 p. (EC)