Ele não viu mãe
Ele não viu que eu estava com a roupa da escola?
por Ana Laura Prates
do Psicanalistas pela Democracia
“Ele não viu que eu estava com a roupa da escola?”
por Ana Laura Prates
A pergunta que Marcus Vinícius balbuciou a sua mãe, um pouco antes de morrer sangrando, sem socorro médico, após ser sumariamente executado pelo Estado brasileiro, talvez seja a pergunta essencial de nossa época. E devemos a ele uma reposta. Como, entretanto, podemos respondê-la, sem antes pararmos para analisar a profundidade da tarefa que nos foi deixada de herança por esse menino?
Que a pergunta tenha sido dirigida à mãe, que tenha sido proferida na hora da morte, que Marcus tenha suposto um “ele”, ou seja, alguém que pudesse ter se enganado, que tenha feito alusão ao uniforme e à escola – todas essas nuances e muitas outras que não temos acesso, como a entonação com a qual a pronunciou, a sede que sentia na hora, devido à hemorragia, a dor fulgurante que ele esperava nunca mais sentir igual em sua vida, a angústia, o desamparo, a falta de resposta.
A pergunta de Marcus revela, pelo lado do avesso, que chegamos ao limite do que Lacan chamou de Discurso Universitário, o qual é sustentado pelo imperativo ‘eduque-se!’, e que estamos galopando velozmente para o pior. Como eu havia lembrado no texto “A criança como sintoma: mal estar no Brasil”: “a ‘Criança’ enquanto objeto da educação, do progresso e do desenvolvimento é o efeito desse discurso, formalização de um dos impossíveis freudianos, nesse caso, o educar.” A educação foi, certamente, um dos ideais da Modernidade, que foi elevado por Lacan à estrutura de um tipo de discurso agenciado pelo saber que, aplicado ao outro, o moldará segundo os ideais de autonomia e independência suposto no chamado adulto – o indivíduo do capitalismo que então surgia. Ele o batiza de Discurso Universitário justamente pelo que se supõe de saber universal na Ciência Moderna que vinha tomar o lugar de Deus. O Saber universal e científico foi, a partir daí, o nosso abrigo.
O tempo para se educar cujo território correspondente passará a ser, desde então, a escola, corresponderá ao lugar de passagem entre o infanse o sujeito formado, educado, maduro, desenvolvido e adaptado que chamamos de adulto. O Discurso Universitário cria, portanto, a criança enquanto objeto do saber e da ciência, com diversas consequências importantes como o aparecimento de uma série de disciplinas e especialidades: a pedagogia, a pediatria, a pedopsiquiatria e, do outro lado da moeda, a pedofilia como a “patologia” mais temida; embora, rapidamente, o capitalismo tenha passado a capturar a própria imagem do corpo infantil para transforma-la também em paradigma de sedução, sobretudo na publicidade.
O aparecimento do saber sobre o objeto criança, e essa série de especialidades a partir daí desenvolvidas trouxe, por sua vez, várias conquistas no plano dos direitos humanos e, mais especificamente, possibilitou a um grupo de seres humanos selecionados pela idade, uma proteção a mais na sociedade ocidental, a partir da Modernidade. Os direitos das crianças, atualmente em extinção, é certamente o caso mais evidente de avanços sociais trazidos pelos conhecimentos construídos nos últimos séculos sobre a infância (Prates, 2012).
Na vertente radical da separação, por mais paradoxal que possa parecer, um discurso que segrega, possibilita, eventualmente, ao longo da história, um reconhecimento de particulares que se agrupam em subconjuntos do universal humano, gerando especialistas e direitos especiais, como o comprova as conquistas históricas da política das diferenças. Se em 1967, Lacan havia alertado para a segregação trazida à ordem do dia, em 1969 ele refere-se ao campo de concentração generalizado, o que é algo bem diferente. A lógica da concentração, que reduz todos a objetos, sabemos, inclui o extermínio. Afinal, é preciso apagar os rastros dos restos a qualquer custo. Segundo a fundação Abrinq, 30 crianças e adolescentes são assassinados por dia no Brasil. E o número de mortos mais do que dobrou entre 1990 e 2015. Algumas entidades defensoras dos direitos humanos falam, justamente, em genocídio dos jovens das periferias das grandes cidades brasileiras.
A polícia militar de São Paulo é considerada pela ONU uma das mais assassinas do mundo, e nos outros estados da Nação a situação também é alarmante. Nos últimos anos, temos assistido atônitos ao extermínio explícito de crianças nas comunidades do Rio de Janeiro, vítimas da chamada “guerra ao tráfico” que, atualmente, inclui o protagonismo do exército brasileiro, dada à intervenção militar solicitada pelo estado do Rio e concedida pelo governo federal.
Nessa semana, entretanto, fomos confrontados, atônitos, por duas situações envolvendo novamente a criança como sintoma do esgarçamento do laço social nos tempos difíceis que estamos atravessando nesta segunda década do século XXI. Primeiro, o mundo chocou-se com as cenas e áudios de crianças latino-americanas ‘concentradas’ em celas, nos EUA que é considerado um país democrático e desenvolvido.
A situação que coloca seres humanos em um ‘sem lugar’, infelizmente, não é mais uma novidade em neste século. O relatório Global Trendsaponta 65,3 milhões de pessoas deslocadas por guerra e conflitos até o final de 2015. Sabemos que a noção moderna de Estado Nação criou um mundo com fronteiras. Por sua vez, a falsa promessa da Globalização através da pretensa unificação promovida pelo capital e pela informação leva ao que Milton Santos chama de esquizofrenia do espaço, apontando para o fato de que nessa nova ordem mundial, e apesar das aparências,o Estado se torna mais forte e mais presente, a serviço da economia dominante.A face fascista do Estado e seu sintoma mais obsceno: o nacionalismo, nunca esteve tão explícito, inclusive no Brasil. Essa lógica só faz recrudescer o racismo, a segregação sistemática e seu corolário: o campo de concentração generalizado, tal como previsto por Lacan e sistematizado por Agamben na noção de homo sacer.
A cena dessa semana, no entanto, choca ainda mais por ser institucional e revestida de um caráter legal e democrático, além de ter sido noticiada e veiculada por agências oficiais de informação, e também porque mostrou, em pleno ano de 2018, um campo de concentração de crianças em plena América, a pretensa terra da liberdade. Esse fato é muito significativo do fracasso do discurso da educação que até então prometia proteger as nossas crianças modernas, e sua absorção pelo Discurso do Capitalista – cuja versão mais bem acabada é a doutrina neoliberal –, o qual nos reduz a todos a objetos consumíveis.
Outro sintoma desse esgotamento é o movimento que vem ocorrendo no Brasil da compra de várias escolas de classe média alta por grandes grupos internacionais que vendem a formação escolar como mais um produto a ser consumido. No nível público, por sua vez, a “escola sem partido” avança a passos largos rumo a uma pasteurização acrítica, formadora de consumidores passivos e cordatos, aptos para um mercado de trabalho sem direitos e sem previdência.
Nesse cenário, a morte obscena e insuportável do menino Marcus Vinícius, na Favela da Maré, é uma cruel constatação do fim de uma era na qual se podia ao menos supor que a escola era um abrigo. O fato de que ele estava usando o uniforme, aqui, não é casual. Antes, é o detalhe mais significativo dessa execução. A roupa da escola pública que nos uniformizava, tornando-nos, ao menos durante algumas horas, todos iguais. Como esquecer a saia plissada cinza, a camisa branca de abotoar, a meia ¾ branca e o sapato de verniz preto? Ali éramos iguais e, minimamente, dentro daqueles muros que de certa forma nos aprisionavam e constrangiam talvez, paradoxalmente, nos julgássemos protegidos. Assim como o menino Marcus Vinícius, antigo sujeito do Discurso Universitário, o supôs. Naquela época, lutávamos contra ‘a má educação’[2]cristã, gritávamos que não queríamos nenhum controle mental, e resistíamos para não sermos apenas mais um tijolo no muro[3].
Há muito já não se usa uniforme nas escolas dos ricos. Há muito deixamos de fabricar embutidos mentais; formamos, ao contrário, supostos sujeitos críticos e pensantes que, doravante farão um ano de mochilão antes de decidir o que vão ser quanto crescer. Pensávamos que os nossos filhos estavam protegidos pelos muros verdes e sustentáveis das escolas caras e construtivistas, prontos para se transformarem na nova elite da nação. Até que fomos todos comprados pelo capital estrangeiro sem partido. Nenhuma proteção, portanto, contra o capital. Mas, a morte aqui é simbólica. Hoje vamos coloca-los para dormir e, se sentirem sede, vamos saciá-la, e se estiverem machucados vamos levá-los ao pronto socorro com nossos carros. Ainda acreditamos que nossos semblantes uniformes – nossa pele branca, nossa conta no banco, nosso plano de saúde, nossa SUV, nossas férias em Miami, nossa democracia – nos protegem.
Marcus Vinícius, entretanto, estava com a roupa da escola. Uniforme. Ele não viu? Marcus Vinícius estava na escola pública, sem partido, em um estado sob intervenção militar, em pleno estado de exceção no Brasil, no século XXI, na mesma semana em que outras crianças brasileiras estavam em um campo de concentração nos EUA, chorando e gritando desesperadas porque tinham sido separadas de suas famílias. Marcus Vinícius estava de uniforme – Ele não viu? – e foi executado pelo Estado brasileiro.
Mas, há um lado ainda mais trágico nessa morte, a morte de mais uma criança, a morte que em alguns dias será apenas mais uma estatística: É o fato de que, diante dela, diante da morte de Marcus Vinícius, com a roupa da escola, pelo Estado, o país não para. Todos seguem suas rotinas. Alguns se emocionam e depois esquecem. Talvez pensem que seus filhos estejam protegidos. Não estão. Não temos mais a escola para nos proteger. Chegamos ao cúmulo do fracasso do ideal da educação. Não temos mais partido, tampouco escola. O que deveria ser visto, então, pelo homem armado pelo Estado para matar crianças na Maré?
Se Adorno perguntou se há poesia depois de Auschwitz, deveríamos nos perguntar se há educação depois de Guantanamo.
Não Marcus Vinícius, a roupa da escola já não nos protege mais. É urgente, portanto, encontramos novas formas de estarmos juntos!
[1]Ana Laura Prates é Psicanalista membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, Doutora pela USP e Pós-doutora pela UERJ. Autora de “Feminilidade e experiência Psicanalítica” (Aller, 2ª. Edição) e “Da fantasia de Infância ao infantil na fantasia” (Annablume).
[2]Alusão ao filme de Pedro Almodóvar “La mala educacion”
[3]Alusão à música “Another brick in the wall” do álbum “The Wall” de Pinck Floyd