Educar sem refletir
'Educar sem refletir é promover a não educação'
Carmem Craidy alega que projeto restringe a liberdade dos docentes
CASSIANA MARTINS/JC
Jessica Gustafson
Dois projetos de lei com conteúdo similar tramitam na Assembleia Legislativa do Estado e na Câmara Municipal de Porto Alegre com o objetivo de implantar o Programa Escola sem Partido, que tem o intuito de coibir que os professores abordem, de forma política e ideologicamente enviesada, os conteúdos ensinados. Para muitos, a inciativa é totalitária e busca cercear os docentes em suas atividades, sendo chamada de "Lei da Mordaça". Carmem Craidy, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e conselheira estadual de Educação, considera que está sendo proposta uma não educação, pois educar é exatamente incentivar a capacidade de reflexão sobre a vida, a sociedade e seus desafios. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, antes de participar de um debate sobre o tema realizado ontem, na Câmara, Carmem ressaltou que os projetos são "ambíguos, contraditórios e inconstitucionais".
Jornal do Comércio - Como a senhora analisa o surgimento de projetos com esse teor no contexto vivido hoje pelo Brasil?
Carmem Craidy - São projetos extremamente ambíguos, contraditórios e inconstitucionais. É impossível educar sem reflexão sobre os problemas que pautam a sociedade. O caráter desses projetos fica muito claro se considerarmos quem são as pessoas que estão os apresentando. Em geral, são pessoas de ultradireita, que se dizem liberais, mas que de liberais não têm nada. Eles são é totalitários. Isso só se explica no clima de golpe de Estado que se vive hoje no Brasil. Em uma perspectiva democrática, esses projetos são impensáveis.
JC - Levando em consideração o crescimento de setores conservadores no País, a senhora acredita que essas propostas possam se efetivar?
Carmem - Isso já está acontecendo. Temos alguns casos no Rio Grande do Sul de alunos que apanharam porque estavam organizando um grêmio estudantil. A direção dessas instituições chamou a polícia e os entregou como se eles estivessem cometendo um crime. Se a sociedade não se levantar e se posicionar, isso pode acontecer em outros locais, e é muito perigoso. Vivemos um aumento do fundamentalismo, que nega todas as liberdades e discrimina diversos grupos sociais. Um exemplo desastroso foi quando votamos o Plano Estadual de Educação. Foi uma batalha na Assembleia Legislativa para retirar o termo "gênero" do texto. Como se o termo, em si, propagandeasse coisas nefastas. O termo gênero é corrente na língua portuguesa, designa uma diferença existente em nossa sociedade e deve ser objeto de reflexão também dentro da escola.
JC - Um dos argumentos dos que são favoráveis ao projeto é de que é preciso ser neutro dentro de sala de aula. Isso é possível?
Carmem - Como dizia Paulo Freire, toda a neutralidade esconde uma posição que não se quer mostrar. Essa frase, inclusive, introduz a manifestação do Conselho Estadual de Educação sobre esse tema.
JC - Quais os prejuízos para os estudantes se esses projetos forem aprovados?
Carmem - O que aconteceria é a ausência de educação. A educação é exatamente a capacidade de refletir sobre a vida, a sociedade e os desafios, e se posicionar sobre esses temas. Não refletir sobre essas questões é não educar. Aí, sim, teremos uma doutrinação, uma doutrinação gravíssima, que é a do pensamento único. Inclusive, se parte do pressuposto de que o jovem não tem consciência crítica e que vai aceitar tudo o que o professor disser. Isso não é assim. O jovem hoje é extremamente crítico. Proibir a criticidade é repressão.
JC - Como a senhora definiria a ideia de "educação libertadora"?
Carmem - Para Paulo Freire, a educação libertadora é exatamente a educação criadora da consciência crítica, na qual a pessoa seja capaz de se posicionar.
MANIFESTAÇÃO DO CEEd/RS SOBRE O PL 190/2015
A propósito do PL 190/2015
"Não existe educação neutra, toda neutralidade afirmada é uma opção escondida" (Paulo Freire)
Em face da ameaça a liberdade de ensino representada pelo PL 190/2015, o CEEd/RS considera seu dever recordar os preceitos legais que fundamentam a educação brasileira. O artigo 206 da Constituição Federal de 1988 afirma que o ensino será ministrado com base, entre outros, nos seguintes princípios: II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de idéias de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei 9394/1996) reafirma: - Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino, na pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais -Art.2 º- A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideias de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 3º - O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: II- liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III- pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; IV-respeito a liberdade e apreço à tolerância; X- valorização da experiência extra-escolar; XI – vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) define: Art. 15 – A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. Art.16- O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: II- opinião e expressão III- crença e culto religioso VI- participar da vida política na forma da lei Art. 53 A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho , assegurando-se-lhes II – direito de ser respeitado por seus educadores III- direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores; IV- direito de organização e participação em entidades estudantis. Isto posto e no desempenho de suas funções de órgão consultivo, normativo, fiscalizador e deliberativo do Sistema Estadual de Ensino, o CEEDRS vem a público manifestar sua discordância em relação ao referido projeto de lei, ora em tramitação na Assembleia Legislativa do RS, por considerar que o mesmo fere a Constituição e os princípios democráticos afirmados na legislação educacional brasileira. A política é o meio de organização da vida coletiva e está presente em toda e qualquer comunidade humana. Negá-la é afirmar o princípio anti-democrático do pensamento único. Respeitar as diferenças e fazer da escola um lugar de reflexão sobre os problemas sociais e políticos presentes na sociedade é fazer a educação para a cidadania. Educar no pensamento único é negar a educação. Os princípios presentes no PL 190/2015 negam a própria possibilidade de educar. Escola sem política é escola sem educação, sublinhando-se que a escola deverá respeitar diferentes posições e situações sociais, e jamais praticar o dogmatismo de qualquer natureza, assim como deverá combater toda a forma de discriminação. A escola deverá ser uma comunidade de aprendizado e vivência dos Direitos Humanos e da Democracia. Pelo exposto propomos que o PL 190/2015 seja rejeitado em sua totalidade.
Porto Alegre, junho de 2016 |