Educação pública

Educação pública

Educação pública: Adam Smith e Karl Marx

Educação pública: Adam Smith e Karl Marx

No clássico A riqueza das nações, o filósofo moral e economista Adam Smith escreve: “A educação de gente comum (…) requer talvez mais a atenção do público do que a educação das pessoas de posição e fortuna”.[1] Para Adam Smith, em alguns casos “o estado da sociedade necessariamente coloca a maior parte dos indivíduos em situações tais que naturalmente neles se formam, sem qualquer ajuda do governo, quase todas as capacidades e virtudes esse estado requer (…). Mas em outros casos “o estado da sociedade não coloca os indivíduos nessa situação, e é necessária a atenção do governo para impedir a quase total corrupção e degeneração da grande maioria das pessoas”.[2]

Adam Smith fala aqui, portanto, em um sentido liberal clássico, depois completamente esquecido pelos liberais já antes ideólogos que filósofos. Visto hoje, pela ótica desses liberais ideólogos, Adam Smith seria um perigoso deturpador da “natureza humana”, um social democrata de formação marxista, alguém a quem se deveria dar combate. Afinal, ele quer que o governo se preocupe com a educação popular!

Aliás, Smith não fala aqui como um liberal como foram, mais tarde, os liberais brasileiros do Império e do início da República, que deixaram aos positivistas a defesa da educação obrigatória. Ele diz claramente: “o público pode impor a quase todo o povo a necessidade de adquirir essas partes mais essenciais da educação, obrigando qualquer homem a submeter-se a um exame ou prova incidindo sobre elas, antes de poder pertencer a qualquer corporação”, ou antes, de estabelecer-se em um ofício.[3]

No A riqueza das nações, Adam Smith defende a escola paroquial, tendo seus professores pagos uma parte pelos frequentadores e outra parte pelo governo. Nessa escola, deveria se ensinar o básico: ler, escrever e contar. Seria um ensino de massa. Algo para elevar todo o país em questão a um mesmo patamar de saber útil. Mas a utilidade não deveria ser o objetivo único. Ele deixa isso claro: “se não houvesse instituições públicas destinadas à educação não se ensinaria uma ciência, fosse ela qual fosse, para a qual não houvesse alguma espécie de procura”. Assim, para não ficar preso à demanda, Smith insiste na necessidade de uma intervenção do governo na manutenção da escola de modo a tornar esta alheia à “moda”.[4]

Por sua vez, Karl Marx, o principal crítico de filósofos como Adam Smith, tanto em O Capital quanto em outros escritos, não mostra uma discordância deste, quanto à educação. Não se trata de abolir os postulados liberais. Marx fala em ir além desses princípios. Ele entende que a escola de Smith ainda é aquela que dá à população operária apenas o mínimo, e que o necessário, nesta sociedade capitalista, seria uma escola capaz de elevar o operariado a um grau superior de cultura. O que ele tem na cabeça é sua proposta de “politecnia”, que deveria aproveitar-se do trabalho como elemento construtor do conteúdo do ensino.[5] Aliás, nesse sentido, Marx paga sua dívida a Hegel, também um pensador muito influenciado pelo “paradigma do trabalho” (o que fica claro na “dialética do senhor e do escravo”).

Talvez essa questão da vinculação da pedagogia ao trabalho seja datada. Mais datado ainda é o requisito, de fundo positivista e político, de fazer a escola apenas acolher matérias não sujeitas às interpretações doutrinárias, partidárias etc.[6] Mas, para além disso, há formulações interessantes de Marx que realmente valem a pena assinalar. Trata-se de sua ideia, retirada do sistema de ensino dos Estados Unidos, em que o estado intervém na educação apenas como mantenedor, financiador e administrador, mas não como quem regra a diretriz do conteúdo e da pedagogia. Aqui, Marx preserva a liberdade do professor e da comunidade. Nesse sentido, ele elogia claramente o ensino americano.[7] Nesse caso, ele deixa claro que a influência da Igreja e do Estado deve ficar de fora da escola.

É claro que olhando Smith e Marx, hoje, notamos que ambos estão vinculados, ainda que a partir de perspectivas diferentes, a um mundo que fez os pensadores mais progressistas – e ambos o foram – tudo olhar pela ótica do “trabalho”. O trabalho efetivo, industrial, e a moral do trabalho a este acoplada, deram o tom o século XVIII e XIX. Assim, quando a sociologia nasceu, dois de seus grandes teóricos, Durkheim e Weber, construíram-na a partir de estudos relativos ao trabalho. Por sua vez, a pedagogia desses tempos se transformou em “pedagogia ativa”, com John Dewey à frente, e o nome “ativo”, nesse caso, não dizia respeito às questões de ludicidade e, sim, às questões da vida industrial. Exceto isso, os princípios liberais de Smith do governo que cuida da população de modo a fazê-la educada, e os princípios que se pretendem acima do liberalismo, de Marx, no sentido de fazer o estado financiar mais não se imiscuir doutrinariamente nas escolas, parecem válidos até hoje. Deveríamos pensar nisso. No Brasil, mais que nunca, deveríamos voltar a pensar nisso.

Paulo Ghiraldelli, 58, filósofo. Autor entre outros de Sócrates: pensador e educador (Cortez, 2015).

 

[1] Smith, A. A riqueza das nações. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983, Vol. II, p. 419.

[2] Idem, ibidem, p. 416.

[3] Idem, ibidem, p. 422.

[4] Idem, ibidem, p. 415.

[5] Sobre Marx e as questões educacionais vale consultar: Manacorda, M. A. Marx y la pedagogia moderna. Barcelona: Tau, 1979.

[6] Idem, ibidem, p. 111.

[7] Idem, ibidem, p. 109.

 

http://ghiraldelli.pro.br/adam-smith-e-karl-marx/




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