Educação na América Latina
Educação na América Latina: a reação conservadora
– 22 DE NOVEMBRO DE 2016
Influenciadas pela elite financeira, propostas de mudanças no ensino no México, Brasil e Argentina atendem principalmente à meta de formar mão de obra barata. Por isso, multiplicam-se as lutas
Por Caio do Valle Souza, no Calle2
A educação atravessa um momento crítico na América Latina. Recentes propostas de reformas no setor têm despertado discussões acaloradas, além de protestos – que, inclusive, resultaram em mortes – em inúmeras localidades entre o Río Grande e a Tierra del Fuego. O Brasil não está de fora, visto que o governo Michel Temer vem buscando impor a reestruturação do ensino médio através de uma medida provisória já em trânsito no Congresso.
Há pontos em comum entre os projetos aventados em diferentes países da região, como México e Argentina: a ampliação dos mecanismos avaliadores de alunos e professores, a desarticulação da categoria docente e o estabelecimento de um caráter terminal e técnico para o ensino médio.
É relevante observar, também, o interesse e a influência de poderosos organismos econômicos internacionais, como o Banco Mundial e a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), na elaboração das políticas públicas voltadas para a educação latino-americana, sempre com o pretexto de ampliar a sua “eficiência”. Além disso, entidades privadas, às vezes sob o manto de neutralidade das organizações não-governamentais, procuram balizar ações estatais com o intuito de modificar currículos escolares e metodologias de ensino conforme interesses e demandas empresariais.
Estudiosos da Educação ouvidos pela Calle2 argumentam que, embora as investidas neoliberais já ocorram há algumas décadas na política do continente, tem-se observado, nos últimos anos, uma ampliação dessas diretrizes no que concerne ao segmento de ensino. O professor João Branco, membro do Grupo de Pesquisa Poder Político, Educação e Lutas Sociais (GPEL) da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), vê nesse movimento uma espécie de contrarrevolução, dado o seu forte caráter conservador. De acordo com ele, existe um vínculo entre as reformas educacionais pautadas por pressupostos do neoliberalismo e o modelo econômico de produção que tem se delineado, ao redor do mundo, neste início de século.
As reformas educacionais, portanto, visam mais a “formar” mão de obra adaptada para o mercado do que a expandir a qualidade da educação.
“Podemos enxergar um conjunto amplo de ações, uma verdadeira ofensiva, para impor essa contrarreforma. A primeira é encaixar o discurso da qualidade educacional, criador do consenso de que o sistema de ensino é fraco, ineficiente, incapaz, com resultados pífios”, explica o pesquisador. Em seguida à consolidação desse discurso, prossegue Branco, mobiliza-se um “grande exército de técnicos e especialistas em educação” para atestar, com dados e medição de resultados, “o fracasso da comunidade escolar”. “Empilhando documentos e sistemas de diagnóstico padronizados, criam a ‘evidência’ de que é necessário mudar; ou seja, a avaliação da escola, dos professores e estudantes se torna uma constante.”
Mecanismos de aferição do “desempenho” de alunos, professores, diretores e escolas pipocaram em muitos países latino-americanos, seja em nível regional ou nacional. No primeiro caso, um exemplo é o Saresp (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo), instituído pelo governo de São Paulo vinte anos atrás, e que é usado para calcular o pagamento ou não de bônus aos servidores da educação a cada ano. Já em âmbito federal, pode-se destacar, na Argentina, a prova Aprender, criada há alguns meses pelo presidente Mauricio Macri, que até montou uma Secretaria de Avaliação Educativa com o objetivo de “medir a aprendizagem” dos estudantes da educação básica no país.
Provas dessa natureza levam ao estabelecimento de índices e metas que, além de estimular certa competitividade mercadológica entre escolas e profissionais do ensino, servem a propósitos políticos e econômicos mais obscuros. Tanto é assim que, quando, em 2015, o governador paulista, Geraldo Alckmin, revelou o desejo de fechar 94 escolas no Estado, alguns defensores da proposta utilizaram o desempenho “ruim” de parte dessas unidades no ranking estadual como argumento para a sua desativação.
Um documento produzido pelo Banco Mundial em 2014, e significativamente intitulado Professores excelentes: como melhorar a aprendizagem dos estudantes na América Latina e no Caribe, constitui um indício de como tais avaliações podem ser usadas como meio de convencimento para alterações estruturais nos sistemas de ensino do continente. A partir dos resultados latino-americanos no PISA (sigla em inglês para Avaliação Internacional de Estudantes), o organismo sugere, entre outras coisas, medidas para ampliar a “eficácia” dos professores em sala de aula. Segundo o Banco Mundial, o magistério na região atrai profissionais menos capacitados do que em outras partes do mundo. Entretanto, para o pesquisador João Branco, da USP, o órgão despreza “as diferentes realidades de cada país, sua história, sua organização social, sua diversidade, a cultura, os diferentes contextos onde se ensina e se aprende”.
Como ‘superar’ os sindicatos
O mesmo manual do Banco Mundial inclui um capítulo dedicado a estimular os governantes a “superar” o intermédio dos sindicatos de professores do ensino básico – mas tudo de modo a evitar conflitos diretos. Uma saída está nos planos de avaliação voluntária, por exemplo. Conforme explicita o Banco Mundial, o “maior desafio para elevar a qualidade dos professores não é fiscal nem técnico, mas político, porque os sindicatos dos professores em todos os países da América Latina são grandes e politicamente ativos”.
Ou seja, para o respeitado órgão econômico, melhor estariam as entidades representativas dos docentes latino-americanos caso nunca se mobilizassem no xadrez político, algo que contraria os próprios fundamentos da democracia liberal que a instituição afirma defender.
Aliás, interessante constatar que, em questões de educação, o Banco Mundial considera “ideológico” apenas o que não corrobora a sua própria linha de pensamento e conduta. Em outro documento, Achieving world-class education in Brazil, publicado em 2010, a instituição defende que as faculdades de educação brasileiras passem a dar, na formação de professores, maior ênfase aos conteúdos (de matemática, ciências e linguagem) em detrimento do “atual predomínio de filosofia e ideologia”. (Qualquer semelhança com a medida provisória do ensino médio propugnada pelo governo Temer, que enfatiza essas três grandes áreas do conhecimento e relativiza a importância de sociologia e filosofia no currículo escolar, pode não ser mera coincidência.)
No México, a reforma educacional levada a cabo desde 2012 pelo presidente Enrique Peña Nieto enfrenta a resistência da CNTE (em espanhol, Coordenação Nacional de Trabalhadores da Educação, uma dissidência interna do sindicato da categoria). Contudo, segundo Héctor Rodolfo Andrade López, pesquisador da UNAM (Universidad Nacional Autónoma de México), o governo, através de mudanças legais, deu um passo no sentido de individualizar a ação dos professores, levando a uma perda do poder de representação sindical. O artigo terceiro da Constituição, por exemplo, passou a contemplar o Sistema Nacional para a Avaliação da Educação após uma canetada do presidente. “Isto rompe a força do sindicato e institucionaliza uma avaliação para controlar e despedir os professores”, destaca Andrade, lembrando que o processo de avaliação padronizado ignora diferenças fundamentais em um país multicultural e multilinguístico como o México. Ainda de acordo com o estudioso, as diretrizes reformistas têm, acima de tudo, um cunho laboral: “Encontraram um jeito de dividir e debilitar a resistência dos professores”.
A reforma foi precedida por um documento fabricado em 2010 pela OCDE, à qual o México é associado, batizado de Acuerdo de cooperación México-OCDE para mejorar la calidad de la educación de las escuelas mexicanas. Por outra “coincidência”, o relatório pontifica justamente que o “México necessita com urgência de um sistema de avaliação de professores baseado em padrões” e que os “docentes que apresentarem um baixo desempenho de modo permanente devem ser excluídos do sistema educacional”.
Resistências
Não é à toa que a resistência à implantação da reforma encontre terreno fértil em Estados de grande população indígena, como Oaxaca, ao sul do Distrito Federal. Foi ali que, em junho deste ano, ao menos seis manifestantes contra as novas políticas educacionais morreram durante uma repressão violenta da polícia. As pessoas protestavam, fechando rodovias, após a prisão de dois líderes da CNTE. Entre os participantes do ato havia professores e pais de alunos.
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