Educação e movimento
Educação e movimento para avançar
Sociólogo comenta reforma e papel da Sociologia no ensino, além da necessidade de militância organizada para dar conta das mudanças necessárias na sociedade
Por Lejeune Mirhan | Fotos: Arquivo pessoal | Adaptação web Caroline Svitras
Para esta edição vamos entrevistar o sociólogo John Kennedy Ferreira. Formado pela Escola de Sociologia e Política (ESP) de São Paulo, cursou Política Internacional nessa mesma instituição. Fez mestrado em Ciência Política na PUC/SP e doutorado em História Econômica na USP. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Maranhão. Kennedy, como é mais conhecido, teve importante papel na luta pela obrigatoriedade do ensino de Sociologia entre 1997 e 2008. Foi coordenador do Grupo de Trabalho de Sociologia da Apeoesp, tendo sido também no mesmo período diretor do Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo. Teve atuação intensa também na questão dos direitos humanos e da cidadania. Lecionou muitos anos na rede pública estadual de SP.
Você teve papel destacado na luta pela obrigatoriedade do ensino de Sociologia e Filosofia nas escolas de ensino médio do país, que foi oficializado em junho de 2008 após 11 anos de muita luta. Hoje corremos o risco de perder esse direito. Como você vê esse momento na educação brasileira, inclusive com uma reforma de ensino médio que foi contestada pelas entidades de professores em todo o país.
São momentos históricos diferentes: na década de 1990 retomamos o debate, iniciado com a redemocratização brasileira, do retorno da Sociologia e Filosofia no currículo nacional (alguns ainda defendiam a Psicologia). Vivíamos o avanço das lutas democráticas e da consolidação da Constituição Brasileira. Os anos de 2000 foram marcados pela consolidação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), com imensos avanços na pedagogia inclusiva, com debates sobre gênero, acessibilidade, Estatuto da Criança e do Adolescente, questão étnica e sobre o próprio passado brasileiro e as perspectivas abertas quanto ao futuro da sociedade no conhecimento, pesquisa, ciência e educação.
Destaco alguns avanços como a merenda escolar, a política de combate à homofobia e ao machismo, a proibição do trabalho infantojuvenil, as cotas para negros e indígenas, as políticas de inclusão de pessoas com deficiência, como as rampas de acessibilidade. Tudo isso veio num debate crítico sobre o papel da escola, dos discentes e docentes e sua importância no meio social. Óbvio que nessa efervescência cultural havia a necessidade de discutir a sociedade e os modos pensantes, portanto a Sociologia e a Filosofia ganharam destaque como recurso intelectual.
O retorno da Sociologia esteve vinculado à democratização da sociedade brasileira e às constituições de móveis intelectuais que habilitassem a escola e a sociedade com maiores e melhores instrumentos de análise quanto a seus direitos presentes e futuros. Uma sociedade e uma educação historicamente excludentes estavam sendo questionadas por pais, alunos, professores, instituições sindicais, políticas estudantis, acadêmicas e pelos fóruns municipais, estaduais e nacionais que foram constituídos para tanto.
A própria questão do possível financiamento da educação por meio do pré-sal mostrava uma disposição do Estado e dos governantes em dar um passo histórico no sentido de superar o atraso estrutural brasileiro. O golpe de Estado de 2016, perpetrado através do Parlamento, coloca um retrocesso que se manifesta especialmente na contrarreforma educacional. Ganham vulto, nesse período, diversos debates obscuros e seiscentistas como a “escola sem partido” (um novo 477), a limitação da discussão de gênero, cotas, etnias etc. Óbvio que a agenda regressiva imposta pelo cleptocrático governo de Michel Temer é associada ao modelo e à saída neoliberal desenhada pelas corporações transnacionais.
A desnacionalização da economia brasileira de um lado e a retirada de direitos dos desfavorecidos de outro visam à construção de mão de obra barata, desqualificada e de empresas terceirizadas ampliando a mais valia, como também uma fonte de lucro rápido e incerto com a privatização de ativos brasileiros. Este é o modelo que está sendo desenhado com o golpe (tanto aqui como na Argentina, México, Honduras etc.). Portanto, a tecnização da defasada educação brasileira é um dos grandes retrocessos impostos pela agenda golpista. Penso que a nossa ciência, a Sociologia e as demais disciplinas da área de humanas das licenciaturas passam por um profundo ataque.
O “notório saber” com diplomação em licenciatura em três meses, a ampliação de jornada de trabalho docente, o fim da aposentadoria especial para docentes além da tecnização desqualificam o debate pedagógico e o ensino público e possibilitam a privatização/ongzação etc. como tem sido apontado em Goiás e Rio Grande do Sul e em vários municípios.
Isso joga anos de um rico debate pedagógico, sindical e estudantil no lixo e coloca no lugar uma ação política capitaneada por um lobista de um dos maiores grupos privados em educação do Brasil. Penso que a campanha capitaneada pelos saudosos sociólogos Florestan Fernandes e Rocha Pinto no início dos anos 1960 em defesa da educação e da escola pública, gratuita e de qualidade ganha uma imensa atualidade.
Da mesma forma, devemos correr o Brasil, falar com todas as pessoas, disputar corações e mentes. Medidas tomadas como a frente nacional contra a “escola sem partido”, puxada pela Contee, CNTE, Andes, Pró-Ifes (e demais entidades), devem ser multiplicadas em nível prático ao cotidiano de cada estado, munícipio ou unidade escolar. É fundamental organizar a base da sociedade para essa luta. É importante que os negros, LGBT, mulheres, indígenas, jovens, estudantes, movimento comunitário, pessoas com deficiência participem dessa frente mostrando a toda sociedade que o golpe traz consigo o amargo do racismo, da xenofobia, da homofobia, do machismo, do feminicídio, dos preconceitos.
Você atuou muitos anos na área de direitos humanos e cidadania. Hoje no Brasil ainda temos violações de todos os direitos e muitos tipos de discriminação, em especial contra negros, homossexuais, migrantes. Todos os dias os jornais mencionam agressões a mulheres (feminicídio), aos militantes LGTB e às crianças. Por que isso ainda acontece em nosso país? Teríamos causas históricas para explicar essa situação?
O Brasil tem uma classe dominante seiscentista. Essa classe dominante foi incapaz de romper os elos coloniais, a escravidão, o machismo e toda sorte de preconceito. Fernão Cardin, já no século XVII, comentou que as elites de seu tempo se comportavam como caranguejos, virados para o oceano e de costas ao imenso país. Nunca conseguimos realizar uma revolução demográfica que objetivasse a ocupação democrática do espaço nacional.
A escravidão nunca foi superada, nunca tivemos a integração dos ex-grupos de escravos (maioria da população brasileira), negros e índios na sociedade competitiva. A limitada política de cotas esbarrou em toda sorte de preconceito e racismo velado ou não, como ficou claro nas manifestações das elites brancas pelo impeachment/golpe.
A democratização do urbano e das terras esbarra no poder secular de grupos burgueses e oligárquicos que visam monopolizar a terra. Movimentos democráticos como o MST ou MTST são demonizados. Em apenas duas décadas tivemos mais de cinco mil assassinatos no campo de índios, líderes sem-terra, sindicalistas rurais, freiras e padres. É uma verdadeira chacina.
No espaço urbano, mulheres e LGBTs são vitimados diuturnamente a ponto de cidades como Rio de Janeiro e São Luís terem média oficial de mais de 10 estupros diários enquanto em São Paulo o número de BOs de estupros chega perto de 40 por dia. Isso levando em conta que a própria Delegacia da Mulher de São Paulo declarou que de cada dois estupros em apenas um a ocorrência é registrada.
Igualmente São Paulo continua sendo campeã ocidental de assassinatos de gays. Um por dia. Sem falar nos linchamentos naturalizados na Bahia e Espírito Santo. Populações em situação de rua também são vítimas de assassinatos bestiais como nos lembra o caso Galdino, o índio confundido com um morador de rua e queimado por cinco jovens, em Brasília. O golpe trouxe de volta esse Brasil profundo, estúpido e desumano, onde só são reconhecidas como gente as pessoas que têm os mesmos valores corpóreos, as mesmas grifes ou frequentam os mesmos espaços sociais. Os outros estão aqui para servir. É aquilo que se é quando nada mais se pode ser.
Penso que o núcleo central da luta democrática passa exatamente por dar sentido à vida, valorizar o humano, expandir valores que possibilitem aos mais humildes e desfavorecidos a construção de uma apropriação do Brasil. Penso que é preciso empolgar as organizações locais criando uma nova abordagem sobre os bairros, empresas, escolas, sobre os espaços sociais e a democracia. É preciso que as principais vítimas do golpe se reconheçam como sendo as vítimas. Se não conseguirmos apresentar uma razão de ser à vida estaremos nos deparando com outros e outros “pinheirinhos”, como aponta o horizonte cinzento sobre as nações Guarani Kaiowá.
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