Edição histórica
por Marino Boeira
Se algum historiador pretende contar um dia como um meio de comunicação pôde, no Brasil de 2015, se transformar num agente de legitimação da política de um governo, precisa guardar a edição do jornal Zero Hora do último dia 25 de agosto.
Depois de ver a sua candidata ao Governo do Estado, sua ex-funcionária e atual senadora, Ana Amélia Lemos, amplamente derrotada nas últimas eleições, Zero Hora decidiu apoiar a candidatura de José Ivo Sartori, como um mal menor à reeleição de Tarso Genro.
Afinal, a RBS, grupo do qual faz parte o jornal, sempre se deu bem com os governos do PMDB gaúcho, tanto com Britto, também seu ex-funcionário, quanto com Rigotto, e tudo indicava que Sartori, apesar de suas posições sempre dúbias, rezaria pela cartilha neoliberal que o jornal defende.
A visão primária de Sartori de administrar o Estado como uma economia doméstica, agradava ao jornal na medida em que ela implicava, no seu final, em arrochar salários dos funcionários, privatizar bens públicos e não se endividar para bancar investimentos em áreas sociais.
O nó da questão, desde que com a posse de Sartori, o Estado começou a atrasar o pagamento dos vencimentos dos funcionários e deixar de pagar seus compromissos com fornecedores e com a União, era a possibilidade do Governador encaminhar à Assembleia um projeto de aumento do ICMS.
Aumento de impostos – que Sartori negou quando candidato – era questão fechada para o empresariado que Zero Hora sempre divulgou e representou: todos eram contra.
Na capa da edição do dia 25 de agosto, o jornal, porém, deu teoricamente seu aval para que o aumento seja aprovado na Assembleia
A principal editora do jornal, responsável por dar o formato jornalístico para a sua linha política, se dispôs a uma longa entrevista com Sartori, fazendo perguntas que no jargão esportiva significa “deixar a bola picando para ele chutar”.
E o Governador chutou com gosto e deve ter selado a vitória da sua proposta.
A matéria ocupa três páginas, onde – há que se reconhecer – Sartori mostra mais uma vez sua habilidade em fugir das questões mais difíceis. É claro que nelas contou com a colaboração, digamos assim, técnica do jornal.
Quando as questões envolveram os problemas de segurança e educação, ZH usou quatro perguntas de leitores, apenas uma delas com algum grau de agressividade, até para servir de contraponto para as outras três, feitas a feitio para o Governador mais uma vez se omitir das suas responsabilidades.
Vejam os tipos de perguntas, começando pela agressiva: “Quantos inocentes o senhor vai deixar matar antes para depois tomar uma atitude de homem para proteger nossos familiares”?
Resposta: “O Governador sozinho não vai resolver todos esses problemas se não tivermos cuidado e respeito com a vida do outro”.
Uma pergunta do tipo “bola picando”: ‘Antes de ser governador e prefeito, o senhor foi professor e sabe muito bem das dificuldades que o segmento do ensino está enfrentando. O que podemos esperar que o senhor vá fazer para melhorar a qualidade do ensino”
Sobre o tema educação, o jornal poderia ter escolhido várias perguntas, mas registrou essa que ataca diretamente o Cpers: “ Estamos há um mês com essa função de greve e os professores matando matéria, sem ter o que fazer. Como o senhor vai resolver esse problema”?
O melhor ficou para a capa do jornal: uma foto de seis colunas de Sartori, naquela linguagem visual a indicar seriedade (nada daquelas fotos de Dilma que os jornais gostam de mostrar, sempre explorando os piores ângulos da Presidente) e a chamada: ”Para alguém que está com câncer, não adianta dar Novalgina”.
O governador, que já divulgou gratuitamente o Tumelero, quando os professores falavam sobre piso, agora lembra a marca famosa do laboratório Netfarma.
Nem ele, nem a jornalista, lembraram que uma frase mais ou menos parecida, foi dita por Leonel Brizola sobre o Plano Real, quando afirmou que “FHC está querendo curar doente de câncer com analgésico”.
É claro, que dando tanto espaço para o Governador, o jornal deixou um pouco de lado as críticas ao Governo da Dilma, que mesmo assim podem ser lidas nas entrelinhas. Segundo ZH, Dilma vai cortar 10 ministérios, porque “foi pressionada”.
Ao citar uma declaração da Presidente de que o governo demorou para ver a gravidade da crise, o jornal lembra que ela atribuía, há pouco tempo atrás, as dificuldades à crise financeira mundial.
Até a trapalhada do Governo Federal na questão da antecipação do décimo terceiro salário dos aposentados é contada junto com a informação que o funcionalismo federal – inclusive a Presidente – recebeu sua antecipação em julho.
Aquela terceira página de banalidades que tem sempre algo contra os governos do PT, além da costumeira charge de um humorista sem graça, se limitou na edição do dia 25 a esta obviedade: “Quando estava bem, era por méritos do governo. Agora que piorou, a culpa é da China”
E olha que nessa edição, não teve nenhuma matéria daquele jornalista especializado em falar mal dos governos que não seguem a receita neoliberal, principalmente Venezuela e Equador e aquele outro, que vive nos Estados Unidos, usou sua coluna para trivialidades pessoais.
Depois dessa edição, fica difícil para o jornal continuar falando em seus editoriais em imparcialidade e defesa dos interesses da população.
Mas certamente, seus editores – que no passado explicaram e defenderam o golpe de 64 – saberão encontrar um caminho e logo veremos novas e boas notícias sobre Sartori e cada vez mais péssimas sobre Dilma.
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Marino Boeira é professor universitário.
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