É o superávit primário
É o superávit primário, estúpido!
O golpe da malandragem está na abordagem que exclui as despesas de natureza financeira do cálculo das finanças do Estado. Assim, problemas de desajuste devem se resumir às chamadas despesas reais, como saúde, educação, previdência social. As despesas com juros e serviços da dívida e as outras de natureza financeira são, assim, ‘imexíveis’
Artigo em parceria com a Plataforma Política Social, publicado na Revista Política Social e Desenvolvimento #29
Quando se discutem alternativas para a crise econômica atual e as dificuldades para enfrentar os problemas na área fiscal, o discurso hegemônico do financismo insiste em ressaltar os aspectos associados ao descompasso supostamente existente entre a capacidade arrecadadora do Estado e as necessidades de realização das despesas.
A sofisticação na manipulação das estatísticas da política fiscal conflui de forma enganosa para a impossibilidade estrutural de se manter o atendimento das obrigações constitucionais atribuídas à União, Estados e Municípios. Assim, de acordo com a versão mais contemporânea do discurso conservador, o nosso ensaio tentativo de construção das bases de um Estado de Bem-Estar Social definido pela Constituinte de 1988 não caberia mais no Orçamento nos tempos de hoje.
Ocorre que a submissão a tal diagnóstico como uma fatalidade inarredável só se torna possível caso se parta de pressupostos equivocados a respeito da própria realidade fiscal. A aceitação do discurso catastrofista que alardeia o caos iminente, caso não se aceitem as medidas implícitas no “austericídio”, conta com a ignorância da maioria da população a respeito da existência de alternativas sérias e viáveis na condução da política econômica.
Ao recuperar aqui a conhecida passagem da vitoriosa campanha presidencial de Bill Clinton nos Estados Unidos em 1992 (“It is economy, stupid!”), gostaria de chamar a atenção para o ponto de sustentação da narrativa liberal atualmente. Trata-se da orientação inquestionável para o esforço do conjunto da sociedade e dos atores econômicos em torno da obtenção do famigerado superávit primário.
A construção desse importante consenso no interior da dinâmica social converge para uma solução que beneficia apenas os interesses dos grupos vinculados ao sistema financeiro.
“É o superávit primário, estúpido”, provavelmente diria hoje um assessor personificando James Carville da equipe do candidato democrata. Afinal, sem atacar de frente a falácia dessa artimanha de interpretação das finanças públicas pouco sobra realmente a ser feito.
Isso porque ninguém que tenha um mínimo de conhecimento e de experiência no trato da economia no âmbito do Estado pode desconsiderar a necessidade de se buscar algum grau de equilíbrio na combinação de receitas e despesas públicas.
O golpe da malandragem surge justamente na abordagem que exclui as despesas de natureza financeira do cálculo das finanças do Estado. Assim, se há problemas de desajuste e medidas de correção de rumo necessitam ser adotadas, o universo deve se resumir ao grupo das chamadas despesas reais – saúde, educação, previdência social, despesas de pessoal e similares.
Isso significa dizer que as despesas com pagamento de juros e serviços da dívida e as outras de natureza financeira não entram no rol das contas a serem objeto de avaliação e possível corte. Elas são, por assim dizer, “imexíveis”.
Como o foco da política econômica se resume a acompanhar a evolução dos índices de realização das metas de superávit primário, as despesas financeiras podem crescer mais do que as demais. Para o resultado esperado pelos “especialistas” do financismo, pouco importa.
Afinal, obter uma importante e substancial redução no total da despesa com juros não “afeta” em nada o índice do resultado primário. O país agradeceria, as políticas públicas de natureza social seriam indiretamente beneficiadas com tal folga no orçamento. Mas isso de nada adianta, pois a sacrossanta meta não sofreria nem um único arranhão.
As informações atualizadas da política fiscal divulgadas pelo Banco Central revelam que o Brasil gastou R$ 511 bilhões com pagamento de juros da dívida pública ao longo dos 12 meses (novembro de 2014 e outubro de 2015). Isso representa o equivalente a 9% do PIB para o período com tendência de elevação para o último trimestre de 2015. Por outro lado, o mesmo relatório demonstra os dispêndios incorridos pelo Banco Central para assegurar a rentabilidade dos títulos do mercado cambial: foram R$ 108 bilhões para o mesmo período.
Mas como estamos prisioneiros da armadilha do superávit primário, de nada adiantaria promover um corte expressivo nesse total de despesas de natureza financeira da União. Assim, o foco permanece na expectativa de tesouradas nas contas das políticas sociais e nos gastos com infraestrutura e pessoal. Como temos observado, a insistência nessa estratégia equivocada tem levado a um resultado pífio, tendo em vista a dificuldade em reduzir ainda mais as despesas em áreas estratégicas e sensíveis.
Assim, para além de abrir horizontes com a intenção de buscar novas fontes de receita tributando patrimônio, transações financeiras e faixa de renda elevada, é urgente abandonar de forma definitiva essa amarra ao superávit primário.
Se o governo deseja realmente cortar gastos, que o faça olhando para o conjunto das despesas da União. E assim, ficará evidente que a conta “estruturalmente deficitária” e que compromete a execução da política fiscal no longo prazo não é a da previdência social, mas sim a de pagamento de juros da dívida pública.
É o superávit primário, estúpido!
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