Dívida quitada em 2013
“A dívida do Rio Grande do Sul foi quitada em maio de 2013”, afirma o presidente do CEAPE-Sindicato Josué Martins
Por Katia Marko – Assessoria de Imprensa do SINDSEPERS
Em entrevista exclusiva ao SINDSEPERS, o presidente do CEAPE-Sindicato e membro da Coordenação do Núcleo Gaúcho da Auditoria Cidadã da Dívida Pública, o auditor externo Josué Martins, faz uma retrospectiva dos sucessivos acordos de renegociação da dívida do estado e afirma que a dívida do Rio Grande do Sul já foi quitada em maio de 2013. Segundo ele, essa dívida não é pra ser paga nunca, porque se ela for paga, o governo federal perde o controle sobre a gestão financeira dos estados. “Essa que é a questão, percebe?”. A entrevista é longa, mas bastante ilustrativa do momento que vivemos. Vale a pena a leitura. Bom proveito!
Jornal do Sindsepe – Gostaria que você nos contasse um pouco do histórico da dívida pública do Estado.
Josué Martins – Nós temos feito estudos sobre a dívida, e essencialmente em cima de dados oficiais. Então, uma das características que podemos mostrar em termos de evolução da dívida vem a partir de dados de um relatório da dívida pública, que é editado normalmente pela Secretaria da Fazenda do estado. O de 2016, que é publicado em 2017, ainda não foi editado. Sai lá por maio, junho. Mas a partir do que foi editado no ano passado, a gente percebe que, considerando valores atualizados para dezembro de 2015 – eu não vou nem falar no valor de 2016, mas de 2015. O que aconteceu com a dívida do estado? Como que ela se comportou ao longo do tempo, considerando a partir da década de 1970? Se a gente pegar em 1970, a dívida do estado era de R$ 2 bilhões. Em torno de R$ 2 bilhões. Já de 1970 até 1994 – e porque eu peguei o ano de 1994? Porque a partir desse ano ela deu um salto. Então, de 1970 a 1994, ou seja, 24 anos, ela cresceu de R$ 2 bilhões para R$ 25 bilhões. Isso são valores que podem ser comparados diretamente porque eles foram deflacionados. Nós pegamos lá em 1998 em torno de R$ 9,5 bilhões, pagamos R$ 25 bilhões e ainda devemos R$ 57 bilhões. Mas, tecnicamente, o correto é você pegar esses valores, e deflacionar, corrigir pela inflação. Então, esses valores corrigidos pela inflação: 1970, R$ 2 bilhões, 1994, R$ 25 bilhões, de 1994 a 1998, R$ 55 bilhões. Ou seja, passados 4 anos do Plano Real, a dívida saltou de R$ 25 bilhões para R$ 55 bilhões. Foram R$ 30 bilhões em apenas 4 anos. E depois, de lá pra cá, de 1998 até 2015, a dívida do estado fechou, em 2015, em R$ 61,8 bilhões.
Porque pegamos 1998? Porque foi o ano em que o estado fez o contrato com a União. A partir de uma lei federal que autoriza essa iniciativa. A lei 9897/1997 autorizou que a União assumisse as dívidas dos estados com o mercado. Porque a dívida do estado era essencialmente com o mercado, e o estado passaria a pagar a partir de um único contrato com a União. Então aquelas dívidas que o estado tinha com o mercado, contratuais e tal, fechou tudo em um único contrato em 1998. Com isso, a União assume essa dívida com o mercado e o estado passa a pagar para a União. Na época se dizia que as dívidas cresceram bastante, em torno de R$ 30 bi. Não é pouco. Em quatro anos isso é muita dívida. E era preciso então segurar esse crescimento. Uma forma que se achou para segurar esse crescimento foi fazer esse contrato. Qual foi a grande responsabilidade dos estados nessa disparada da dívida? Nenhuma, praticamente. Ela decorre essencialmente da política econômica da União de elevadas taxas de juros. Então, na média, entre 1994 e 1998, a taxa Selic, que é a taxa referencial do mercado, foi em torno de 22% reais ao ano. Se costuma dizer que a dívida dos estados estava absurdamente alta porque os estados são perdulários, gastam demais, não sabem gerir sua finanças, etc, etc., quando na verdade não é nada disso. O que aconteceu foi que a política econômica adotada para controlar a inflação a partir do Plano Real, que foi a alteração monetária, tinha imbutido uma elevadíssima taxa de juros, e na época a flutuação cambial. Então, o que se pretendia, o que dizia a teoria econômica da época: é preciso conter a inflação. Que é principalmente uma inflação de demanda. Então, para fazer isso, você vai usar também como um mecanismo, da taxa de juros. E se fez também, na União, uma forte contenção de despesas, isso é verdade.
JS – Que foi a época das reformas, também.
Josué Martins - Das reformas do Fernando Henrique Cardoso. Então, a gente vive hoje uma situação que é decorrente daquelas iniciativas da política econômica. E a gente chega a 2014, que foi o momento da edição da lei complementar 148, que é a primeira lei da renegociação, numa linha de continuidade dessa política. Porque, o que que a lei, aquela primeira lei lá de 1997, a 9496, pretendia? Ela funcionou para os estados mais ou menos como funcionou o FMI em relação à dívida externa pro Brasil, na década de 1980. Com a crise da dívida externa, que o FMI veio socorrer, entre aspas, as nações endividadas, mas impôs uma série de condicionantes para acessar os recursos. A União fez a mesma coisa, entende? E essa lei 9496 tem determinantes no sentido de você privatizar o patrimônio do estado, impor uma contenção brutal aos servidores públicos em termos de direitos e limitar os investimentos públicos. Ela põe um teto no investimento público, põe um teto no endividamento público também, e estabelece metas de aumento da arrecadação. Aí você percebe o seguinte, se não é pra aumentar o número de funcionários públicos – você vai conter, tem meta de contenção ali. Se não é pra melhorar a capacidade das empresas públicas e do estado de prestar serviços. Porque você está diminuindo, você incentiva a privatização. Se não é pra investir, porque você põe um teto no investimento, você não permite que o estado invista a partir de determinado valor acordado com a União. O aumento da arrecadação vai servir essencialmente para quê? Para pagar a dívida, certo? Então se organizou toda uma, vamos chamar assim, uma arquitetura financeira e de gestão do estado, lá em 1998. No sentido de fazer com que parte importante do orçamento do estado fosse carreado pro sistema financeiro.
JS – A história se repete…
Josué Martins - Sim, lá em 1998. Aí, o que acontece? Nós firmamos o contrato em 1998. Em 1999 o Tribunal fez uma auditoria. Os meus colegas, no relatório da auditoria, disseram o seguinte: esse contrato foi lesivo ao estado. Ele fere a autonomia financeira e administrativa do estado. E ele significa um aumento do gasto público em dívida pública, não uma diminuição. Com o passar dos anos essa questão, essas duas questões, se confirmam. Porque esses compromissos assumidos em termos de metas, tipo cartas de intenção do FMI, que aqui na lei se chama de Planos de Ajuste Fiscal, PAFS, se traduziram como ingerência da União sobre a gestão financeira do estado. Essa gestão vem sendo compartilhada com a União desde lá. E outro dado importante também é que ao longo do tempo, dentro dessa chamada arquitetura financeira da questão do endividamento, você tem a dívida que está dentro desse contrato da União, e dependendo da receita do estado ele poderia acessar outros empréstimos. De 98 pra cá, foram muito poucos empréstimos acessados. Teve um empréstimo externo na época da Yeda Crusius, e teve algumas linhas de crédito na época do Tarso Genro. Mas coisa mínima se comparado com o estoque da dívida. Com o passar do tempo, o que aconteceu? O contrato dizia que na dívida com a União a gente tinha, na prestação mensal, um teto de 13% da nossa receita. Ou seja, se a prestação ultrapassasse 13% da receita, a gente pagaria até esse limite, e o que sobrasse ia para uma conta resíduo. Não é que tava perdoado, ia para uma conta resíduo. E sobre essa conta resíduo também iria incidir os mesmos juros e correções monetárias definidas no contrato. Há pouco tempo que a nossa receita conseguiu crescer a ponto de a gente pagar toda a prestação, porque os 13% da nossa receita não chegavam na prestação definida no contrato. Era uma forma de dar uma segurança de, olha, não vai ter um comprometimento maior. Só que mesmo esses 13% já era maior do que a média do que a gente vinha pagando no período anterior. Entre 1991 e 1997, 6 anos antes de a gente fazer o contrato. A média anual do comprometimento do nosso orçamento com a dívida era de 8%. Com o passar dos anos, de 1998 a 2015, isso dobrou. Foi 16%. Então, aquilo que meus colegas disseram lá atrás, em 1999, se confirmou. O contrato é lesivo ao estado, ele não é bom para o estado.
JS – O que foi feito com essa auditoria? Nada?
Josué Martins - Ela foi julgada, aqui pelo Tribunal. E essas questões foram desconsideradas pelos julgadores. Ou, vamos dizer assim, não consideradas relevantes. Os julgadores da época não tomaram nenhuma providência no sentido de dar uma consequência a esse aponte do relatório. Com o passar dos anos a dívida vem crescendo, de 1998 pra cá. E ela vem comprimindo, então, cada vez mais o orçamento, e dificultando a prestação de serviço adequado do estado à sociedade. Em 2012 a gente fez parte de um movimento chamado “Vamos passar a limpo essa conta”. E esse movimento vinha exatamente discutir essa arquitetura do contrato e as ilegalidades nele contidas.
JS – Os auditores?
Josué Martins - Os auditores, e uma série de outras entidades de servidores. Tanto de servidores como da sociedade civil. Centrais sindicais, CTB, CUT, OAB, Ajuris, o CEAP. Foi um movimento da sociedade. Ali, o que a gente mostrava? Que havia uma irregularidade fundamental no contrato. Primeiro, não cabe numa relação entre a União e os estados, que tem que ser uma relação de parceria, de solidariedade, de colaboração, um ente lucrar sobre o outro, certo? E quando você aplica juros sobre um valor, você está tendo um ganho sobre o valor emprestado. O juro é na verdade um ganho sobre o valor emprestado. Na prática não houve dinheiro novo nesse contrato com a União. Ela assumiu uma dívida que era nossa e nós seguimos pagando pra ela. Ela não nos deu dinheiro nenhum. Então não foi um aporte de recurso para o estado investir produtivamente, fazer a economia girar etc. Não, nada disso. E ainda tinha a necessidade das privatizações. O Banrisul, que é o exemplo mais claro do que seria a consequência negativa para o estado à aplicação dessa política, é um banco lucrativo. Ele aporta recursos do estado. No ano passado o aporte de recursos, além do lucro de suas operações, teve a compra da folha de pagamento do estado, que permitiu inclusive quitar o 13º. Quero dizer, do ano passado, não, do ano de 2015. De 2016, tá parcelado o 13º. Parcelado, não, atrasado, né. Parcelamento é um eufemismo aí nessa história. Porque, não pagou em dia, atrasou. É disso que se trata. O estado atrasa salário e atrasa o 13º, não é parcelamento. Então, a política que visa inclusive privatizar o patrimônio público, ela acaba tirando do setor público fontes de renda pra pagar a própria dívida. E para se sustentar, inclusive, financeiramente. A atuação do setor público na área econômica, ela também aporta recursos para o estado. Não só para as empresas estatais e tal, mas também para o estado. Então, tirando a fonte de renda, ela inclusive dificulta a capacidade do estado de honrar essas dívidas.
JS – Mas o que essa dívida tem de irregular na sua visão?
Josué Martins - Ela tem essencialmente um ganho da União sobre os estados a partir da cobrança de juros. E isso permanece na renegociação. Então o que a gente diz? Não cabe a cobrança de juros nesse contrato. Corrigir o valor emprestado, ok. Cobrar juros, não. E o juro no contrato lá, em 1998, era de 6% no ano. Que por uma minúcia contratual se aplica juro composto, não juro simples, e vai a 6,17%, na realidade. O juro real é de 6,17%. A outra questão criticada é, bom, é aplicado ali um índice de correção que é o IGP-DI, calculado pela Fundação Getúlio Vargas, que não é o índice oficial de inflação. O índice oficial de inflação é o IPCA. Então a gente sempre defendeu que se aplicasse o IPCA. De 1998, de 1999, porque nosso contrato é de fim de 98. De 1999 a 2015, pra que se tenha uma ideia, o IGP-DI cresceu 315%. De janeiro de 1999 a dezembro de 2015. E o IPCA cresceu 208%. Então tem uma diferença aí. Mas o maior impacto é dos juros, que nesse período correspondeu a 839%. Então veja que a maior parcela aí são os juros. E numa relação de parceria, de solidariedade, de colaboração, tudo isso que tava por trás dessa lei de 1997. Então a gente percebe, na verdade, é que a União se utilizou de uma política econômica para controlar a inflação pelo chamado Plano Real, que agravou a situação financeira dos estados, e colocou os estados de joelhos frente à União para renegociar a dívida. Nada diferente do que está acontecendo agora. A União adota desde 2015 uma política econômica altamente recessiva, e isso derruba as receitas públicas. Quando a economia sofre um baque de 3,8% de crescimento negativo, ou de decréscimo do PIB de 3,8% em 2015 e outros 3,6% em 2016. É natural que a receita pública caia, e é difícil você comprimir a despesa. Então, com isso, a alegação é de novo de que os estados são perdulários, gastam demais, etc. A crise das finanças dos estados é real, tem muita coisa que dá para resolver ainda nos estados e tal. Mas a grande saída pra questão da crise do estado, não passa apenas pelo estado. Precisa ser revisto o pacto federativo, a lei Kandir, essas renegociações da dívida não são suficientes pra resolver o problema. E detalhe: feito o cálculo daquilo que a gente contratou lá em 1998, corrigido apenas pelo IPCA, que é o índice oficial de inflação, tirando o juro e comparando com o que já pagamos, a nossa dívida foi quitada em maio de 2013. Então o que a gente pagou até maio de 2013 supre aquilo que foi contratado lá em 1998, corrigido pela inflação oficial do governo. E tudo que estamos fazendo hoje, ao acessarmos essas linhas de renegociação, é consolidar um saldo devedor, que pelas declarações do governo em relação a esse contrato com a União, fechou 2016 na ordem de R$ 57,5 bilhões. Nenhum governo está tendo a hombridade de enfrentar essa questão. Dessa maneira, o Sartori está de acordo com a política de venda do estado, de desmonte do estado. Aliás, ele propôs isso antes. Ele mal entrou no governo e já veio propondo isso. Ele tem se aproveitado do momento de crise e feito um terrorismo financeiro com a sociedade gaúcha. Ele começou isso em 2015. O Golpista, quando assume, faz o mesmo. Então é a escola deles, nesse sentido. A gente pode falar um pouco agora das leis de renegociação, se tu quer. Porque o histórico eu acho que fechou bem. Há uma linha de continuidade, isso é importante dizer aí. Entre aquilo que foi feito lá em 1998 e o que está sendo proposto agora.
O primeiro momento da renegociação foi a lei 148, que foi aprovada lá em 2014. O nosso movimento de 2012, aquele “Vamos Passar a Limpo Essa Conta”, teve um papel importante nesse processo. Porque ele ajudou a construir um caldo na sociedade para pressionar o governo federal a mandar o projeto de lei para o Congresso. Quando a gente começou o movimento, se dizia: “vocês são loucos, não pode mexer em contratos, ali é um negócio jurídico perfeito, não se mexe.” Nós dizíamos: “não, esse contrato está em desequilíbrio econômico financeiro, precisa ser revisto”. Qualquer contrato na administração pública tem cláusula de equilíbrio econômico financeiro. Esse não tem, é preciso fazer. E a gente provava a partir de dados, inclusive da Secretaria do Tesouro Nacional, que é parte do Ministério da Fazenda, que gerencia as finanças da União. A Secretaria do Tesouro Nacional mostrou em seus relatórios anuais quanto ela arrecadava dos estados. Ou seja, aquilo que a gente paga da dívida desses contratos e quanto ela gastava com aquilo que ela assumiu de dívida com o mercado lá atrás. O último dado que a gente tem, porque eles pararam de publicar, é de 2014. Tá lá no site do TCU. A Secretaria do Tesouro Nacional apresenta um relatório pro TCU. Nesse relatório ela declara que arrecadou dos estados R$ 30,9 bilhões e gastou R$ 25,3 milhões.
JS: Milhões?!
Josué Martins: Milhões! Quando eu falo isso as pessoas tem essa mesma reação. “Milhões?!”. E arrecadou bilhões. Isso mesmo. Pelos meus cálculos aqui são 121.9% de ganho. Não é 121%, não. 121.9 % de ganho. Quando a gente diz que não cabe à União lucrar sobre os estados, é disso que a gente tá falando. Como é que eles fizeram essa lógica aqui, eu não sei. Já pedimos explicação, não recebemos. E eles inclusive pararam de divulgar o dado. Produzimos uma cartilha que mostra qual é a relação da nossa dívida com a dívida da União. Porque pelo contrato de 1998, tudo que ela arrecada dos estados, esses R$ 30 bi que arrecadou em 1994, ela tem que gastar com a sua própria dívida. Porque a União tem a sua dívida, que em 2015 ela gastou com a dívida dela quase R$ 1 trilhão de um orçamento de R$ 2,2 trilhões.
JS: Trilhões…
Josué Martins: Trilhões. Isso, trilhões. Exatamente. Quase um trilhão, ela gastou. São R$ 900 bilhões.
JS: Quase metade.
Josué Martins: Quase metade. Para 2017 a previsão é de que ela já passe da metade, ou seja, mais de 50%. Depois a gente pode entrar nisso, como é que chegou lá. A grande discussão que se fazia é, ah, vocês até podem ter razão nisso, mas se a gente fizer isso que vocês estão pedindo, eliminar as dívidas dos estados com a União, a União vai quebrar. Isso não é verdade, porque esses R$ 30 bi que ela arrecada dos estados, tem dado em torno de 2,5%, 2,7% da receita da União, que é de R$ 2,2 trilhões, entendeu? Então não é verdade, ninguém quebra com 2,5% de orçamento a menos. É disso que se trata. Porque a União faz questão de manter isso dessa maneira. É claro, R$ 30 bi não é pouco dinheiro. Para os estados é muito dinheiro, para a União não é muito. O que importa para eles é manter o controle sobre a nossa gestão financeira a partir dos PAFS, daquelas metas, tipo cartas de intenção. Muito mais isso, porque ela mantém a nossa política econômica alinhada à política deles, e faz um grande controle sobre as finanças dos estados e pra onde vai a Nação.
JS: Então mais do que uma questão econômica, é uma questão política?
Josué Martins: Claro. Os caras usam sempre a questão econômica como sustentação, mas o que eles não podem dizer é que eles estão contrariando a Constituição Federal na parte que define que os estados, que os entes federados são autônomos, administrativa e financeiramente. Entende? Porque a Constituição Federal determina quais são os tributos dos estados, quais são os da União, quais são os dos municípios, em que setor cada um vai atuar preferencialmente. Tipo, União na educação superior, os estados na educação secundária e os municípios na educação primária, etc. A saúde em colaboração, enfim. Na própria Constituição define o que cada ente federado vai fazer, qual é a responsabilidade de cada um na configuração do Estado Nacional. E define que receitas cada ente vai ter para isso. Esse contrato da dívida permite que a União faça a gestão financeira dos estados em colaboração. Como esse projeto que foi aprovado no Senado no dia 17 de maio, que trata do ajuste fiscal dos estados superendividados. O texto foi votado após acordo entre os líderes da Casa que resultou na aprovação de urgência para a matéria e, logo em seguida, a quebra das duas sessões de interstício que seriam necessárias antes da votação. Os senadores aprovaram o projeto sem alterações em relação ao texto enviado pelos deputados. Agora o texto aguarda sanção do presidente da República.
Então vamos voltar lá para 2014. Quando aprovou a lei 148 dizia lá, a partir daqui se adota o IPCA. Então eles admitem que o IGP-DI não é o índice oficial de inflação. E vamos baixar os juros de 6% para 4%. Tem estados que é 7,5% de juros. Tem municípios grandes, São Paulo, por exemplo, que é 9% de juro ao ano. O RS ainda tem juros mais baixos. Porque lá em 1998, quando fizemos o contrato, a gente aportou mais recursos no início com a função das privatizações. Os que não fizeram isso, ou que fizeram em menor monta, acabaram tendo um juro maior. Então, há inclusive uma disparidade aí, entre os entes federados, em relação ao contrato. E o juro passa a ser uma penalidade até por não obedecer à União. Não tem nada de economia aí, tem força política mesmo atuando para definir qual é o rumo que vai se dar para as finanças dos estados. Então, em 2014 se admite essa alteração, passando a ser IPCA mais 4%, ou a taxa Selic, o que for menor. Isso passa a ser o critério de cálculo das prestações mensais. Então mudou de IGP-DI mais 6%, para IPCA mais 4%, ou Selic, o que for menor. Mas teve uma novidade lá que o Congresso acrescentou, que admitiu o cálculo retroativo ao início do contrato. Que a gente sempre disse que precisava fazer, porque o desequilíbrio era lá no nascedouro, não era a partir de 2014. E ele diz, olha, eu admito que há um desequilíbrio, que pode ser revisto, mas pela Selic, não o IPCA mais 4%. Desde o início, pela Selic. A Selic era a penalidade do contrato original para quem não pagasse o IGP-DI mais 6%, porque em geral ela era maior, vinha sendo maior. Então, quem não pagasse as prestações, além do governo confiscar na conta, como confiscou em 2015 porque o estado não pagava, o governo federal ainda podia aplicar a Selic como cálculo do contrato. E aí a discussão era, no ano passado, como aplicar a lei 148. Como usar a Selic, se a Selic simples ou a Selic composta. A Selic simples dava um resultado no cálculo, em que a nossa dívida estava praticamente paga também. E aplicar a Selic composta significava você ter um saldo devedor maior do que o saldo atual. Então a interpretação é, a Selic a ser aplicada não é para prejudicar os estados, seria para beneficiar. E para beneficiar teria que ser a simples, não a composta. Além do que, o governo corrige a dívida dos seus devedores da anistia privada pela Selic simples, não pela composta. Como que ia cobrar dos estados a composta? Aí foi pro Supremo. Obtivemos os mandados de segurança, as liminares dos mandados para parar de pagar. Só que o Supremo lavou as mãos, não decidiu. Disse, olha, vocês façam um acordo com a União. Esse acordo resultou na aprovação no fim do ano passado da lei complementar 156, na calada da noite. No dia 28 de dezembro de 2016. E ali tinha um plano de recuperação fiscal dos estados mais endividados, é isso que foi aprovado no Congresso Nacional. No plano de recuperação fiscal do ano passado, o Congresso mexeu muito. Aí o presidente resolveu vetar e apresentar um novo projeto, que é o que foi aprovado. A lei 156 diz, olha, tem que aplicar. Porque a discussão era também, quando que aplica a lei 148? Quando a Dilma assume em 2015 ela diz que não dá pra publicar essa lei, porque nós estamos numa crise danada e a União não poderia abrir mão de recursos, etc. E a lei é autorizativa, não é obrigatória. Aí veio o Cunha com as chamadas pautas bombas dele e aprovou uma outra lei dizendo, aplica-se essa 148 a partir de tal data. E isso entrou na discussão no mandado de segurança. E o Supremo disse, não, renegociem isso aí. Esqueçam essa data de aplicação. Entrem em acordo com a União, inclusive quanto a algum alívio financeiro com os estados mais endividados. Nisso resultou a lei 156, que manda aplicar. Então desde julho do ano passado nós estamos tendo a correção do contrato pelo IPCA mais 4%, com uma pedalada no pagamento. Ou seja, de julho até dezembro desse ano a gente não pagou nada da dívida.
JS: De julho a dezembro de 2016 não se pagou nada?
Josué Martins: Não se pagou nada da dívida com a União. Quer dizer, aspas: não se pagou o que era devido no período de julho a dezembro de 2016. Aquilo que a gente deixou de pagar no período curto ali, por conta dos mandados de segurança que suspenderam o pagamento, isso foi projeto de renegociação e vem sendo pago, mais alongado e tal, mas está sendo pago o período anterior.
JS: Não se pagou as prestações que deveriam ter sido pagas nesse período.
Josué Martins: Exato. Elas foram acrescidas ao saldo devedor, isso não é um perdão. Está lá, foi somado no saldo devedor. A partir desse ano, até junho de 2018 a gente começa a pagar de forma escalonada a prestação, de maneira que implemente em julho 100% da prestação. Até junho você vai pagando. Tipo, em janeiro, agora, pagamos 5% da prestação calculada. Em fevereiro vai ser 10%, depois mais 5, mais 5, somando isso aí até chegar aos 100%. Então 5% sendo acrescido por mês até chegar aos 100%. Então julho de 2018 a gente vai estar pagando de novo 100% da prestação pela lei 156. O que não está sendo pago nesse período não é perdão, vai para o saldo devedor. O que está foi aprovado no Congresso é uma outra pedalada dos estados mais endividados. Significa o seguinte, você não vai pagar a dívida por 3 anos, se acessar esse programa de recuperação fiscal dos estados. Não pagar por 3 anos, significa aumentar o saldo devedor. Esse de R$ 57,5 bilhões do fim do ano passado em mais ou menos R$ 16 bilhões. Considerando aí uma taxa de inflação de 4,5%, mais o juro de 4% ao ano. Então, tu veja que além de consolidar esse saldo que já estaria pago desde maio de 2013, se a gente estivesse aplicando critérios justos nesse contrato, você ainda está aumentando.
JS: Ou seja, essa dívida não é pra ser paga nunca…
Josué Martins: Não. Porque se ela for paga, o governo federal perde o controle sobre a gestão financeira dos estados. Essa que é a questão, percebe? Tanto que no programa chamado de programa de recuperação fiscal dos estados, que é isso que está no PLP 343 de 2017, estão colocados outros condicionantes para a gestão dos estados. Primeiro deles, privatizar o setor financeiro, energético e de saneamento. E isso aí é “e” mesmo. O secretário da Fazenda vinha dizendo que era “ou”. Não, é “e”. Então, tá aí Banrisul, tá aí o setor energético do estado, CEEE, CRM, Sulgás. No saneamento tá aí a Corsan, e o que tu imaginar. E o atual governo do estado estava brigando para colocar uma emenda nesse artigo dizendo “e outros ativos”. Isso e outros ativos, porque ele quer botar em especial os imóveis das fundações que foram autorizadas à desativação.
JS: Que são patrimônios valiosíssimos…
Josué Martins: Sim. Quer dizer, na verdade ele tá fazendo algo criminoso, né? Ele tá abrindo mão do patrimônio da sociedade gaúcha para dar sustentação para um contrato que só tem feito agravar a nossa situação financeira. Aquele argumento de 1998 que dizia que era pra nos ajudar é mentiroso. É Mentiroso! A gente olha o contrato, abre esse contrato, e o que a gente vê é mais restrição financeira para o estado, não menos.
JS: Ou seja, é o fim do serviço público, praticamente. Porque também tem contingenciamento nos orçamentos de saúde, educação e segurança.
Josué Martins: Sim, é um desmonte total da capacidade do Estado de prestar um serviço adequado à população gaúcha, e um comprometimento enorme pro futuro em função disso. É disso que se trata. Então, tem esse primeiro condicionante aí, das privatizações. Eu contei, no projeto original eram 22 condicionantes. Havia um outro condicionante, de obrigar os entes federados que acessassem esse contrato, essa renegociação, a retirar as ações judiciais que tramitam no Supremo, que discutem a dívida. No caso do governo gaúcho tem duas ações tramitando no Supremo, uma de 2015 e outra de 2016. A de 2016 foi essa que eu mencionei, que discutia a aplicação da taxa Selic. A do ano de 2015, ela vinha exatamente nessa direção que eu coloquei de, é preciso retirar os juros do contrato. Parece incrível que um governo que tenha essa visão privatista do Estado tenha feito isso. Mas fez espremido pela conjuntura de 2015. Bastante crítica em relação às finanças e tinha que fazer alguma coisa. O núcleo gaúcho da Auditoria da Dívida esteve junto com a Procuradoria Geral do Estado, dr. Euzébio Ruschel, atual procurador geral. Aportamos memoriais com esses argumentos que eu estou colocando para você, que ele considerou na ação, que botou a ação nesse foco, de olha, preciso tirar o juro daí. A essência era isso, que a União não poderia ter um ganho sobre os estados. E ele botou isso lá. E agora, acessando esse projeto, nós vamos ter que retirar essas ações. Vamos ter que desistir delas no Supremo. Então, se tinha uma via de disputa judicial que podia ajudar, passa a não ter mais. Não penso que essa é a melhor via pra fazer a disputa. Acho que a disputa é essencialmente política mesmo. Mas você ter uma ação judicial tramitando na linha adequada de entendimento ajuda a fazer a disputa política. Então é mais um abrir mão da autonomia administrativa do estado. Ou seja, aquilo que é iniciativa de um estado da nação, nos marcos da Constituição Federal, deixa de poder ser um recurso a ser acessado pelo governante por conta de um contrato. Então é inconstitucional esse contrato. Essa cláusula em especial é inconstitucional. E ela já tá lá, na lei 156 do fim do ano passado, que o governo já acessou, porque está fazendo o pagamento das prestações daquela forma, 5% em janeiro, 10% em fevereiro, 15% em março, e assim vai. Esses são os dois condicionantes iniciais, dos 22. Tem mais 10 condicionantes que são restrições ao funcionalismo público. Então você perde direitos adquiridos, buscando essencialmente achatar as despesas do estado com o funcionalismo. Dificulta a contratação de pessoal novo, dificulta o ganho salarial, e assim vai. Ao mesmo tempo ele prevê a possibilidade de acessar algumas linhas de financiamento. Uma delas, o PDV, Programa de Demissão Voluntária, outra, pra acessar recursos pra assessorar as privatizações, consultorias, etc.
JS: Que custam milhões…
Josué Martins: Sim. E também tem uma linha de financiamento ali que permite antecipar recurso de privatização. Por exemplo, você prevê que a CEEE será privatizada por R$ 2 bilhões, faz lá uns cálculos e tal. O governo federal vai conferir, vai aceitar ou não isso, e vai permitir que você tenha um dinheiro novo. Tudo dando sustentação a essa política de agressão ao estado e à capacidade dele de prestar um serviço adequado à população.
JS: Política do Estado mínimo, né? Quem rege é o mercado, enfim.
Josué Martins: E um detalhe bastante agravante nesse projeto de recuperação fiscal é que ele, além de você firmar as metas, aquelas dos planos de ajuste fiscal, semelhantes às cartas de intenções do FMI, você passa a ter aqui, no estado, numa sala na Secretaria da Fazenda, uma comissão designada pela União, para acompanhar diariamente o cumprimento dos compromissos estabelecidos. Então a ingerência chegou ao ponto da União botar um preposto na Secretaria da Fazenda do Estado acompanhando passo a passo a execução dos compromissos estabelecidos. Então, quer dizer, os caras perderam o pudor total em relação aos mandamentos constitucionais. E o governo do estado, subservientemente, não vê problema nisso. Inclusive com declarações à imprensa, nesses termos e tal.
JS: O mais incrível, Josué, é a apatia, não sei se é apatia a palavra, mas, como que a população aceita isso. Claro que aí a gente vê toda uma construção midiática de muitos anos de desconstrução do serviço público, um serviço público, também, que foi sendo sucateado e foi oferecendo cada vez menos um bom serviço à população. Mas como que aceitamos que tudo isso esteja acontecendo?
Josué Martins: É, eu acho que tem algumas coisas aí. O conjunto da obra é isso que tu falou. E infelizmente a gente tem no serviço público algumas distorções que precisam ser atacadas. Além dessas questões, têm coisas no contrato que a gente assumiu lá em 1998 com a União que precisavam ser auditadas, e não foram. Ou seja, quando chegou em 1998 o que se fez? Se pegou todo o montante da dívida, consolidou um valor, se chegou num valor de R$ 9,5 bi mais ou menos, em valores históricos da época. E esse valor de R4 9,5 bi passou a ser base pro cálculo das prestações e das correções. A questão é, esses R$ 9,5 bi precisavam ser auditados, e não foram. Dentro disso tem algo em torno de R$ 2 bi que foi o saneamento do Banrisul. Muito desses R$ 2 bi, aí eu confesso que não fiz o estudo aprofundado pra dizer a origem total do valor, mas a parte essencial dele decorre da carteira podre do Banrisul. O Banrisul concedeu empréstimos que não foram recuperados e não seriam. Quem deu aval a isso? É preciso ver. É justo que a sociedade gaúcha pague por isso? Ou o gestor que deu aval a isso tem que ser responsabilizado. Então, a gente tem defendido também, que além da revisão do contrato é preciso fazer uma auditoria lá na origem do valor para ver a composição do montante. Como é que se chegou a esse valor? E, sendo o caso, inclusive responsabilizar os gestores da época por malversação do patrimônio público.
JS: Isso foi em que ano?
Josué Martins: Isso foi em 1998. Então teria que voltar lá atrás. Por isso a discussão de que é preciso fazer uma auditoria da dívida do estado para apurar isso aí. E não só do estado, como da União, que lá em 2015 também se pagou quase R$ 1 trilhão pela dívida, o que dá quase 50% do orçamento da União. Com justificativa de pagar a dívida da União se aprovou no ano passado a PEC do Teto dos Gastos, que é uma PEC que coloca teto para as despesas primárias. Ou seja, aquelas que vão atender aos interesses essenciais da população, e que tem relação também com o investimento público que é a variável do Orçamento do Estado, que ajuda a economia a ter uma dinâmica de desenvolvimento e de crescimento. E, no entanto, não coloca teto nenhum para os gastos financeiros. Ou seja, os gastos com a dívida. Então você tem o setor rentista da sociedade sendo favorecido de forma bastante clara, e todo o restante penalizado, quando você olha pra onde tá indo o dinheiro público. Isso foi aprovado por um Congresso, que a gente tá vendo aí pelas delações que estão vindo ao público, em grande parte financiado pelos interesses do capital financeiro. Financiado pelos bancos, fundos de pensão, etc. etc. Está havendo um Congresso que está manietado por conta dos compromissos que assumiu lá na campanha, e que tem feito uma série de reformas, complementares à reforma do teto, que é a reforma da Previdência, reforma trabalhista, questão da terceirização. Então é um conjunto da obra sendo articulado para imprimir para as classes trabalhadoras e para sociedade brasileira em geral uma compressão significativa dos seus níveis de renda. E garantir para as classes rentistas, não trabalhadoras, a manutenção dos seus privilégios. Isso é o que tem acontecido.
JS: Ou seja estão redistribuindo a renda que tinha sido distribuída de alguma forma, em algum nível.
Josué Martins: É, teve um certo grau de redistribuição de renda no período do governo Lula e Dilma, mas que já no segundo mandato do governo Dilma vinha diminuindo. E que agora, de uma forma bastante grave, em pouco tempo todo aquele ganho vai ser perdido, se é que já não foi. Porque a crise tem esse efeito, de levar perdas importantes para setores da sociedade. Você vai ver, o lucro do setor financeiro em 2015 foi assustador. Foi alto, enquanto a economia em geral caiu 3,8%. Então a crise ela não é igual para todos.
JS: Tem quem ganhe com a crise?
Josué Martins: Tem quem ganhe. E o setor rentício está ganhando muito, e vai ganhar mais ainda. Porque além de ele estar ganhando ali atrás, ele está articulando uma nova conformação, digamos assim, da Nação em termos de leis e de funcionamento, e que vai determinar o funcionamento que vai garantir um benefício direto pra esses setores. Eu acho que rapidamente a gente vai ver o país convulsionado. Porque o nível de desemprego segue alto. A gente vê que tá patinando com alguns soprinhos de, ah, agora parece que a economia cresceu um pouquinho, mas não vai absorver aquilo que suspendeu ali atrás. Nesse ritmo os conflitos sociais tendem a aumentar, a violência tende a aumentar. Pra onde vamos? Vai depender da capacidade dos setores mais organizados de poder dar uma direção mais adequada para o movimento. Convencer de que o essencial do enfrentamento a ser feito é em cima do rentismo, convencer de que é preciso recuperar o controle sobre a riqueza da Nação.
Tem um manifesto que foi lançado no fim de março por um grupo encabeçado por Bresser Pereira, acho que é Reconstrução da Nação o nome do manifesto. É isso, a essência da coisa. Como é que a gente recupera o controle sobre as riquezas geradas aqui, a partir de toda a abertura econômica que o Fernando Henrique promoveu. Porque tem isso também, né. A gente perdeu o capital nacional, perdeu espaço substancialmente para o capital estrangeiro. O capital produtivo perdeu espaço substancialmente para o capital financeiro. A economia no geral passa a gerar menos valor no setor industrial. Toda a Nação desenvolvida do mundo chegou no ponto em que chegou baseado em três grandes linhas, três grandes compromissos. Do capital nacional, dos trabalhadores da iniciativa privada e dos trabalhadores do setor público. Ou seja, você construiu um setor produtivo nacional forte, você garantiu renda e emprego para os trabalhadores da iniciativa privada, portanto, um mercado interno importante e você tinha um Estado com capacidade de gerenciamento razoável sobre as suas tarefas a serem cumpridas em relação à Nação. Quando você destrói isso, desemprega em massa, você diminui a participação do capital nacional no bolo da economia nacional e você agride fortemente o setor público, o Estado, você perde capacidade substancial de ter uma Nação com uma coesão social e de criar uma via de desenvolvimento que a leve para uma posição melhor na economia mundial. E isso falando do ponto de vista capitalista, não estou nem falando de revolução. E ao mesmo tempo você perde controle sobre riqueza gerada aqui. Então você vê sendo carregado para fora um volume enorme de riquezas.
Então, a tarefa que se tem não é pequena, mas é preciso convencer inclusive a esquerda desse país. A esquerda, entre aspas, que esteve no poder até pouco tempo atrás, de que não dá para capitular diante dos interesses do capital financeiro e do capital internacional. Porque, como disse o Lula, nunca os bancos ganharam tanto nesse país como no governo dele, e é verdade. E ele não segurou o processo de privatização que vinha do Fernando Henrique. Seguiu nesse processo. Verdade que em menor velocidade, mas seguiu. Tanto que hoje a gente vê aí revelações da Lava-jato de compromissos dele lá atrás. De não segurar a Petrobrás em relação à questão de avançar sobre o setor petroquímico por interesse da Braskem, da Odebrecht. Então você não recompõe um mínimo de sociabilidade se não tiver isso em mente. E a questão é, quem vai fazer isso?
JS: A grande questão, me parece, é que projeto queremos construir e em que bases?
Josué Martins: A questão é que, do ponto de vista capitalista, você não tem saída para a sociedade. O que estamos vendo, neste momento dito de financeirização da economia, é um acúmulo enorme de valor na esfera financeira. O último dado que eu tenho acho que é de 2013, por aí, 2014, de que circula no mercado mundial em torno de 710 trilhões de dólares em derivativos, e temos um PIB de 71 trilhões de dólares. São dez vezes o PIB mundial circulando por aí em papéis que nunca vão se realizar. É uma riqueza fictícia, não é uma riqueza verdadeira. O PIB é verdadeiro. Os papéis eram pra ser uma representação do PIB, ou do PIB potencial, do PIB a se realizar ali na frente. Mas quanto tempo que vai levar pra esse PIB de 71 trilhões crescer dez vezes no ritmo que cresce a economia mundial, que tá bem lento? Então nós vamos ter outra crise financeira aí. Aquela de 2008, 2009 vai ser fichinha perto do que está por vir.
E isso é parte do que caracteriza um momento de financeirização da economia. Ou seja, você acumula na esfera financeira valores que não vão jamais se realizar na esfera real. A crise vem pra, digamos assim, aproximar essa coisa. Dentro de algo mais factível. O que esses setores que detém esses papéis estão fazendo? Criando mecanismos para que o orçamento público absolva esses papéis, fiquem com esse prejuízo, vão socializar o seu prejuízo. Foi assim na Grécia. Maria Lucia Fattorelli, que é a coordenadora nacional da Auditoria Cidadã, que fez a auditoria na Grécia, disse que isso foi um grande cassino que fizeram pra cima da Grécia. Essa história de que os gregos estavam vivendo acima de suas possibilidades é mentira, balela. O que aconteceu foi que os bancos privados gregos, que estavam embricados naquela crise de 2008, 2009, trataram de repassar para o orçamento público o seu prejuízo. A dívida pública aumentou estrondosamente. E aí depois os caras vieram dizer que a Grécia estava vivendo acima de suas possibilidades, estava gastando mais do que arrecadava. Aliás, quando alguém vier dizer que as finanças de um Estado, que o orçamento do Estado tem que ser que nem o orçamento de uma família, vocês botem um carimbo na testa do cara: “mentiroso”. Isso não funciona assim, isso não é verdade.
JS: Isso já comprova que temos uma imprensa mentirosa. Porque essa é a primeira comparação que eles fazem, né?
Josué Martins: Sim, mas eles se apoiam em teoria econômica. Tem teoria econômica que diz isso. É ideologia, isso. Isso não é ciência, entende? E é uma ideologia para atender aqui, de novo, a ideia da austeridade. É isso que acontece nesse momento da financeirização da economia mundial. Esses setores que detém a parte substancial da riqueza vão criando mecanismos pra tentar se manter nessa condição. E são mecanismos que não tem nada a ver com ampliar a produção de riqueza. E ao não ampliar a produção de riqueza, o que ele faz? Ele não emprega, ele não cria um desenvolvimento econômico. E aí ele não consegue ter uma coesão, mesmo dos setores menos favorecidos da sociedade, no sentido de ver, no que está acontecendo, uma esperança para o futuro. Ele olha para o futuro e não vê nada. Então isso é convulsão certa. E isso não é a primeira vez que acontece na história mundial. Tem estudiosos que mostram, que fazem um estudo da chamada longa duração, que vão estudar lá quando o capitalismo nasceu. E é isso, o capitalismo é uma sociedade datada. Tem um momento em que nasceu e vai acabar. Como outras formas da humanidade se organizar ruíram. Aí os caras pegam e mostram que na passagem do domínio de uma nação central para outra, nesse momento, a economia tem um funcionamento semelhante ao que nós temos agora, de financeirização, de acúmulo de riqueza essencialmente na esfera financeira. Foi assim na passagem da Holanda para a Inglaterra, foi assim da Inglaterra para os Estados Unidos, com a crise de 1930, e está sendo assim nesse momento em que se contesta também a hegemonia norte-americana. O que eles têm dito, e estou falando aqui do Immanuel Wallerstein, do Giovanni Arrighi, é que a gente pode estar enfrentando não apenas uma crise de hegemonia da nação central, mas uma crise sistêmica mais profunda, de final de um sistema. E aí é um momento de desestruturação muito grande, e essa desestruturação pode resultar em algo novo melhor, ou não. Isso vai depender das forças em disputa e da capacidade de a gente organizar essas forças em uma direção.
Fotos: Joana Berwanger/Sul21