Direitos fundamentais
Direitos sociais no Estado Democrático de Direito (parte 1)
Os assim chamados direitos sociais, econômicos e culturais (doravante referidos apenas como direitos sociais), pelo menos em se considerando o direito internacional dos direitos humanos e o número de Estados que ratificaram o correspondente Pacto Internacional da ONU (1966) na matéria, pertencem — de acordo com esse critério — ao que se poderia designar de um patrimônio jurídico comum da humanidade, pois mesmo no plano internacional o arcabouço de textos jurídicos, no sentido de um direito internacional positivo, que reconhece e protege direitos sociais, foi objeto de significativa ampliação, especialmente se formos agregar as convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e os diversos tratados em nível regional, como é o caso, em caráter ilustrativo, do Protocolo de São Salvador, que acrescentou os direitos sociais ao Sistema Interamericano, bem como, no plano europeu, a Carta Social Europeia, e, mais recentemente, a previsão de alguns direitos sociais na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000), dotada de caráter vinculante desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa (2009).
Mas por mais importante que seja a perspectiva supranacional, é na esfera do direito interno, com destaque para o direito constitucional, que melhor se pode aferir o quanto e em que medida os direitos sociais — ainda mais quando em causa a sua condição de direitos fundamentais — correspondem a uma gramática universal e comum à maioria dos países. O que se percebe, nesse contexto, é que seguem existindo diversos modelos, que vão da total ausência de direitos sociais a modelos que poderiam ser chamados de fortes – pelo menos de acordo com certo ponto de vista - em matéria do reconhecimento e proteção jurídico-constitucional de tais direitos.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a constitucionalização de normas de justiça social (mesmo na condição de normas definidoras de fins estatais) e de direitos sociais não logrou sucesso nem na esfera político-legislativa, nem por meio da jurisprudência da Suprema Corte, apesar de algumas importantes vozes e tentativas nesse sentido – recorde-se aqui a tentativa de Franklin D. Roosevelt (1944) de fazer aprovar uma segunda declaração de direitos, no caso, dedicada aos direitos sociais[1].
Assim, nesses países, eventual proteção social (saúde, direitos do trabalhador, educação, etc.) segue ocorrendo por meio da legislação ordinária e políticas públicas. Situação similar ocorre no caso da Inglaterra (Reino Unido), mas aqui é de se ressalvar que se trata de um caso peculiar, pois a constituição inglesa, como se sabe, é integrada de um conjunto de documentos de natureza constitucional (embora não elaborados por uma assembleia constituinte) e por um conjunto de costumes e precedentes judiciais, de tal sorte que não deixa de ser possível reconhecer, no que diz com os elementos nucleares do Estado de Bem-Estar britânico, uma dimensão constitucional em sentido material.
De todo modo, a inserção de normas nas constituições que disponham sobre tarefas a serem cumpridas pelo Estado em matéria de justiça social ou mesmo consagrando direitos sociais (na condição, ou não, de direitos fundamentais), parece constituir a regra geral, mas ainda assim, são significativas as diferenças registradas. Um modelo importante é o consagrado pela Lei Fundamental da Alemanha (1949), onde, além de alguns direitos econômicos (liberdade de profissão, greve e sindicalização) e da proteção da maternidade e da família (assim como o dever de assegurar uma igualdade material entre homens e mulheres e a integração das pessoas com deficiência), não foram contemplados direitos sociais, mas apenas houve previsão uma cláusula geral de justiça social, de acordo com a qual a Alemanha é um Estado Social e Democrático de Direito, que novamente reclama concretização legislativa.
Mas é preciso considerar que na Alemanha o princípio estruturante do Estado Social, além de estar incluído no elenco dos limites materiais ao poder de reforma constitucional (juntamente com a dignidade humana, o Estado de Direito, o princípio democrático e a Federação), vincula os poderes públicos na condição de norma definidora de fins e tarefas do Estado, direcionando a atuação legislativa e administrativa (ainda que com ampla margem de conformação e discrição), mas exigindo a satisfação pelo menos de um mínimo existencial para uma vida digna, ademais de operar como fundamento da restrição de direitos fundamentais e ensejar, embora de modo subsidiário e limitado, uma correção pela via jurisdicional.
Já em outros casos, como dá conta o exemplo da Espanha, se pode falar de um modelo híbrido, visto que alguns direitos sociais foram consagrados como direitos fundamentais (v.g., a liberdade sindical e o direito à educação), sendo que o constituinte igualmente previu uma cláusula geral enunciando o Estado Social na condição de princípio estruturante da ordem constitucional, além de contemplar, no título dos princípios da ordem social, uma série de normas definidoras de fins e tarefas estatais, que, todavia, não ostentam a condição de autênticos direitos fundamentais, sequer podendo ser exigidas como direitos subjetivos por meio do assim chamado recurso de amparo, que dá acesso ao Tribunal Constitucional, o que não significa que tais normas sejam completamente destituídas de normatividade, já que seguem sendo parâmetro do controle de constitucionalidade.
Por sua vez, mesmo no caso de países como a África do Sul, o Brasil, a Colômbia e Portugal, aqui citados considerando-se a sua relevância no atual cenário da discussão sobre o tema em nível internacional e (é o caso de Portugal) pela influência exercida no âmbito do próprio processo constituinte brasileiro, os direitos sociais foram positivados como sendo direitos fundamentais, mas ainda assim existem diferenças consideráveis a serem levadas em conta, especialmente quando se trata do regime-jurídico constitucional atribuído a tais direitos.
Assim, se no caso de Portugal os direitos sociais, econômicos e culturais e os direitos, liberdades e garantias (que correspondem, grosso modo, aos direitos civis e políticos e os direitos e liberdades dos trabalhadores) a Constituição da República Portuguesa (1976) limitou a aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais aos direitos, liberdades e garantias e direitos análogos, além de não incluir (ao menos não expressamente!) os direitos sociais no elenco dos limites materiais à revisão constitucional[2], no Brasil, a Constituição Federal de 1988 (CF) incluiu um elenco generoso de direitos sociais e direitos dos trabalhadores no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, além de um conjunto de princípios e regras versando sobre matéria econômica, social, ambiental e cultural nos títulos da ordem constitucional econômica e social, o que também ocorreu – em linhas gerais – no caso das Constituições da Colômbia (1991) e da África do Sul (1994), muito embora na última se tenha trilhado um caminho distinto do brasileiro e colombiano no que diz especialmente com o papel do Poder Judiciário na efetivação dos direitos sociais e na definição de seu respectivo regime jurídico na condição de direitos fundamentais.
Destaque-se, ainda, que tanto no Brasil quanto na Colômbia, doutrina e jurisprudência constitucional, ainda que não de modo uníssono e respeitadas uma série de peculiaridades, os direitos sociais a prestações são considerados direitos exigíveis (na condição de direitos subjetivos e mesmo na esfera individual), o que, por sua vez, não corresponde exatamente ao modelo sul-africano, onde, a despeito de uma série de direitos sociais na Constituição e da criação de uma Corte Constitucional, a normatividade dos direitos sociais a prestações (embora reconhecida) é manejada em geral de modo distinto em relação aos direitos civis e políticos[3], aspectos que serão objeto de maior desenvolvimento mais adiante, pois também dizem respeito às diferentes estratégias de litigância judicial em matéria de direitos sociais.
Que a maior eficácia jurídica e efetividade das normas de justiça social e/ou dos direitos fundamentais sociais (a depender do modelo adotado em cada ordem constitucional) encontra-se atrelada – além do forte influxo do contexto social, econômico e político - aos mecanismos institucionais e procedimentais criados e desenvolvidos para a sua proteção e promoção, incluindo (com maior ou menor destaque) o Poder Judiciário, resulta quase que evidente, o que voltará a ser objeto de atenção em coluna futura, com foco no caso brasileiro, pois cuida-se de dimensão que guarda conexão com a posição do Poder Judiciário no esquema funcional-organizatório e seu impacto sobre a própria democracia.
O que se percebe, nessa toada, é que tanto o conceito, quanto o conteúdo e o regime jurídico dos direitos sociais, embora a amplitude de seu reconhecimento no plano internacional (tomando-se em conta o número de países signatários do Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais) não obedece a um padrão uniforme. Não apenas existem diferenças institucionais, organizatórias e procedimentais significativas, quanto se deve ter sempre presente o fato de que os direitos sociais, notadamente na sua dimensão de direitos a prestações, são fortemente impactados pelo grau de desenvolvimento e prosperidade econômica dos Estados individualmente considerados, mas também e cada vez mais na perspectiva transnacional, o que remete, entre outros aspectos, para o fenômeno da globalização e das crises econômicas que impactam os ambientes nacionais, o que também se verifica no caso brasileiro.
Todos os modelos aqui sumária e esquematicamente apresentados, também devem muito do seu desenvolvimento ao maior ou menor papel desempenhado pelos órgãos jurisdicionais responsáveis pela guarda da constituição. Especialmente no caso brasileiro – que constitui o centro da nossa atenção – a jurisdição constitucional exerceu e ainda exerce uma posição proativa na construção do que se pode designar de regime jurídico dos direitos sociais na sua condição de direitos fundamentais, visto que os elementos constitucionais textuais não chegam a ser, em boa parte, por si só tão claros quanto a tal ponto, em especial no que diz com as consequências do reconhecimento, pela Constituição, de um conjunto de direitos sociais.
Até mesmo e em especial a condição de direitos fundamentais, intimamente vinculada ao problema (dimensão e formatação) do sistema jurídico-positivo constitucional, em larga medida encontra-se na esfera da interpretação pela jurisdição constitucional, o que, precisamente, será objeto de novas colunas, em especial no que diz respeito ao problema da eficácia das normas de direitos fundamentais sociais e sua exigibilidade pela via judicial, visto que no tocante à proteção contra o poder de reforma constitucional já tivemos ocasião de publicar duas colunas, ilustrando a questão no que diz com a erosão dos direitos à saúde e educação por conta das propostas de emenda constitucional propondo a desvinculação das receitas destinadas a tais rubricas.
[1] Sobre o tópico, v. por todos Cass R. Sunstein, The Second Bill of Rights, Basic Books, New York, 2004, embora o autor reconheça que os elementos sociais essenciais que integram a tradição legislativa norte-americana na área da segurança social podem ser considerados como uma espécie de “constitutional commitments”.
[2] Cf., por todos, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, vol. IV, 2ª Ed., Coimbra, Coimbra, 1993, p. 275 e ss. e p. 339, muito embora admitindo que os direitos sociais possam ser considerados como limites materiais implícitos à revisão constitucional (op. cit., p. 340-341). Em sentido diverso, contudo, v. Jorge Reis Novais, Direitos Sociais: Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais, Coimbra, Coimbra, 2010, que sustenta a existência de um regime jurídico-constitucional substancialmente unificado dos direitos fundamentais.
[3] Sobre os direitos sociais na África do Sul, v. especialmente Sandra Liebenberg, Socio-Economic Rights. Adjudication under a transformative constitution, Juta & Co Ltd., Cape Town, 2010.
Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Juiz de Direito no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (Ajuris).
Revista Consultor Jurídico, 15 de julho de 2016