Dia das Crianças
Dia das Crianças como base de análise da sociedade
Idealizado no Brasil em meados de 1920, o “Dia das Crianças” como paradigma cultural e social revela algumas questões sobre o modo como nos manifestamos enquanto indivíduos, seres sociais e família
Raphael de Matos Rodrigues*
A infância é a janela aberta para o desabrolhar do Homem. As relações simbolizadas nessa fase são muitas vezes o espelho para o desenrolar de mundo que desejamos. Nesse contexto, o “Dia das Crianças” como paradigma cultural e social revela algumas questões sobre o modo como nos manifestamos enquanto indivíduos, seres sociais e família.
Antes de mais nada, não levarei em consideração aqui uma discussão sobre o conceito de parentesco; usarei de pressuposto apenas o conceito de família nuclear burguesa. No entanto, podemos relativizar as discussões aqui apresentadas para além desse modelo familiar. Esse texto tem o objetivo de apenas levantar suspeita sobre uma parte de nossa organização social e seus fenômenos.
O “Dia das Crianças” no Brasil foi idealizado em meados de 1920, quando um deputado propôs a ideia de uma data para homenagear os pequenos. A escolha do dia 12 de outubro foi feita no encerramento do 3º Congresso Americano da Criança e do 1º Congresso Brasileiro de Proteção à Infância no Rio de Janeiro, em 1922. No entanto, a data apenas se popularizou quando a publicidade entrou em cena. Isso ocorreu graças à parceria entre as empresas Brinquedos Estrela e Johnson & Johnson que criaram a “Semana do Bebê Robusto”, na década de 1960. No ano posterior, outras empresas se uniram e criaram a “Semana da Criança” para alavancar suas vendas. Depois dessa estratégia, o “Dia das Crianças” ganhou o destaque publicitário que tem atualmente.
Nessa época envolta pelo “Dia das Crianças”, grande parte dos pais carregam uma obrigação inata de presentear seus filhos, muitas vezes com objetos incompatíveis com o seu poder aquisitivo. Os pequenos, por outro lado, se encantam em um primeiro momento com os regalos, mas nem sempre se apegam ao valor ou significado dos mimos ganhos.
Em sintonia com a ideia de MAUSS (2005), ao presentear outrem, criamos uma obrigação face ao receptor que fica com uma necessidade inconsciente de dar algo em troca. Nesse caso, fazendo uma analogia, podemos relatar que o presente do pai é o filho e o presente que o pai deveria dar de volta é o seu amor, mas as relações foram trocadas por objetos, denotando assim uma desconstrução do real sentido de valor do presente, que se transveste como o mais caro que se possa alcançar. Isso se revela através de certo fator subumano contido no presente, no qual o caráter total da noção de infância, simbolizado no “Dia das Crianças”, se dilui em seres despersonificados e mimetizados pela perspicácia publicitária.
O real significado do objeto presenteado se contrasta com o automatismo humano e a frieza das relações que são desenvolvidas. O Homem é apenas pai/mãe no que tange às obrigações supérfluas e econômicas com o filho. O amor e respeito que regeu a natureza familiar já não mais orquestra os ornamentos domésticos, determinando o caráter puramente econômico, vil e autômato que se personifica desde os primeiros anos humanos.
Em Amor Líquido (2003), o sociólogo Zygmunt Bauman diz que as relações sociais, pautadas em uma responsabilidade mútua, são trocadas por relações descartáveis. Para ele, os tempos são “líquidos” e tudo muda demasiadamente rápido. Disso resultaria, entre outras questões, a obsessão pelo corpo ideal, o culto às celebridades, o endividamento geral, a paranoia com segurança e até a instabilidade dos relacionamentos amorosos e familiares. É um mundo de incertezas no qual os genitores raramente sabem o presente que os filhos querem, apenas os presenteiam como compensação à sua ausência. Não brincam com eles, não conversam, não os questionam, não os sentem, isto é, não se interessam pelo pequeno e singelo ser humano, sentado ao chão sutilmente com um presente na mão – os olhos sorridentes, a alegria contagiante e, indubitavelmente, necessitando dos pais. Isso se apresenta pois, como Bauman diz, as relações são frágeis, os diálogos vazios, os sorrisos opacos, cada um por si. Esse fenômeno se designa nas mais diversas classes sociais, no qual, em alguns casos, priorizam objetivos pessoais em detrimento de uma ligação com os filhos; já em outros, pela necessidade de manutenção material familiar.
Nesse embate entre os desejos pessoais e o vínculo com os filhos, Beck e Beck-Gernsheim, em seu livro The Normal Chaos of Love (1995), abordam o lado teórico-social do que se apresenta como um conflito dessas relações: “Eles consideram que nossa era é repleta de interesses em colisão, entre a família, o trabalho, o amor e a liberdade de perseguir objetivos individuais” (Beck e Beck- Gernsheim apud Giddens 2012, p. 272).
O fato é que a paternidade para os pais estaria em uma relação de conflito com seus objetivos individuais, profissionais, sociais, entre outros. A escolha dos indivíduos se relaciona com os interesses em choque. Os pais, agentes subjetivos, autômatos e sobreviventes na caixa de caminhos da realidade, se inserem no meio social em que um conjunto de possibilidades sobre eles recai. Desse modo, confinados coercitivamente em um caminho rumo a esse aglomerado de escolhas, uma angústia sem precedentes toma conta do ser.
Faz-se interessante colocar que essa noção de liberdade não condiz com a ideia subjetiva de liberdade. Além disso, essa ideia de liberdade é levada ao limite.
Tanto as crianças quanto os pais são impelidos a escolhas em uma diversidade de situações, mas é possível definir como notório que o homem não escolhe o que deseja; sendo assim, é evidente o cativeiro determinado pela liberdade. Assumimos obrigações que, na maioria das vezes, não podemos cumprir e por escolher mal, pagamos um alto preço. Uma vez que não conseguimos nos livrar das escolhas e de sua liberdade, essa constante angústia entra em simbiose com nossos desejos.
Como relata Sartre, a angústia que delineia nosso ser aparece na conscientização da responsabilidade que encontramos em nossas escolhas. A angústia é então o resultado do descobrimento dessa liberdade sem nenhum entrave, limitada apenas por si mesma, no sentido de possibilidade de ação e fonte absoluta de todo sentido do agente. Como resultado, todo o amor que deveríamos repassar aos pequenos se “absolve”, isto é, exteriormente nos absolvemos da condição que nos é concernente – ser pais –, proclamando uma omissão afável à paternidade.
Essa omissão, permeada de cinismo, se transveste numa obrigação de “mimosear” os pequenos e invariavelmente se configura em uma arma para o marketing. Ele é perspicaz, não só se impõe como atualmente circula no sangue humano e, dessa forma, consegue usufruir deste “mecanismo compensatório”, por meio da família. A compensação perante a ausência e a falta de tempo com os filhos não funciona e ainda acarreta consequências imperceptíveis. O indivíduo vive coagido na injunção simbólica e paradoxal que se torna o presentear em vistas da agressividade publicitária.
Em uma discussão sobre a individualidade e a busca incessante pela felicidade [material], aferimos que os pais se aprisionam em contradições. A ideia de “amar o próximo como a si mesmo” é apenas uma forma de mitigar a consciência, escapando da vontade do indivíduo em si. Freud relata que diante da “imposição social para o bem da civilização” o homem é oprimido em suas pulsões e, dessa forma, vive em mal estar. Diz ele:
“A patologia nos apresenta um grande número de estados em que a delimitação do Eu ante o mundo externo se torna problemática ou os limites são traçados incorretamente; casos em que partes do próprio corpo, e componentes da própria vida psíquica, percepções, pensamentos, afetos, nos surgem como alheios e não pertencentes ao Eu.” (2010, p. 17).
Enclausurados e angustiados, os pais arduamente devem se perguntar até que ponto o amor pelos filhos deve ser realizado da maneira como estão fazendo. O alicerce central humano não seria o amor grego denotado nos signos de ágape? O indivíduo clama por amor ou se perde em vias coercitivamente paradigmáticas?
Essa asserção é expressa nas ideias aqui relatadas, pois toda a estrutura psicológica dos indivíduos é ruída. No fundo o que queremos é, pelo menos, libertar a pulsão enclausurada em nosso âmago com vistas à realização de nossas vontades. Toda essa coerção e angústia em que o indivíduo ou agente se insere, incide no caráter intrínseco da humanidade, paradoxalmente. Assim, se por um lado, influenciados pela mídia e pelo marketing, o ser e sua subjetividade se aprisionam – esgotados na corrida em direção a uma perene superfluidade e automação –, por outro lado, o homem é confinado por escolhas ou por coerção social, numa “sinuca de bico” entre quatro paredes sem luz, na qual o que resta é a tentativa de simular o útero materno em prazerosos e sutis objetos resguardados pelo calor e conforto, em simbiose com nosso meio exterior.
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Como reflexo dessa análise, o “Dia das Crianças” pode ser desmistificado por uma série de manifestações e relações. O relato acima quer apenas instaurar pulgas atrás de orelhas surdas, mas diz muito sobre o modo como organizamos alguns de nossos arranjos sociais. A análise das ações e relações sociais construídas atualmente se apresentam rumo a um doce e específico lugar: o abismo. Para a desconstrução do modelo social vigente, é necessária uma educação pautada em outra visão. Em verdade, somos frágeis. A geladeira é ligada pela compensação. E nesses tempos em que até os sonhos são líquidos, todos os resquícios do humano evaporam.
*Raphael de Matos Rodrigues é analista de sistemas e profissional de marketing; pai, filho e espírito livre. Atualmente está no último ano de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo e colaborou para Pragmatismo Político.
Referências
Site: http://www.unicef.org/brazil/pt/. Visitado em 12/09/2016.
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2003
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização In: Obras Completas Vl. 18. São Paulo: Cia. das Letras. 2010
GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Penso, 2012.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Editora CosacNaify: São Paulo, 2003.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Editora Vozes: Petrópolis, 2011.