Desafios curriculares no EM

Desafios curriculares no EM

Especialistas debatem desafios curriculares no ensino médio

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A tríade acesso, permanência e aprendizagem pauta o debate sobre as mudanças estruturais e curriculares do ensino médio. O desdobramento de cada um dos aspectos traz desafios e responsabilidades de complexidade diversas para gestores públicos, escolares e demais representantes da comunidade escolar, dada a urgência do reconhecimento das juventudes.

Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco, mostrou
em números a realidade desafiadora durante o Seminário Internacional Desafios Curriculares do Ensino Médio, realizado em parceria com o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), em São Paulo, nos dias 9 e 10/11.

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Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco, durante Seminário Internacional Desafios Curriculares do Ensino Médio.

Crédito: Divulgação

O especialista retomou o número de jovens de 15 a 17 anos fora da escola – cerca de 1,7 milhão, o que corresponde a 16% da faixa etária, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE – e também o percentual de estudantes que se encontra retido no ensino fundamental, cerca de 20%, para embasar o que considera os principais enfrentamentos da etapa.

“Precisamos estabelecer uma conexão com as culturas e as identidades e buscar uma organização curricular que permita a flexibilidade e o protagonismo juvenil”, assegurou Henriques ao reconhecer a lógica excludente preponderante nas escolas: “dos estudantes que chegam ao ensino médio, muitos não ficam e, dos que ficam, poucos aprendem”, criticou.

Engessado e para poucos

Os especialistas entendem que, parte do descolamento do ciclo em relação às juventudes se deve à recente universalização da educação básica no Brasil para crianças e jovens de 4 a 17 anos – alcançada em 2009 pela Emenda Constitucional nº 59, de 11 de novembro de 2009. Eles reconhecem que o incremento de matrículas veio acompanhado de uma demanda bastante diversa de jovens que até então não tinham estado no sistema educacional e que se viram pouco acolhidos pela dinâmica conteudista  e voltada para o acesso ao ensino superior.

A superação desse modelo é crucial para Francisco Soares, integrante do Conselho Nacional de Educação (CNE) e debatedor na mesa O currículo do ensino médio no olhar de pesquisadores e gestores brasileiros. “Precisamos de um projeto para todos, capaz de reconhecer as diferenças, as comunalidades, as diferentes exigências de cidadania”, pontuou.

Pactuaram da opinião as pesquisadoras Gisela Tartuce e Marina Nunes, da Fundação Carlos Chagas. As especialistas, que puderam se debruçar sobre as políticas curriculares de dez estados brasileiros durante uma pesquisa, entendem que, embora reconhecida por lei, a parte curricular diversificada ainda é pouco contemplada pelos currículos.

Pesquisa
Acesse o relatório final da pesquisa Ensino Médio: Políticas Curriculares dos Estados Brasileiros coordenada pela Fundação Carlos Chagas.

“O foco se dá na base comum e na manutenção das treze disciplinas, evidenciando a ênfase preparatória aos vestibulares”, apontou a dupla. Elas também reconheceram que, embora não oficial, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) também dita os modelos dos documentos curriculares estaduais.

Em movimento

O convidado britânico Dave Peck, CEO da Curriculum Foundation do Reino Unido, reconheceu que nenhum país tem um currículo perfeito e que o caminho é revisar constantemente os documentos para que não fiquem estáticos. “O mundo muda e os currículos precisam acompanhar essas mudanças”, sentenciou.

Ele ainda colocou a importância de se esclarecer os objetivos de aprendizagem pretendidos e a urgência de entender que o papel do currículo vai para além da simples organização de disciplinas e matérias. “Todo jovem deveria sair da escola com confiança, habilidade e desejo de transformar o mundo em um lugar melhor”, afirmou.

Para isso, defendeu o trabalho com as habilidades, competências e atitudes dos estudantes. “Imaginem, não seria um horror se um garoto saísse da escola sem valores e chegasse à presidência de um país?”, ironizou, referindo-se à recente eleição de Donald Trump nos EUA.

Peck reforçou que os países não podem perder os talentos de seus jovens, o que significa considerar as experiências de cada um deles nos processos educacionais. “Só que as normas e padrões não vão nos assegurar isso, o caminho é rever os objetivos, as abordagens para que as crianças parem de ser vistas como copos vazios que precisam ser preenchidos por conhecimento, o que é um erro”, alertou.

Em diálogo com a diversidade

cadeira_rodas_inclusaoDurante o evento também se discutiu a necessidade dos currículos enfrentarem as desigualdades sociais expressadas cotidianamente no interior das escolas e nas relações estabelecidas. Rodrigo Mendes, diretor do instituto de mesmo nome, pautou a necessidade de um desenho universal para a aprendizagem capaz de ampliar o acesso à aprendizagem por meio da redução de barreiras físicas, cognitivas, intelectuais e organizacionais.

O especialista comemorou o fato de 80%  das matrículas de estudantes com deficiência se darem em ambientes inclusivos, mas chamou a atenção para o fato de que apenas 0,8% acontecem no ensino médio.

A coordenadora executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade (Ceert), Cida Bento, trouxe a questão da descolonização do currículo, “pautado pelo eurocentrismo, ou seja, pela exclusão da história dos negros. De cada cinco anos de nossa história, quatro se viveu na escravidão, e isso ou não está refletido ou está de maneira negativa”, questionou.

Para a especialista, a conquista da alteração da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) pela Lei 10.639, que inclui a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira, não diz apenas da inserção de novos conteúdos, mas de novas práticas, do questionamento de lugares de poder. “Os jovens negros precisam ser ouvidos, mas não como pauta de reivindicação, mas de fato inseridos, participados”.

Denise Carreira, coordenadora da área de educação da Ação Educativa, também debateu o currículo a partir da perspectiva da promoção da justiça social. Para ela, há uma tendência a se invisibilizar as desigualdades e naturalizá-las. “E aí está o desafio do nosso país, o de trazer essas questões para o centro”, colocou.

Ela defendeu um currículo que promova a cultura democrática. “Que seja capaz de enfrentar a nossa imensa tolerância com as desigualdades, racismos, sexismos, com a homofobia e as questões de gênero; que supere a cisão existente entre o que demandam avaliações de larga escala e os direitos humanos e a diversidade”, finalizou.

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“Nosso modelo curricular é ultrapassado, enciclopédico e nada flexível”

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Os desafios do ensino médio são muitos, estruturais e começam nas etapas iniciais de ensino. A avaliação é do superintendente executivo do Instituto Unibanco, Ricardo Henriques, em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, na qual avalia os problemas do ensino médio e a importância da gestão escolar para superá-los.

“Fortalecer a gestão das escolas públicas, de forma articulada com a melhoria da gestão da rede de ensino, tende a gerar impacto significativo na qualidade, aumentando a aprendizagem e reduzindo as desigualdades entre os estudantes”, afirmou.

Ele defendeu mudanças estruturais no currículo do ensino médio por acreditar que existem muitas disciplinas obrigatórias que tornam nosso modelo “ultrapassado, enciclopédico, com excesso de disciplinas obrigatórias, nada flexível e desconectado do mundo do trabalho e das demandas da sociedade contemporânea”. Leia a entrevista na íntegra.

Centro de Referências: Como você avalia o papel do ensino médio na vida de um jovem brasileiro?

Ricardo Henriques: O jovem que cursa o ensino médio, na faixa etária dos 15 a 19 anos, passa por um momento decisivo de definição de seu projeto de vida. Nesse sentido, precisamos de uma escola que dialogue com os interesses, as demandas e as expectativas desses estudantes e que amplie suas possibilidades de escolhas ao final dessa etapa. Ao mesmo tempo, é necessária uma escola que forneça, de forma estruturada, os conhecimentos cognitivos e socioemocionais relevantes, e cumpra sua função de formar as novas gerações para a participação cidadã, crítica e autônoma, possibilitando ao jovem circular e atuar com desenvoltura e competência no mundo contemporâneo.

CR: Como você avalia a qualidade do ensino médio brasileiro? Quais são os principais desafios a serem superados? 

R.H: Os desafios são muitos e estruturais. É bom lembrar que eles começam já antes dessa etapa, pois muitos jovens chegam ao 1º ano com sérias defasagens em relação ao que deveriam ter aprendido no final do fundamental. Isso sem falar nos que abandonam a escola antes mesmo de ingressar no antigo 2º grau e que precisam urgentemente voltar à escola para não comprometer seu futuro. No médio, faltam professores, vagas no diurno, estrutura física e gestão nas escolas. Além disso, o modelo curricular é ultrapassado, enciclopédico, com excesso de disciplinas obrigatórias, nada flexível e desconectado do mundo do trabalho e das demandas da sociedade contemporânea. Essa estrutura do currículo associada a práticas pedagógicas pouco dinâmicas tornam a escola desinteressante para o jovem de hoje.

CR: Então o currículo é uma questão central a ser enfrentada no ensino médio?

RH: Certamente. Diante de um quadro expressivo de evasão escolar, em que pouco mais de 50% dos jovens de 18 anos conseguem concluir essa etapa, o currículo é um elemento-chave para a permanência e conclusão com sucesso. Vale destacar, no entanto, que uma reforma curricular sem garantir as condições mínimas de ensino e aprendizagem – materiais, de formação inicial de professores e de gestão –, não resolverá o problema. Sem uma infraestrutura adequada, sem professores bem formados nas Universidades e preparados para serem os agentes desse currículo, que dialoga com os jovens, esse desafio é ainda maior. Fazer mudanças urgentes é necessário para que o Brasil avance sem desperdiçar o potencial de mais gerações.

Ricardo Henriques, do Instituto Unibanco / Crédito: Lucas Ismael

Ricardo Henriques, do Instituto Unibanco / Crédito: Lucas Ismael

CR: Qual o papel da gestão escolar na superação desses desafios? 

R.H: Todo o esforço da gestão deve estar voltado para a melhoria da aprendizagem de todos os estudantes e a redução das desigualdade no interior de cada escola e entre escolas. Questões como a evasão escolar e a defasagem idade-série precisam estar no foco das ações. Faz-se necessário um diagnóstico contextualizado que enfrente, de forma explícita, as causas das taxas de evasão e defasagem e dos níveis críticos de desempenho dos estudantes. Com base nesse diagnóstico, a equipe gestora precisa desenvolver em seu planejamento ações para enfrentar estas questões, estabelecendo metas claras e responsabilidades a serem monitoradas de forma rigorosa e contínua. Nesse sentido, fortalecer a gestão escolar das escolas públicas, de forma articulada com a melhoria da gestão da rede de ensino, tende a gerar impacto significativo na qualidade, aumentando a aprendizagem e reduzindo as desigualdades entre os estudantes.

C.R – Quais elementos devem balizar o currículo do ensino médio? 

R.H: O processo de construção da Base Nacional Comum Curricular está em curso. A definição dos conhecimentos que os estudantes do ensino médio devem apresentar ao final de cada ano deve contemplar conteúdos que dialoguem com os interesses e projetos de vida dos jovens e considerar ainda as competências necessárias no século XXI. É imprescindível que seja garantido o direito aos conhecimentos historicamente construídos e que são cruciais, em cada uma das quatro áreas de conhecimento, para o desenvolvimento das diversas competências necessárias para o efetivo exercício da cidadania. Além disso, reconhecer a diversidade das juventudes existente no País e garantir que esses jovens sejam ouvidos e façam parte dessa construção. Diante desse contexto, a possibilidade de oferecer aos estudantes a opção de traçar percursos distintos no ensino médio deve ser considerada.

C.R: Como você avalia a ideia de ter um currículo flexível onde o estudante e a escola tenham mais liberdade para escolher as disciplinas?

R.H: Acredito que flexibilizar o currículo do ensino médio é uma urgência. Isso implica uma revisão relevante que comporte, simultaneamente, um conhecimento comum a ser compartilhado por todos estudantes e um conjunto de escolhas, tanto no campo propedêutico como no campo técnico, que permita cada estudante eleger um percurso formativo que completaria seu ciclo de estudos do ensino médio.

Atualmente, temos um currículo, como falado anteriormente, com um volume enorme de matérias obrigatórias, em que todos os estudantes devem estudar todos os conteúdos de todas matérias. Diante de uma Base Curricular Comum Nacional, desdobrada na escola, os estudantes passariam a estudar obrigatoriamente o que é o “comum” e, a partir disso, exercer sua escolha sobre um conjunto finito e estruturado de caminhos que estejam alinhados a suas expectativas individuais e projetos de vida.

CR: Como isso poderia estar sendo organizado concretamente?

RH: Dentre as 2.400 horas (preferencialmente 3.000 horas) que compõem a carga horária do ensino médio, deveríamos dispor de cerca de 50% do tempo dedicado ao que remete ao “comum”. Isso permitiria desenvolver competências associadas a um conhecimento global das chamadas “áreas de conhecimento”, que seria reconhecido como o conhecimento a ser compartilhado de forma universal por todos estudantes. A partir desse núcleo comum, cada estudante, para completar a formação, teria assegurado o direito à escolha de um percurso de aprofundamento de estudos específicos, atendendo os que pretendem seguir trajetórias tanto rumo à universidade como ao ensino técnico.

Essa organização do ensino médio abre, do ponto de vista operacional, vários desafios. Destaco dois para discussão: o sistema de avaliação e certificação e a estruturação da oferta de distintos percursos formativos. A adaptação do sistema de avaliação e certificação implicaria o Enem (ou avaliação externa equivalente) ser modulado de modo a captar, por um lado, o conhecimento global associado ao núcleo comum do currículo e, por outro lado, o conhecimento aprofundado de cada uma das áreas de conhecimento. No que se refere à estruturação da oferta, as redes de ensino necessitariam ter uma visão integrada dos territórios e, sobretudo em regiões com menor densidade demográfica, segmentar a oferta de caminhos a partir da especialização de escolas em alguns dos campos de escolha.

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