Derrubando os muros da escola
Há 30 anos no magistério, professor conta por que derrubou muros da escola
Thiago Varella 15/10/2015
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O professor Braz se tornou uma liderança importante na comunidade de Heliópolis
Encrustada em uma das maiores favelas da capital paulista, em uma via com o sugestivo nome de Estrada das Lágrimas, está a Escola Municipal de Ensino Fundamental Presidente Campos Salles. Trata-se de uma escola-modelo tanto na maneira como se relaciona com a comunidade quanto no modo que redesenhou o papel do professor em sala de aula.
Uma liderança importante na trajetória dessa escola é um sujeito que começou a dar aulas por acaso, como forma de sobrevivência.
Braz Nogueira, 63, nem pensava em ser professor. Tentou várias profissões antes de conseguir integrar um colégio público de periferia à comunidade local.
Pobre, estudou em um colégio rural na região de Araçatuba, no interior de São Paulo. Até a 3ª série, precisava caminhar 12 km para chegar à escola. Para continuar seus estudos, deixou a família no campo e foi viver com um tio que morava em Auriflama. Aos sábados, andava 30 km para voltar para a casa dos pais. E, no dia seguinte, percorria a mesma distância para voltar à cidade de seu colégio.
Piloto de caça e padre
Quando terminou o ensino médio – então chamado de clássico – se viu sem muitas perspectivas de estudo universitário. Sem dinheiro, foi atrás de seu primeiro sonho profissional: ser militar da Aeronáutica. Alistou-se e foi servir em Pirassununga, também no interior de São Paulo. Mas não deu certo.
Em um bate-papo com o pároco de Auriflama, decidiu ser padre. Bancado pela igreja, Braz foi cursar filosofia como seminarista em uma faculdade católica na capital paulista. Teve muitas dificuldades, mas conseguiu terminar o curso de filosofia e, quando já havia cursado dois anos de teologia, acabou sendo expulso pelo reitor porque não frequentava mais a missa.
O que parecia ser uma notícia triste, veio como um alívio. A batina não fazia parte de sua vocação. Apesar da insistência do bispo, Braz saiu do seminário. Braz, agora, se via desempregado, sem dinheiro e com um diploma de filosofia que mais atrapalhava sua carreira do que ajudava. "Eu me sentava na escadaria da Sé e chorava", relembrou.
Professor por necessidade
O ex-militar e ex-seminarista se via com apenas uma opção: dar aulas. Com a filosofia e os anos de teologia, tornou-se professor de religião. Em seguida, começou também a dar aulas de estudos sociais. Ficou em uma longa fila para lecionar na rede municipal de ensino de São Paulo.
"Quando chegou minha vez, pedi 24 aulas em qualquer lugar da cidade. Até porque eu não tinha onde morar. E me deram 12 aulas na escola Leão Machado. Isso foi início de 1978", contou.
Começava, então, por acaso e necessidade, a carreira do professor Braz Nogueira. "Não queria dar aulas, mas, quando entrei numa sala de aula e comecei a trabalhar, descobri que estava em casa. Caramba, deveria ter tentado ser professor desde sempre", disse.
Logo foi dar aulas na escola Silvia Martins Pires, onde ficou por 15 anos. Lá, teve sua primeira experiência transformadora como professor. Inspirado por um curso de psicodrama, levou centenas de alunos de volta ao colégio nos sábados para instituir um poder paralelo de mentirinha.
A escola virava uma cidade, com prefeito, vereadores, políticos e uma dezena de comissões. Tudo ocupado, ou encenado, pelos alunos.
"Foram aí, nessas atividades de psicodrama, que eu percebi que o que a gente decidia tinha muito mais seriedade e constância do que aquilo que eu construía com adultos. Cheguei à conclusão de que todo ser humano é competente. A criança é portadora de conhecimento. A escola que não respeita o conhecimento prévio do aluno faz mal para ele. O que se cria na escola é algo paralelo à vida", explicou.
A saída da sala de aula para a função de diretor também não se deu de maneira lógica e natural. Com um empurrão da mulher, que era diretora, Braz cursou pedagogia e, depois de formado, prestou concurso público. Passou. E, ainda por cima, em uma boa colocação, que lhe dava o direito de escolher a escola onde queria trabalhar.
Fez, então, uma lista. A primeira escola era justamente a Presidente Campos Salles, em Heliópolis.
"No dia da escolha, um colega disse que essa escola eu não poderia escolher de jeito nenhum. Contou que só marginais e favelados estudavam lá", relembrou. "Não me importei. Escolhi a Campos Salles por dois motivos: eu morava perto e podia ir a pé, e a origem dos alunos era a mesma que eu tinha. Eu não estaria entre favelados, mas entre os meus", completou.
Início em Heliópolis
E, assim, Braz foi parar na escola que mudou sua vida. E vice-versa. Percebeu-se no meio de uma grande briga política por poder dentro do colégio e precisou agir.
"Eu percebia na demanda dos grupos que lutavam pelo poder que o aluno era o grande ausente. O aluno não existia. Quase me arrependi. Mas não poderia voltar pra trás", contou.
Duas ideias nortearam Braz na direção da Presidente Campos Salles. A primeira é a de que tudo passa pela educação, mas não necessariamente pela escola. A outra ideia é a de que a escola tem que ser centro de referência e liderança na comunidade onde está inserida.
Um dos grandes legados de Braz em Heliópolis, a Caminhada pela Paz, que é realizada anualmente até hoje, nasceu dentro desses princípios. Em 1999, uma aluna de 15 anos foi assassinada, com cinco tiros na cabeça, minutos depois de sair do colégio. Depois do sentimento de revolta, veio a vontade de fazer algo para mudar a realidade do bairro.
Braz decidiu ir à sede da Unas, a União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região, para propor a ideia da caminhada aos líderes da comunidade. Em conversa com João Miranda, uma histórica liderança local, ouviu algo que nunca mais se esqueceu.
"Você não precisa pedir nossa ajuda. Onde a escola está, nós também estamos. Para nós, não estamos aqui e a escola lá. Somos uma coisa só", afirmou Miranda, na conversa. Neste momento, Braz percebeu que a escola estava totalmente integrada à comunidade.
Em 2002, o diretor deu seu golpe final. Após um roubo de computadores de dentro do colégio, resolvido dentro da própria comunidade, mandou derrubar os muros da Presidente Campos Salles.
"A escola tinha um grande muro com estacas de ferro. Não se via o colégio. Em 2002, foram roubados 21 computadores. Fui fazer B.O. Uma liderança comunitária andou comigo e eu falava às pessoas que os filhos haviam sido roubados. Aí, eles devolveram os computadores. Uma moto e um carro me fecharam e o cara disse 'é sobre o barato dos computadores, queremos devolver na comunidade, pois na escola a polícia pode nos pegar'", contou Braz. Sua resposta foi derrubar o muro e mostrar que ali era um local seguro e integrado a Heliópolis.
Escola sem muro
Apesar de todas as mudanças, a Presidente Campos Salles continuava com sérios problemas pedagógicos. Em 2004, três professoras procuraram Braz propondo uma mudança. Como inspiração, elas citavam a Escola da Ponte, uma instituição pública portuguesa baseada na tríade solidariedade, autonomia e responsabilidade. É uma escola sem salas de aula, sem turmas, em que nenhum estudante é de um professor só, nem um professor é só de alguns estudantes.
Braz julgou que qualquer mudança nesse caminho, na Presidente Campos Salles, seria impossível. No entanto, naquele mesmo ano, o professor começou a cursar uma especialização em Educação Comunitária. No fim de 2005, ele se graduou e teve a Escola da Ponte como objeto de sua monografia.
"Então, apresentei minha proposta a todos em Heliópolis, às lideranças e pela cidade. Em setembro de 2005, foi aprovada a metodologia de ensino com base nos princípios da Escola da Ponte. Sempre friso que, não temos a Escola da Ponte, mas fomos inspirados por ela", explicou.
Em 2008, Braz derrubou algumas paredes da escola e transformou 12 salas de aula em quatro grandes salões. No seu projeto, os professores não iam mais atuar no isolamento. Agora, teriam de preparar roteiros de estudos e atuar como monitores dos alunos nos salões.
"Na Presidente Campos Salles, o papel do professor é de orientador. É proibido explicar. É só orientação. O professor é quem oferece recursos para que o aluno construa seus próprios caminhos. Nossa preocupação é que o aluno aprenda com tudo, com todos e em todos os lugares e para sempre. Algo para além das paredes", contou.
Em um período de 30 anos, um ex-futuro-padre-piloto-de-caça, tornou-se professor para não passar fome e, a partir daí, transformou o papel dos seus colegas dentro de um colégio público da periferia. Atualmente, Braz não é mais diretor. Ele agora é diretor regional da Diretoria Regional de Ensino do Ipiranga, em São Paulo. E tenta mudar o panorama de outras escolas na cidade de São Paulo.
http://educacao.uol.com.br/noticias/2015/10/15/ha-30-anos-no-magisterio-professor-conta-por-que-derrubou-muros-da-escola.htm