Dar mais a quem tem menos
Philippe Perrenoud: "Na escola, dar mais a quem tem menos"
Referência na Educação, suíço defende que gestores e professores mobilizem sua dedicação aos alunos com maior dificuldade
Rodrigo Ratier (rodrigo.ratier@fvc.org.br), de Brasília, DF
Se você passou pelas aulas de Sociologia da Educação ou leu alguma obra da área, é provável que já tenha ouvido falar da clássica noção da escola reprodutora. Em linhas gerais, a ideia é a seguinte: em vez de atuar como uma instituição em que todo os jovens e as crianças têm acesso a um conjunto de conhecimentos para uma vida digna, a escola, na prática, exerce o papel inverso, aumentando as desigualdades da origem socioeconômica - reproduzindo, portanto, uma realidade social injusta. Aos alunos das classes privilegiadas, filhos de pais com elevada escolaridade e que têm em casa acesso a um amplo repertório cultural (livros, música, artes plásticas etc.), está reservado o avanço às etapas mais altas de ensino - e as vantagens decorrentes desse percurso estendido, como salários mais altos. Para os estudantes das classes populares, menos preparados para as exigências da vida acadêmica, o caminho é pontuado por notas baixas, repetência e, em muitos casos, o abandono do estudo. Como, aliás, ocorreu décadas antes com os pais deles.
É o caso de perguntar: quando um aluno fracassa, a culpa é dele próprio (que não estudou direito) ou da escola (que não ensinou bem)? Para Philippe Perrenoud, um dos mais respeitados pensadores contemporâneos da Educação, não há dúvida de que grande parte do problema encontra-se, sim, na instituição. Mais precisamente, na forma em que ela organiza sua atuação, oferecendo a todos os alunos o mesmo ensino, com a mesma metodologia, exercícios semelhantes e avaliações idênticas. "Tratamos as crianças como se elas fossem iguais, porém a diversidade de culturas, modos de vida e relações com o conhecimento é enorme." Na opinião do sociólogo suíço, professor da Universidade de Genebra, a tarefa de uma escola que não exclui ninguém é oferecer uma Pedagogia que ele batiza de diferenciada, que considere - e atenda - as necessidades de cada um, dedicando mais atenção e energia a quem precisa mais. É a chamada discriminação positiva. Durante o Congresso Internacional da Rede Católica de Ensino, em Brasília, ele recebeu a equipe de GESTÃO ESCOLAR para explicar como diretores e coordenadores podem trabalhar para que suas escolas não deixem ninguém para trás.
A constatação de que a escola amplia as desigualdades socioeconômicas entre os alunos foi feita há quase meio século. De lá para cá, a situação mudou de alguma maneira?
PHILIPPE PERRENOUD Não muito. A diferença é que antes havia uma separação entre as classes privilegiadas - que chegavam às etapas superiores de estudo - e todas as outras, que não conseguiam. A partir dos anos 1960, as classes médias obtiveram acesso à universidade, mas as camadas populares ainda não. As desigualdades se deslocaram de patamar, mas continuam existindo.
A escola básica tem responsabilidade por essa situação?
Sim, na medida em que não consegue reduzir as desigualdades. Ela é eficaz apenas para uma parte dos alunos, menos para outra parcela e muito pouco para cerca de 20%. Esses abandonam os estudos ou aprendem quase nada. E de onde vêm esses 20%? São as crianças de classes populares, justamente as que mais precisam aprender, pois não têm recursos em seu local de origem. A escola deveria se concentrar nesses casos, em que ela é insubstituível. Não é o que observamos.
Por que os sistemas educacionais da maioria dos países não têm alcançado o objetivo de fazer com que todos aprendam?
Porque a maioria trata os alunos como se eles fossem todos iguais. Sabemos que isso não é verdade. Na prática, o que ocorre é que, mesmo com boas condições de ensino, ninguém aprende no mesmo ritmo nem da mesma maneira. Igualdade de oportunidades não garante igualdade na aprendizagem.
Por que isso ocorre?
A aprendizagem depende não apenas de como o professor ensina mas também do que crianças e jovens trazem em termos de origem sociocultural e, claro, de seu interesse e sua dedicação. Podemos pensar no exemplo de dois adolescentes de 15 anos que estudaram a vida inteira juntos. Imaginemos que um saiba ler e o outro não. Um terá aprendido muito do que foi ensinado e o outro não terá tirado proveito das propostas. Muita gente pode dizer que o fracasso escolar é culpa do aluno que não se esforçou. Discordo. Precisamos dar assistência maior aos que não têm vontade de aprender.
O que é a pedagogia diferenciada?
É uma característica que deveria permear qualquer metodologia de ensino. Consiste em reconhecer que toda turma tem alunos diferentes e que é preciso orientar a ação pedagógica levando isso em conta. Diferenciar é ensinar de modo que cada aluno esteja sempre diante de situações didáticas propícias para aprender. Isso exclui aquelas que não trazem desafio e as que propõem uma missão fora do alcance. O interessante é que a diferenciação é um conceito presente em muitas áreas. Costumo dar o exemplo da medicina. Um médico não pode dar o mesmo medicamento a todos os doentes. É preciso fazer diagnósticos individuais e adaptar o tratamento a cada um.
Como realizar a diferenciação do ensino em escolas grandes?
A pedagogia diferenciada é uma escolha por um sistema de Educação. Requer uma mudança na formação dos professores, na gestão das escolas e no trabalho na sala de aula. Operacionalizar tudo isso em escolas com centenas de alunos é complicado. Muitas vezes, elas são organizadas como quartéis, com normas rígidas de horário, circulação e mobiliário. Contudo, esse quadro não é um obstáculo. Uma instituição grande pode ser estruturada em subconjuntos. Em diferentes atividades e disciplinas, os estudantes são divididos em grupos, que terão desafios distintos em termos de complexidade, com natureza compatível com o nível e as necessidades de cada um.
Que critérios utilizar na formação dos grupos para que todos aprendam?
Antes de tudo, não estamos falando em separação por nível - melhores com melhores, piores com piores. As pesquisas mostram que, quando se colocam alunos semelhantes juntos, os piores têm menos ambição para avançar. Os grupos também não devem ser estáveis. É preferível que eles sejam focados em dificuldades particulares imediatas e possam ser recompostos quando os objetivos de aprendizagem forem atingidos. Isso exige a atenção do professor ou do gestor para avaliar quantos alunos estão efetivamente aprendendo, quantos saíram do processo, quantos se entediaram.
Há exemplos concretos de sucesso da pedagogia diferenciada?
Há alguns. Há um caso emblemático em Luxemburgo. Lá, a diferenciação ocorre numa instituição de Ensino Médio, etapa em que muitos acham impossível fazer esse trabalho. Nessa escola, são ensinadas as mesmas disciplinas, nos mesmos horários, em três turmas da mesma série. Os professores entram em acordo em relação aos objetivos e cada um trabalha sua turma durante quatro semanas. Depois desse período, eles fazem um balanço do que cada estudante aprendeu. Na quinta e na sexta semana, eles redistribuem os alunos das três turmas em grupos de desenvolvimento e de recuperação. Depois, eles voltam para outro ciclo de quatro semanas em turmas tradicionais, seguindo por mais uma ou duas semanas de nivelamento. Não é um esquema perfeito, mas ataca o problema da desigualdade de aprendizagem pela raiz.
Em termos de organização do espaço, como deve ser uma escola que dê atenção a quem mais precisa?
Uma escola construída para uma pedagogia diferenciada não é um retângulo. Exige flexibilidade, com locais grandes, para reunir todos os alunos, e outros menores, para os trabalhos em grupo. É preciso pensar em modelos para a sala de aula com mesas para equipes ou com a possibilidade de juntar carteiras. No Brasil, conheci uma escola que tinha mesas hexagonais, em que os alunos ficam sempre reunidos de seis em seis. Quem não tem uma arquitetura conveniente vai precisar um pouco mais de energia e inventividade para a diferenciação, sempre respeitando os princípios do agrupamento e a posterior reunificação.
Para a diferenciação dar certo, os estudantes precisam ficar mais tempo na escola?
Se todo o resto já foi modificado - as ferramentas didáticas, a avaliação, o atendimento -, não é necessário aumentar o número de horas na sala de aula. Segurar os alunos com dificuldade além do período letivo costuma ser mal vivenciado por eles e quase nunca repõe as defasagens. O primordial é rever o tempo que o professor vai dedicar a cada aluno. Diferenciar pressupõe que o docente dê mais de seus recursos e habilidades aos que precisam mais e deixar aqueles que se viram bem trabalhar com os colegas.
Muitos professores sofrem com esse dilema. Pensam que é injusto não dedicar o mesmo tempo a todos.
Ensinar um aluno que vai bem a ler, que tem vontade de aprender e valoriza a leitura está ao alcance de qualquer professor. Há carência de profissionais qualificados para trabalhar com os alunos que vêm de um entorno em que não se lê nem se encoraja a leitura. É para isso que precisamos de bons docentes.
Os professores estão preparados para trabalhar com a diferenciação?
Não. Nem na Europa. Não conheço nenhum país em que a formação inicial contemple esse domínio a ponto de ser bem praticado. É preciso recorrer à formação em serviço dentro da escola para resolver algumas lacunas.
Quais os primeiros passos da formação em serviço para dar mais a quem mais precisa?
O diretor ou o coordenador podem fazer um balanço das competências e ver os pontos fortes e fracos da equipe. Em seguida, é necessário começar um processo de orientação de cada docente. Essa não é apenas uma tarefa que consiste em indicar um ou outro curso e pronto. É um trabalho que deve tratar do sofrimento do professor, de eventual vontade de abandonar a carreira, dos alunos de que o professor não gosta e dos pais que ele detesta. Nem nos lugares em que há tédio, desespero e cansaço mental por parte de alguns docentes os formadores trabalham nessa dimensão psicossociológica.
Não há o risco de que esse trabalho se esgote nas queixas, sem avançar em mudanças efetivas?
É possível. Entretanto, segundo minha experiência, as pessoas concordam em experimentar outras maneiras de trabalhar quando há espaço para a queixa sem haver ridicularização da situação. Os formadores precisam ouvir os professores, estabelecendo um espaço de diálogo e de confiança, em que o sentido das tarefas seja discutido. Levar a equipe a se questionar sobre o fracasso escolar é prioridade. Quando se consegue fazer isso, a gente coloca as pessoas em movimento.
Quer saber mais?
BIBLIOGRAFIA
Pedagogia Diferenciada - Das Intenções à Ação, Philippe Perrenoud, Ed. Artmed, tel. 0800-703-3444, 52 reais