Curriculo pautado pela avaliação
Currículos dos anos finais ignoram alunos e são pautados pelas avaliações
Pesquisa da Fundação Victor Civita e do Cenpec analisou documentos de 16 estados brasileiros
Os currículos dos Anos Finais do Ensino Fundamental estão excessivamente articulados com as competências avaliadas nos exames nacionais e estaduais de larga escala. De 16 unidades da federação, 0 atrelam, em seus documentos curriculares, a melhora do nível de aprendizagem aos índices ruins conquistados nos testes. Esse e outros aspectos estão destacados no estudo “Currículos para os anos finais do Ensino Fundamental: concepções, modos de implantação e usos”, realizado pela Fundação Victor Civita e pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação e Ação Comunitária (Cenpec), em parceria com a Fundação Itaú Social, o Itaú BBA e os institutos Península e Unibanco.
O objetivo da pesquisa era compreender como os documentos curriculares dessa etapa de ensino são produzidos e renovados. Os resultados foram publicados no fim de agosto. O estudo teve três etapas: levantamento de 23 currículos estaduais e do Distrito Federal; análise de dezesseis desses documentos e, por fim, estudo de caso com questionários e entrevistas em três unidades da federação: São Paulo (SP), Pernambuco (PE) e Acre (AC).
“O que encontramos não foi um alinhamento entre políticas curriculares, de avaliação e de formação continuada. Na verdade, parece que houve uma aposta, nas duas últimas décadas, de que a avaliação externa seria um meio mais eficaz para controle do currículo real, aquele que de fato se ensina em sala de aula. Não se investiu na elaboração de documentos curriculares, pois a avaliação externa pressionaria as escolas em busca de melhoria de seus indicadores, especialmente quando associada à bonificação”, explica Antônio Augusto Gomes Batista, coordenador de desenvolvimento de pesquisas do Cenpec. “Se essa aposta parece ter se mostrado eficaz durante um tempo, a estagnação de índices como o Ideb, mudou essa percepção e parece ter levado os gestores públicos a certo desencanto com a visão de que por si mesma a avaliação externa poderia levar à melhoria da qualidade do ensino.”
Além da influência dos testes externos, a pesquisa constatou que os currículos instituídos a partir de 2010 para os últimos anos do Fundamental foram baseados em novos modelos e apresentam nomes diversificados, como diretrizes, propostas e matrizes curriculares. Alguns são recentes: entre 2009 e 2014, 15 unidades da federação instituíram novos textos curriculares em suas redes.
O detalhamento do que ensinar e a ênfase nos aspectos cognitivos também são destacados no estudo, assim como a questão da interdisciplinaridade, pontuada como fator que organiza o currículo sem apresentar formas que mostrem como ela realmente pode ser realizada. A pesquisa ainda aponta a necessidade de um debate amplo com alunos e toda a sociedade sobre o currículo e de divulgação dos documentos entre a comunidade escolar.
Formação
A observação de três casos estaduais na etapa final da pesquisa permitiu que os pesquisadores entendessem a relação entre a formação de professores e os currículos das respectivas unidades da federação. Os resultados mostram que a sobrecarga de trabalho dos educadores e a rotatividade de professores são fatores que dificultam a implementação curricular de forma efetiva.
“Nos três casos, encontramos um modelo de elaboração e implementação que articula pouco o documento curricular, a avaliação e a formação de professores e que quase não monitora o uso do documento em sala de aula, inclusive por meios informatizados e pela observação de aulas por coordenadores e agentes das diretorias de ensino”, relata Batista. “Nas escolas do Acre, os professores pareciam conhecer mais o documento curricular. Lá, os professores declaram utilizá-lo como principal fonte de consulta para elaboração de provas e para planejamento. No momento da aplicação do questionário da Prova Brasil, são os que mais conseguiram avançar nos objetivos previstos para o ano. Nos demais, o documento curricular não aparece como fonte, o que nos faz inferir menor adesão e desconhecimento.”
Base
Apesar da existência de parâmetros, orientações e diretrizes curriculares, o Brasil não tem um currículo oficial instituído. A divulgação dos dados acontece no momento em que o Ministério da Educação (MEC) discute uma base nacional comum (BNC) para todo o País, cujo prazo para a implementação, de acordo com o Plano Nacional de Educação (PNE), vence em junho (para saber mais, clique aqui http://basenacionalcomum.mec.gov.br). Apesar de prevista neste PNE, a BNC também aparece na Constituição Federal (1988) e Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996).
“A BNC é um instrumento de justiça na escola, de justiça como equidade, fazendo com que todos tenham acesso aos mesmos conhecimentos, a uma cultura comum. Mas é preciso lembrar que um documento curricular não se sustenta por si mesmo. Nem todos aprendem nos mesmos tempos, em primeiro lugar. A implantação deve prever formas de recuperação e processos dinâmicos de ‘desagrupamento’ e reagrupamento das turmas”, sugere Batista. “Além disso, é necessário criar um conjunto de condições materiais e simbólicas para que o currículo no papel se torne currículo em ação em todas as escolas, fazendo com que todas as escolas brasileiras tenham as mesmas condições”.
Regionalização
Os currículos analisados apresentam, de acordo com as conclusões da pesquisa, um forte alinhamento com os documentos existentes, com destaque para os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). As poucas rupturas existentes e a própria produção de documentos estaduais próprios não contemplam as especificidades locais das redes. Em contrapartida, os currículos têm maior influência dos conteúdos obrigatórios pela legislação federal, como é o caso da história e cultura afro-brasileira e indígena e da educação ambiental.
Gênero
A pesquisa revela que a presença de conteúdos que discutam a diversidade de identidades e a afirmação de direitos é fraca nos currículos analisados. A constatação está de acordo com a ausência da questão de gênero no Plano Nacional de Educação (PNE) e em diversos planos municipais e estaduais, conforme noticiado pela imprensa nos últimos meses.
“Quase 20 anos depois dos PCN, é lamentável ver o quanto o País regrediu em matéria de reconhecimento de direito à diferença e de valores no plano educacional, apesar dos avanços jurídicos. Os PCN previam ‘conteúdos atitudinais’, que se referiam à esfera de valores, de atitudes a serem valorizadas, como respeito mútuo, respeito à diversidade linguística seja ela regional ou social, em contraposição à intolerância à diferença. Nos temas transversais, se abordavam assuntos importantes – como ética, orientação sexual, relações de gênero e prevenção das doenças sexualmente transmissíveis –, pluralidade cultural e cidadania”, lembra ele, que ainda destaca os avanços trazidos também pelo primeiro Parecer das Diretrizes Curriculares Nacionais, de 2010.
Agora, com a discussão da BNC, o tema volta à tona. Segundo ele, ficará a cargo dos municípios e dos estados colocar o assunto dentro de suas propostas curriculares. “Já sabemos que a BNC privilegiará a dimensão cognitiva do documento curricular. Caberá aos entes federados reafirmar o caráter laico da Educação pública e os valores democráticos na parte que lhes cabe construir”, ressalta o pesquisador. “Para isso o MEC precisará assumir um papel estratégico para fornecer instrumentos e quadros técnicos.”