Currículo de História

Currículo de História

Precisamos falar sobre o currículo de História

Periodização e eurocentrismo nas grades curriculares brasileiras de História.

Por Julio Bentivoglio

As recentes exigências do MEC de inserção de disciplinas obrigatórias nos cursos de graduação em História fizeram com que vários cursos dessa área no Brasil dessem início à reformulação de seus currículos adequando-os às novas diretrizes, em especial, introduzindo disciplinas voltadas para a História da África e da Ásia e para o ensino das relações étnico-raciais. Anteriormente, a carga horária dos estágios para os cursos de licenciatura também havia sido ampliada para 400 horas, bem como a disciplina de Língua Brasileira de Sinais – Libras foi instituída como obrigatória. No calor destas discussões, muitos departamentos de História e colegiados enfrentaram esse desafio de forma interna, isolada e individual, a portas fechadas, de modo que é curioso observar a atmosfera silenciosa e a inexistência de reflexões nacionais mais amplas acompanhando essas reformulações.

Sala de aula e currículo
Debate sobre o currículo de história é fundamental e urgente. Foto: Pixabay.

Enquanto o processo de votação e a aprovação da nova Base Nacional Comum Curricular realizou-se mediante intenso debate, seja por seus pontos polêmicos, em especial o lugar da cronologia e da ideologia na sala de aula, seja pela não obrigatoriedade do ensino de História nas escolas, motivando reflexões por parte de vários interlocutores, inclusive a ANPUH – entidade que congrega os professores de História brasileiros –, que desde o início analisaram questões relacionadas ao lugar do Brasil e de sua História, por exemplo. O debate sobre os currículos, no entanto, não ultrapassou os muros das universidades em que são discutidos. Novas grades curriculares estão sendo adaptadas ou modificadas sem que sejam trocadas experiências, reflexões ou propostas.

Um debate sempre incômodo

O fato demonstra o quanto o problema dos currículos e das grades curriculares é um enorme tabu, envolvido por zelos tradicionais cristalizados na especialização intensa do campo, disputado por áreas que nem sempre estão abertas a debater as disciplinas que lhes cabem (dos títulos a ementas, programas e bibliografias) sem tensões ou conflitos. Com isso, a discussão sobre quais formatos de currículo seriam os mais adequados e, sobretudo, quais disciplinas e conteúdos seriam mais pertinentes para se ensinar e aprender História no Brasil, em conformidade com nosso lugar de fala e face aos avanços vividos pelo campo nas últimas décadas, não foi ensejada coletivamente. A palavra de ordem parece ter sido a adaptação às exigências de ordem externa – oriundas do MEC – e, talvez, a atualização bibliográfica, introduzindo-se novos autores ou novas disciplinas optativas e mantendo-se disciplinas obrigatórias que são praticamente as mesmas há algumas décadas.

A natureza dessas disciplinas obrigatórias não é instituída por lei, não há uma regra geral observável, reservando espaço considerável de autonomia. Contudo, a força do tradicionalismo tem preservado nomenclaturas, ementas e conteúdos sem que se faça sobre eles nenhuma reflexão.

Acompanhando as exigências legais, verifica-se que os currículos brasileiros de licenciatura em História possuem uma carga horária total aproximadamente de 3.000 horas (o mínimo exigido é 2.800), que são assim distribuídas: destas, 400 horas correspondem aos estágios supervisionados e 200 horas são atividades complementares, da carga horária restante, 20% (cerca de 480 horas) fica a cargo das disciplinas pedagógicas e 10% (cerca de 240 horas) são disciplinas eletivas ou optativas. Assim, restam cerca de 60% da carga horária que grade seriam compostos pelas disciplinas obrigatórias, ou seja, essenciais à formação em História. Com essa distribuição, mais geral, os currículos de História costumam ter de 5 a 8 disciplinas pedagógicas, de 4 a 6 disciplinas optativas e mais ou menos 20 disciplinas obrigatórias. A natureza dessas disciplinas obrigatórias não é instituída por lei, não há uma regra geral observável, reservando espaço considerável de autonomia. Contudo, a força do tradicionalismo tem preservado nomenclaturas, ementas e conteúdos sem que se faça sobre eles nenhuma reflexão. Justifica-se, inclusive, a adoção de nomes e conteúdos semelhantes de disciplinas por seu uso contumaz em universidades do Brasil e do exterior, ao longo do tempo, ou ainda, para se manter uma equivalência. Por si só, a preservação de uma grade tradicional bastante similar às grades existentes desde o início do século XX, revela que tradicionalismos, ingerências e determinações de ordem externa (disciplinas consagradas, matriz europeia e as determinações do MEC) têm tido maior peso em nossas escolhas e decisões que a escolha motivada por debates e reorientações surgidos internamente.

Nossos currículos de História sofrem (pequenas) mudanças não porque departamentos e colegiados decidem modificá-los após discutirem avanços e experiências recentes vividas pelo campo; eles sofrem mudanças invariavelmente para se adequar a imposições externas. Raros são os casos em sentido contrário e, nas poucas oportunidades em que reformulações ocorreram, sequelas e cicatrizes antigas explicam a polidez conferida a esse assunto que reserva às áreas (Antiga, Medieval, América, Moderna, Pedagógicas, Contemporânea e Brasil) a palavra final sobre a parte que lhes cabe no currículo em nome da concórdia e da paz nos departamentos.

Periodização e cronologia nos currículos de História brasileiros

Comecemos por uma questão aparentemente trivial: qual o lugar da cronologia em nossas grades curriculares de História? Reclamou-se do peso da cronologia na nova BNCC aprovada em fevereiro deste ano, mas a divisão das disciplinas obrigatórias adotadas em nossos cursos de graduação em História não segue uma cronologia tradicional da velha História Política que remonta ao século XIX? Não é curioso observar que a História de temas, problemas ou questões – típicas da chamada Nova História – surgem apenas nas margens dos currículos, em disciplinas optativas que nem sempre são ofertadas aos alunos? Os nomes das obrigatórias não são praticamente os mesmos adotados no início do século XX em nossos cursos de História?

A sequência de disciplinas nas grades curriculares também chama a atenção: ela adota uma dada ordem temporal partindo do (suposto) “começo” com Antiga nos primeiros períodos para alcançar nos últimos semestres do curso o século XX com História Contemporânea ou Brasil Republicano pós-1964. Sobre o “começo”, a título de exemplo, os cursos de História Antiga não costumam resumir-se à História grega ou romana, sem qualquer referência à Antiguidade Oriental? Por que não começar com a História do território que habitamos (o Brasil) por volta dos séculos XI e VIII a.C.? Por que precisa ser a Grécia? E por que não é a China ou o Egito? Ou a pré-história? Nessa divisão temporal, patenteia-se o desinteresse pela História Oriental e pela História dos agrupamentos humanos antes do advento da escrita. Veja o caso dos sambaquieiros e sua presença ainda hoje nas práticas culturais do litoral brasileiro. Abandona-se esse passado ancestral, do mesmo modo que são ignoradas as migrações, ocupação e transformações das comunidades indígenas, afinal inexistem disciplinas obrigatórias que versem sobre a História dos povos indígenas brasileiros.

À questão da ordem cronológica seguem problemas não menos significativos, por exemplo, em relação à extensão dos períodos históricos, ou aqueles em que o conjunto de problemas ou questões só são aglutinados pela força do imobilismo que evita novos desafios lançados pelo debate historiográfico recente ou mediante a redução de um inventário de acontecimentos ao longo de séculos ao estudo de poucos temas específicos. Exemplo disso é a Antiguidade Tardia no interior da longa Idade Média. Algo similar ocorre tanto em História Moderna, quanto em História Contemporânea, reduzidas ao estudo de temas pontuais, como o Iluminismo, a Revolução Industrial, a Revolução Francesa, etc.

Por que ainda manter a divisão tradicional dessas disciplinas em Brasil Colônia, Brasil Império e Brasil Republicano, esta última, dividida em Brasil Republicano I, II, III e IV separados por conjuntos de governos específicos. Não se reproduzem aí velhas mitologias políticas e mesmo sentidos enviesados sobre o político?

Ensinar História sob essa perspectiva cronológica e linear induz ainda à preservação de disciplinas relacionadas com a História do Brasil e a História da América que parecem sustentar anacronismos e lugares-comuns herdados do século XIX. É o caso de História do Brasil Colônia, por exemplo. O nome da disciplina e até seu conteúdo não estariam remetendo a uma teleologia que enxerga e projeta no passado um presente que ainda não estava lá? Ainda sobre as disciplinas obrigatórias de “Brasil”, não seria o caso de rompermos com a divisão político-administrativa instituída em fins do século XIX? Por que ainda manter a divisão tradicional dessas disciplinas em Brasil Colônia, Brasil Império e Brasil Republicano, esta última, dividida em Brasil Republicano I, II, III e IV separados por conjuntos de governos específicos. Não se reproduzem aí velhas mitologias políticas e mesmo sentidos enviesados sobre o político? Com História da América a questão não é menos diferente: tradicionalmente ela está dividida em nossos currículos em História da América Colonial ou América I e História da América Contemporânea ou América II, relacionada com a colonização e, depois, com o advento das emancipações políticas até o presente. Mais uma vez se coloca o quão complexo é pensar a periodização que orienta essas disciplinas obrigatórias e a dificuldade de abarcar efetivamente a História americana em seu interior. Afinal, como analisar diferentes trajetórias nacionais vividas depois de 1800 sem recorrer a esquematismos ou, o que é pior, deixando mais vazios e lacunas ou trazendo discussões bastante sumárias.

Não tendo relação imediata com a questão cronológica, mas a ela vinculada, a solução curricular tanto para a História brasileira, como para a História americana guarda certa naturalização e reducionismos que patenteiam a distância entre o que a disciplina ou o título dela prometem e o que efetivamente ela oferece.

O eurocentrismo nas grades curriculares

Segue-se outro problema. De onde o currículo deve partir? Em torno de qual centro ele deveria orbitar? Ou não deve ter centro algum? Quem deve assumir o protagonismo, qual deve ser o lugar de fala? Devemos ensinar História sobre uma perspectiva mais nacional, mais transnacional, mais pós-colonial ou mais global? [1] Um currículo não deve ser uma camisa-de-força, não deve ser único. Poderíamos ter currículos mais plurais e mais diversificados. Contudo, o que observamos é um padrão que tem se mantido. Alguns cursos de História possuem características diferenciadas, como na PUC-SP, para ficar em um exemplo, no qual existem disciplinas como História Americana antes da Conquista Europeia; Guerras, Totalitarismo e cultura de massa: o fragmentado mundo contemporâneo; Memória e Patrimônio; História Contemporânea, a Construção do Universo Burguês, entre outras, que de algum modo fogem do marasmo característico em nossos currículos. No geral, entretanto, permanecem os tradicionalismos, as disciplinas habituais, a ênfase cronológica das obrigatórias e a marca do eurocentrismo [2].

Recentemente, ressurgiu o debate de uma História Global [3]. Deveriam os currículos contemplar essa História mais geral? Incluir a obrigatoriedade de ensinar Ásia e África seria uma sinalização nessa direção, de ensinarmos e pesquisarmos todos os continentes? Ao lado desse debate, há outro não menos importante: o do pós-colonial. Dipesh Chakrabarty tem sido bastante evocado por sua proposição de que é preciso provincianizar a Europa, retirando-lhe a centralidade e o protagonismo nas narrativas históricas dos países periféricos [4].

Observar os currículos de História em uso atualmente, não deixa dúvidas de que há um apagamento do Brasil como um sujeito e uma referência importantes, que cede seu lugar ora a uma concepção tradicional e mais geral de História, de modo que tudo é História e o Brasil é apenas mais uma parte dela, ora à Europa como centro em torno do qual deve orbitar toda a História. Ou seja, se levarmos em conta o nosso lugar de fala e de pertencimento, verifica-se a inserção do Brasil de forma subalterna, como uma pequena parte dessa História, um ator secundário, um lugar cujo sentido histórico é preenchido graças à dependência da ação colonizadora (política, econômica, cultural e intelectual) da própria História europeia.

Examine-se o espaço conferido à História do Brasil em nossas grades curriculares e compare-se com o espaço destinado à História europeia. Temos 4 ou 5 disciplinas obrigatórias de História do Brasil em nossos currículos, caso os alunos façam mais 2 disciplinas optativas de Brasil, isso representaria aproximadamente 10% de sua formação dedicada à História de seu próprio país. O tempo dispensado ao estudo da História do Brasil é praticamente o mesmo gasto com a história da Europa. Espaço muito inferior será conferido à África e à Ásia. Como corrigir essas distorções? Seriam elas importantes? Sinalizam ou são indício que alguma questão maior, de fundo? Acho que sim. Parece-me que seguimos colonizados pela periodização e pelo sentido conferido pelos europeus à História. Situação bem diferente de currículos mexicanos, americanos, chilenos ou argentinos. Essa subalternidade do Brasil como referência talvez explique a qualidade das divulgações históricas entre nós e a relação desinteressada pela História no ensino escolar e na sociedade brasileira como um todo. Provavelmente, a raiz desses problemas deva ser buscada no modo são pensadas e construídas nossas matrizes curriculares.


Julio Bentivoglio – Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo em 2002. Foi professor substituto na Universidade Estadual de São Paulo (UNESP-Franca), da Universidade Federal de Goiás (Campus Catalão) e atualmente é professor associado de Teoria e Metodologia da História na Universidade Federal do Espírito Santo. Coordenou a publicação de traduções de Droysen e Gervinus pela Editora Vozes e de Chladenius pela Editora da Unicamp.


Notas

[1] A esse respeito vale conferir o artigo de DAVIS, N. Z. Decentering history: local stories and cultural crossings in a global world. History & Theory, v.50, n.2, p.188-202, 2011.

[2] Tal é o diagnóstico já feito em LANDER, Edgardo (org). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000.

[3] Ver, sobretudo a introdução de IGGERS, Georg G.; WANG, Q. E. & MUKHERJEE, Supriya. A global history of modern historiography. Harlow: Pearson Longman, 2008.

[4] CHAKRABARTY, D. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. Princeton: Princeton University Press, 2013.

 

http://www.cafehistoria.com.br/curriculo-de-historia/




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