Criticar a escola sem partido

Criticar a escola sem partido

CRITICAR O ESCOLA SEM PARTIDO NÃO SIGNIFICA DIZER QUE ESTÁ TUDO BEM COM A ESCOLA

Pretendo neste texto defender que a crítica do campo da educação ao Escola sem Partido não é um sinal de satisfação com a instituição escolar. Nossas instituições precisam sim de mudanças, de novas ideias, de um novo pensamento que construa novas possibilidades de se fazer educação. Mas, por favor, sem aberrações. A mudança precisa vir no sentido de evolução para a vida em um mundo múltiplo, diverso e complexo. Mais retrocessos não podem, e não serão, aceitos.

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Como estudante e pesquisador da Educação, estive nas últimas semanas envolvido e instigado nas discussões sobre o “Escola sem Partido”. Praticamente toda a área da educação sentiu-se no dever de posicionar sobre esse conjunto de ideias – recuso-me a chamar de projeto -, e na sua grande maioria, ou quase unaminidade, o fez no sentido da necessária crítica ao ideal da Escola sem Partido.

Li alguns textos, favoráveis ao programa, chamando os educadores de reacionários; pessoas que estão sempre sonhando, sugerindo, pensando, mas que na proposta de uma mudança, reage com um discurso do tipo “Não venham mexer nas minhas instituições”. Quero aqui defender o contrário: nossas instituições precisam sim de mudanças, de novas ideias, de um novo pensamento que construa novas possibilidades de se fazer educação. Mas, por favor, sem aberrações. A mudança precisa vir no sentido de evolução para a vida em um mundo múltiplo, diverso e complexo. Retrocessos realmente não podem, e não serão, aceitos.

É necessário também, como parte do debate, criticar a escola; seus fundamentos, suas pretensões, sua estrutura. É importante que essa confusão se esclareça: criticar a aberração do "Escola sem Partido" não significa que a educação como campo de pensamento está satisfeita com a escola. O discurso que acusa a educação de um tipo de reacionarismo não é nada mais do que parte integrante da desonesta construção retórica que o programa propõe; e que chega ao seu auge no momento em que diz querer neutralidade ideológica na escola.

Em educação, senhores, não existe neutralidade. O próprio discurso defensor da neutralidade está embebido de ideologia. O neutro, para os idealizadores, nada mais é do que uma imposição de seu pensamento, de seu ideal, do seu próprio - por que não? - partido.

Hannah Arendt, nas suas belas reflexões sobre o acontecimento em Little Rock, em 1959 nos E.U.A. (escreverei um texto ainda sobre essas reflexões, prometo), nos lembra que, SIM, os pais tem, e devem mesmo ter, o direito de criar seus filhos como acharem adequado. Esse é, para ela, no que concordo, um direito privativo (não exclusivo) da família, da esfera privada do lar e da criança. Mas existe um limite, que reside em apenas um fato: o da educação ser obrigatória.

No momento em que a educação institucional, controlada por um Estado, se torna obrigatória, impõe-se o limite ao direito privado dos pais; a criança não é mais parte apenas da esfera privada da família - ela é também um futuro cidadão. Como futuros cidadãos, também devem ter sua educação e formação reivindicadas pelo corpo político. Neste momento em que a criança tem como uma obrigatoriedade frequentar essas instituições, quase sempre públicas, o Estado se responsabiliza pela sua educação. O direito deste Estado, e do corpo político como um todo, de preparar seus futuros cidadãos, de definir os temas a serem estudados, de delimitar profissões a serem promovidas, pois serão necessárias à nação, entre outros, é inalienável. Isso não só na educação pública, da qual o Estado é responsável direto, mas também nas escolas privadas, pois a educação como um todo se situa na esfera pública. Ela propõe e funciona para preparar para a vida, para o “fora”, para a sociedade.

Ora, se há Estado, não há neutralidade. O Estado é ocupado e dirigido por equipes de governos escolhidos politicamente, por ideologias, por escolhas éticas. O tópico principal do programa do “Escola sem Partido” é “defender a neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. Isso não pode nem ser considerado uma frase. É pura incoerência, é anti-política, quase anti-linguagem. O Estado nasce como instituição para ser ocupado por governos que assumem sua condução por ideologia.

Isso é o que torna o programa uma aberração: a tentativa de impor esse ideário começando pela educação de suas crianças, o elemento mais político que existe em uma sociedade. Defendem seus idealizadores que a escola não pode ser local de formação moral, já que essa formação deve vir dos pais.

Sem perceber, estão dizendo que quem está falhando são os próprios pais. Ora, a escola não nasceu para ser e nunca se propôs a ser local de formação moral. Será que, com a indiferença que ela é tratada, o déficit nos investimentos e seu abandono pelo poder público, ela pode dar conta de, além de oferecer os conteúdos e a socialização, oferecer ainda formação moral? Não, senhores, o professor não tem tempo de formar a moral de seus filhos. Ele tem que sair de suas 6 aulas de 50 minutos e almoçar correndo, algumas vezes dentro do ônibus, para chegar à outra escola onde dá aulas à tarde em tempo. Ele precisa fazer as chamadas, aquietar e disciplinar os seus filhos, dar todo o conteúdo que será cobrado dele depois; e ainda muitas vezes ser também o psicólogo e o amigo. Tudo isso por um salário nada convidativo.

Se vocês acreditam que há doutrinação moral nas escolas, a culpa é de vocês mesmos. Vocês, “famílias tradicionais”, são os responsáveis por isso! E estão falhando!

Para que houvesse qualquer tipo de coerência em um programa como esse, a primeira e fundamental bandeira deveria ser a luta pela não obrigatoriedade da educação. Sim, sendo a educação facultativa, a criança voltaria a ser primordialmente de direito privado da família, do lar. Enviá-la ou não a uma instituição, mandá-la ou não à “doutrinação” seria de livre e espontânea escolha dos pais. Aaah! Mas isso daria trabalho demais, não é? Porque o que cobra, no fim, não é o vestibular, não é a profissão; o que cobra é a vida! A família precisaria preparar suas crianças, dar seu jeito de apresentá-la aos conteúdos, à vida social, à história do mundo, à biologia e anatomia, a tudo que ela precisasse, tudo que a vida exige.

Já imaginaram? Vocês, pais, responsáveis por tudo isso? Tendo ainda de lutar contra a influência das tecnologias? “Melhor não, né?”, vocês pensam. Bem melhor é ter uma instituição e o Estado para lá largá-los e que cuidem dessas responsabilidades; e depois apenas cobrá-los para que não sejam ideológicos. Aqui o programa se denuncia hipócrita.

Tudo é ideológico. Na escola, ainda mais. Os horários, os currículos, as avaliações...tudo! O conhecimento científico, do qual a escola se diz portadora e transmissora, é ideológico. É resultado de teoria, de visões de mundo. Não há educação, não há política, não há, enfim, vida social, sem ideologias.

O programa requer do professor coisas do tipo “apresentar de forma justa as principais versões culturais e sociais”. Ele é muito solícito ao apresentar O QUE quer, mas não se responsabiliza a dizer o COMO. Qual seria a “forma justa”? Quem seriam os fiscais? Os próprios alunos? Ou a figura retrógrada e sombria dos censores? É esse o objetivo final, senhores?

Pensar o fim da perspectiva crítica nas escolas é por si só extremamente ideológico. É buscar a formação de reprodutores, ao mesmo tempo em que busca desviar-se da responsabilidade de estarem, os próprios pais, em casa, com suas crianças. Repito: a única forma do programa ganhar algo em coerência seria lutar pela bandeira da educação não obrigatória. Aí estaria tudo em suas mãos, não é? Creio que seja o único modo dos defensores de um programa como este perceberem que a criança não é tábula rasa. Não são, como o programa diz, “audiência cativa”. Não são seres passivos. Seria a única forma, talvez, de perceberem que a criança terá sexualidade independente da formação moral. Terá posição política. Questionará as normas morais. Seria uma excelente lição.

Voltando ao título do texto, é necessário que fique claro que não se trata de uma defesa acrítica da escola como instituição. A escola atual se porta, de forma geral, como reprodutora do discurso científico; essa ciência do empírico, do exato, da prova, essa ciência que não pode e não deve duvidar de nada. Essa ciência que, confundida e fundida na tecnologia, justifica, prova, controla e determina verdades.

O que pode estimular a discussão, o debate, e inclusive que torna possível o respeito ao diferente, a quebra de estruturas prontas, a visualização do possível, é somente a dúvida; o questionar.

Na escola dificilmente se questiona. As estruturas disciplinares, hierárquicas, só fazem solidificar o que é espontâneo. O “jeito certo de falar”, o “jeito certo de se comportar”. Ela impõe, separa, fecha possibilidades. A escola é cada vez mais refém da mentalidade técnica. E por que é assim? Ora, adivinhem! Porque ela é essencialmente I-D-E-O-L-Ó-G-I-C-A. Ela veio-a-ser assim, a partir de um modelo, de uma forma de ver o mundo, de interesses. A escola escolhe suas verdades, escolhe uma perspectiva ética, e obscurece - ou nega - as outras.

Tanto é assim, que, para mim, pesquisador-educador, a esperança está cada vez mais na educação que foge da escolarização.

Na constelação que forma a realidade, a escola escolhe apenas uma estrela para brilhar. O que o “Escola sem Partido” quer é obscurecer ainda mais, tirar o já opaco brilho desta única e solitária estrela. Contra isso, sim, reagiremos firmemente.




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