Crise produzida

Crise produzida

Governo produz crise da Previdência para cortar direitos sociais”

Autora de tese sobre o tema, Denise Lobato Gentil garante que sistema é rentável

Reportagem: Pedro Muxfeldt

Adefesa de uma reforma da Previdência é tão antiga quanto ela própria. A formatação da Seguridade Social pela Constituição de 1988, que visava implementar os preceitos do Estado de bem-estar social no país, foi alvo de críticas ainda na gestação, quando o projeto era discutido pela Assembleia Constituinte. De lá para cá, o discurso quanto à crise no sistema previdenciário se intensificou e todos os governos dos últimos 20 anos deram sua contribuição. FHC chamou aqueles que se aposentam antes dos 50 anos de “vagabundos”, o PT expulsou deputados— muito deles viriam a formar o Psol — que não concordaram com a reforma feita no primeiro ano do governo Lula, o ajuste fiscal proposto por Dilma restringiu acesso ao abono salarial, seguro-desemprego e auxílio-doença.

Em resumo, a defesa da reforma desde 1988 está baseada na projeção de um futuro sombrio para a sustentabilidade da Previdência por conta do descompasso entre a baixa quantidade de novos contribuintes e o crescimento do número e da longevidade dos aposentados. Para corrigir o problema, faz-se necessário o endurecimento das regras de acesso à aposentadoria, com aumento no tempo de contribuição e estabelecimento de idade mínima para se receber o salário integral.

Há, no entanto, quem defenda que a Seguridade Social está longe de viver uma crise financeira. É o caso da professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE-UFRJ), Denise Lobato Gentil.Autora de tese de doutorado sobre o tema, ela alega que o déficit é falso e produzido pelo próprio governo federal com o objetivo de justificar uma reforma que cortaria direitos sociais previstos na Constituição. Para isso, as contas previdenciárias são alvo de maquiagens, desvios e desonerações que, acompanhadas por uma cobertura midiática que apenas replica o discurso dominante, pintam um cenário nebuloso para um sistema sadio.

Em seu trabalho, Denise mostra como a Previdência é, na verdade, superavitária, pois dispositivos constitucionais estabelecem que, além das contribuições dos ativos ao INSS, a Seguridade Social seria financiada por parte da arrecadação com a Cofins e a CSLL. Até 2007, também fazia parte deste cálculo a CPMF, que foi extinta pelo Congresso. Curiosamente, na mesma PEC 89/2007 que prorrogava o imposto do cheque foi aprovada a manutenção do instrumento de Desvinculação das Receitas da União (DRU), outro dos causadores do déficit previdenciário na visão da professora.

Criada em 1994, a DRU é um mecanismo que permite ao governo federal usar livremente, fora dos ditames do Orçamento, 20% de todas as suas receitas tributárias. Assim, dinheiro que deveria ser destinado à Previdência e investimentos em saúde e educação, por exemplo, podem ser utilizados para a formação de superávit primário e pagamento da dívida pública. Na prática, os desvios superam o limite de 20% e, por isso, já há proposta — que vem do governo Dilma e foi mantida por Temer — para ampliar o teto para 30%. Resultado: mais dinheiro da Previdência que não vai para ela.

Mais da metade das desonerações foram de receitas da Previdência.

 

Por fim, há também as desonerações. Somente em 2015, o governo federal concedeu R$ 283 bilhões em isenções fiscais para empresas. Do montante, R$ 157 bilhões eram receitas da Seguridade Social. É com base nestes três fatores que a economista é categórica. “Não faz sentido um governo dizer que existe déficit quando ele mesmo renuncia a receitas que alimentam a Previdência. O que ele está fazendo é produzir o déficit para justificar uma reforma. Ele cria as condições para cortar direitos sociais. Quem vive crise fiscal não abre mão de receitas. O governo espanca a lógica quando faz isso. Além disso, o governo vem acumulando uma sequência de resultados primários que chegou a R$ 1 trilhão no final de 2015. Um governo que acumula um montante dessas proporções não tem falta de dinheiro. O que ele tem é um conjunto de instituições funcionando não para atender as necessidades do povo, mas para atender as necessidades do mercado”, afirma ela.

Essa equação se torna ainda mais perversa quando se analisa para onde vão os recursos desonerados. A aposta do governo federal, desde o primeiro mandato de Dilma Rousseff, era estimular o investimento privado nacional. Porém, o resultado desta política esteve longe do esperado. “A presidenta fez uma série de desonerações, tentou corrigir o câmbio, fez leilões de rodovias, portos e aeroportos e nada disso acelerou o investimento. Pelo contrário, o investimento foi caindo absurdamente”, diz Denise.

“E o que é pior. Essa renúncia fiscal não se converteu em benefícios para a população. O que as empresas fazem é aplicar o dinheiro em títulos da dívida que o próprio governo oferta com a maior taxa de juros do mundo. Ou seja, recursos que deviam ser destinados aos que mais precisam foram renunciados para servir de margem de lucro para empresas e essas mesmas empresas recebem o dinheiro de volta em transferência de juros”, completa.

Por conta disso, a professora enxerga que a discussão sobre a reforma da Previdência é fruto na realidade de uma disputa entre capital e trabalho pelo Orçamento. Enquanto a economia ia bem, o lucro das empresas foi mantido — e aumentado — mesmo com políticas de valorização do salário mínimo e a luta pelos recursos públicos não se deu de forma tão intensa. Com a crise, bancos e indústrias querem garantir seus dividendos e, para isso, atacam a Seguridade Social, maior gasto do governo depois do serviço da dívida.“O crescimento dos salários achatou a margem de lucro das empresas e elas agora exigem o rebaixamento dos salários. E a única forma de baixar salários é provocando recessão. Então, o governo passa a adotar uma política recessiva desde o princípio, entrega tudo que os bancos pediram, como a previdência dos servidores públicos, a reforma de 2015 de Joaquim Levy e só não fez a reforma da Previdência porque foi atropelado pelo impeachment”, analisa ela.

 

“Escutem a ira do povo”, escrito em cartaz durante manifestação contra a reforma trabalhista na França. Foto: Charles Platiau/Reuters

Essa disputa e o ataque aos direitos sociais como forma de resolvê-la em prol do capital, aliás, não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Denise mostra que o mesmo processo tem acontecido em diversos países emergentes, como Argentina e Índia, além de se dar também em potências europeias como a França, onde o Estado de bem-estar social, apesar de estabelecido há mais tempo, vem sendo reduzido desde a crise de 2008.

“Acaba-se interpretando que essas crises são construídas no capitalismo em momentos em que há queda forte na taxa de lucro para derrubar salários e desbaratar o sistema de proteção social. Ter um sistema de proteção social significa carga tributária mais alta para mudar o fluxo da renda de pessoas que ganham muito para as que ganham menos. Então, provocar essa crise, exigir o ajuste fiscal significa quebrar essa fonte de arrecadação e mudar a vinculação de receitas”, diz.

 Dessa disputa, também toma parte a imprensa. Apesar de muitos economistas como Denise apontarem que a crise da Previdência é um falácia, pouco ou nada são ouvidos enquanto os argumentos do governo e das associações patronais pela reforma do sistema são fartamente divulgados. A professora aponta três grupos com muito interesse na manutenção dessa desigualdade de informação, que leva inclusive muitos trabalhadores a aceitarem a necessidade de mudanças e implementação de regras mais duras.

O primeiro — e principal deles — são os bancos e seus fundos de previdência. “Grande parte dos ativos dos bancos estão na forma de títulos da dívida e eles têm interesse na taxa de juros elevada. Mas é preciso assegurar uma reserva de recursos para cobri-la e são necessários cortes de gastos. Além do mais, os fundos de previdência dentro dos bancos querem cada vez mais a privatização da saúde e da Previdência. Em determinada época, os fundos de previdência estagnaram e era preciso fazer com que os servidores e os atendidos pela Seguridade migrassem para o setor privado. Por isso, eles fazem campanha dia e noite de que estamos com a Previdência quebrada”, afirma Denise.

Junto a eles, estão as demais empresas e pessoas de classe média e alta que também dispõem de títulos da dívida e, por fim, muitos economistas responsáveis por embasar o discurso conservador. “Alguns de fato acreditam na crise fiscal, mas grande parte está a serviço desses interesses. O discurso de descontrole das contas públicas cai como uma luva para uma fatia da população com grande ascendência social e se passa a aceitar o dogma de que temos uma dívida explodindo, ainda que ela seja baixíssima perto de outros emergentes”, diz. Para a economista, o bombardeio midiático sobre o déficit previdenciário convence boa parte da sociedade.

“Uma mentira repetida tantas vezes, com tanta intensidade e vinda de intelectuais que praticamente falam inglês torna esse discurso quase inquestionável. Ajuste fiscal e reforma da Previdência são para criar um exército de reserva de desempregados que garanta a queda dos salários”.

governo interino de Michel Temer pretende fazer uma ampla reforma da Previdência. Entre as propostas, que devem ser apresentadas ao Congresso somente depois das eleições municipais de outubro, estão cortes na pensão por morte e no Benefício de Prestação Continuada e equiparação de regras entre homens e mulheres. Além disso, o presidente em exercício já sinalizou intenção de estabelecer idade mínima de 70 anos para pedir a aposentadoria. A vontade política do governo federal em realizar a reforma é clara. No entanto, Denise Gentil acredita que poderá ser mais difícil Temer mexer na Previdência do que Dilma.

Michel Temer quer idade mínima para se aposentar. Foto: Beto Barata/PR

“Ainda não se sabe do que o governo Temer será capaz enquanto for interino. Imagino que, por enquanto, ele vai fazer pequenas concessões, como aumentar o Bolsa-Família, amparar o Rio de Janeiro, renegociar a dívida dos estados. Em todos os pontos em que o Dilma endureceu, Temer entrou flexibilizando. Mas pode ser só uma agenda para passar o impeachment e depois ele fazer realmente tudo que está na Ponte para o Futuro. A boa notícia é que agora tem oposição, antes tudo passava sem reação nenhuma. Hoje se vê a sociedade reagindo”, aponta a professora da UFRJ.

Ela também acredita que Dilma, caso seja reconduzida ao cargo pelo Senado, também não levará adiante a ideia de fazer a reforma previdenciária. “O que ela fez antes foi por necessidade de se legitimar numa política de alianças que deu completamente errado. O espaço do Estado passou a ser ocupado pelo crédito bancário. Parte da renda da população passou a ir para os bancos via plano de saúde, crédito universitário, consignado e os bancos públicos foram menos capitalizados do que com Lula. Houve um recuo total do aparelho estatal em diversas áreas. Agora, se Dilma continuar o que vai fazer ela voltar para essa agenda?”, questiona.

Por fim, Denise observa que a luta contra a reforma da Previdência está inscrita numa pauta mais ampla dos trabalhadores contra o ataque a direitos sociais e fundamentalmente a uma discussão sobre o modelo de desenvolvimento que se quer para o país. Somente assim será possível retomar o crescimento de maneira sustentada e com justiça social. “Os economistas sabem muito bem fazer uma economia crescer, mas tem que ter condição política para isso. Sem intervenção do Estado, sem recuperar o investimento público, sem fazer políticas sociais, em discutir reforma urbana, reforma agrária, não dá. É preciso debater a construção dessa desigualdade brutal e histórica. Tem que discutir a propriedade. Como pode termos tantos imóveis vazios e um déficit habitacional tão grande nas regiões metropolitanas? Isso é falta de Estado, temos um Estado defensor da propriedade. É inaceitável uma coisa dessas”, conclui.

 

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