Criar consciência
‘Educação tem que criar consciência, não ser voltada para o mercado’, diz professora norte-americana que se encantou pelo Brasil
Débora Fogliatto
“Eu sou dos Estados Unidos e gostaria de começar minha fala pedindo desculpas a todos vocês, porque os países de vocês certamente sofreram com o imperialismo do meu país”. Foi assim que a professora norte-americana Ruth Needleman, aposentada da Universidade de Indiana, começou sua fala em evento do Orçamento Participativo no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Interessada em democracia popular, economia solidária, movimento sindical e trabalhista, Ruth não é nova no Brasil. Pelo contrário, de tão apaixonada pelo país, já aprendeu português, língua em que, inclusive, respondeu a esta entrevista.
A professora dedicou 30 anos de sua vida para lecionar para metalúrgicos da pequena cidade de Gary, cuja maioria da população é negra e onde há altas taxas de desemprego. Em 2014, ela passou a se interessar mais especificamente por Canoas, na Região Metropolitana, ao participar do Fórum Mundial de Educação e conhecer programas como o Orçamento Participativo, Prefeitura na Rua e o Cidades da Solda. Este último, recentemente implantado, oferecerá cursos de Soldador de Estrutura e Soldador de Tubulação para os moradores da cidade.
Em entrevista ao Sul21, ela fala sobre os motivos que provocaram seu encanto pelo Brasil e pelos programas sociais aqui desenvolvidos. Crítica ao neoliberalismo, Ruth ainda fala sobre as perspectivas para as eleições em seu país, o racismo existente tanto lá quanto aqui e, principalmente, a importância da educação no processo de construir cidadania e lutar por direitos.
Sul21 – Como a senhora se interessou pelo Brasil? E como ficou sabendo sobre esse projeto desenvolvido em Canoas?
Ruth Needleman – Há muito tempo que estou fazendo viagens para o Brasil. A primeira foi em 1992, quando eu me reuni com o senhor Paulo Freire, professor e educador. De lá, eu decidi, como professora, levar alguns ensinamentos para os Estados Unidos, para meus alunos conhecerem os movimentos sociais. Meus alunos são todos trabalhadores, a maioria de aço, metalúrgicos. Eu fiz contatos com os metalúrgicos daqui, comecei a conhecer o PT, os movimentos, o MST, Canoas, São Leopoldo e várias vezes vim até aqui. E em 2014, eu estava visitando o Norte, onde ministrei uma aula de mestrado da Universidade Federal de Fortaleza, e quando eu cheguei aqui, a Maria Eunice [Dias Wolf, Secretária Municipal de Desenvolvimento Social de Canoas], que tinha conhecido antes, começou a me mostrar seus programas e esses programas despertaram uma energia, uma inspiração, porque a democracia é uma coisa que nós não conhecemos. Nós pensamos que sim, e eu contei uma história, de que eu estava dando uma aula e pedi aos alunos para darem um exemplo de uma experiência democrática nos Estados Unidos. O silêncio foi total, até que um aluno disse: “seria o voto”? Mas o voto está desaparecendo para os mais liberais dos Estados Unidos.
Então quando eu vi o Prefeitura na Rua, a economia solidária, que eu já conhecia, mas era a relação de todos, o que eles dizem no programa democrático, um sistema novo de participação democrática. Eu pensei: “há tantas coisas para o mundo aprender”. Escrevi artigos, um sobre Canoas e um sobre os quilombos, e estava muito impressionada. É a inter-relação desses programas, que realmente transformam a pessoa em ativista, militante e a pessoa que pode inserir-se na política, no governo e fazer mudanças.
Sul21 – E na sua cidade, ou nos Estados Unidos em geral, a senhora não percebe esse interesse pela militância?
Ruth – Acho que nosso problema realmente é a consciência do povo, porque o povo norte-americano está desesperado. Não tem sonho, não tem visões, só veem que as coisas pioram. Os pobres cada vez mais pobres e os ricos, cada vez mais ricos. E a cidade onde eu moro é uma cidade onde 85% são afro-americanos. A taxa de desemprego lá é de 45% e eu milito com uma federação de organização religiosa, a North West Indiana Federation of Interfaith Organization, e estamos lutando por empregos. Não alcançamos, porque a cidade é muito pobre. A cidade tem uma legislação que determina que se alguém quer construir lá, tem que dar empregos para as pessoas locais. Mas a maioria dos projetos não faz isso. Então agora mesmo, a universidade onde eu leciono há 30 anos estava construindo um edifício enorme de 45 milhões de dólares. Nos reunimos várias vezes com a direção da universidade, eles prometiam que iam ver empregos para os mais pobres que vivem lá na cidade. Nenhum. Nenhum. Então fizemos piquetes às segundas pela manhã e nos reunimos com a prefeita, com todos, e não adiantava. Mas parece que agora, toda essa pressão dessa organização abre um pequeno caminho e por isso, penso que, especialmente esse programa Cidade da Solda poderia ser inserido lá, onde há todas as pessoas desempregadas, a economia solidária tem alternativa. E por isso estou aqui.
Sul21 – A senhora acha que poderia tentar levar isso para sua cidade?
Ruth – Exatamente. Estou organizando uma delegação para trazer para cá em junho, talvez com nossa prefeita, com os líderes dirigentes dessa organização, pessoas dos sindicatos, para que eles possam ver ao vivo as possibilidades e ausência de possibilidades em uma alternativa que realmente paralisa o povo.
Sul21 – Esta organização tem caráter religioso?
Ruth – É uma coalizão de padres, e eu sou uma das duas pessoas brancas entre todos os integrantes. A maioria é religiosa, eu não sou, mas como esse grupo estava lutando, eu vou onde há luta. A presidente organizadora dessa instituição quer vir para cá. Essa é uma pequena organização, mas tivemos uma vitória em dezembro do ano passado. A prefeita anunciou que ia construir uma espécie de prisão para imigrantes perto do aeroporto, para imigrantes sem papéis, para depois deportar. E nós, com o apoio de grupos de outras cidades, em doze dias, com várias mobilizações, fizemos com que eles desistissem. Decidiram cancelar, porque a oposição era muito grande, então às vezes esse grupo pode colocar muita gente na rua.
Sul21 – É uma cidade pequena ou grande?
Ruth – A cidade há duas décadas tinha 188 mil pessoas. Agora tem 78 mil, porque todos os brancos fugiam para os subúrbios, quando um prefeito afro-americano foi eleito, o racismo lá é enorme. Agora, nos Estados Unidos, temos um problema que é a polícia, que está matando os jovens afro-americanos, como se tivessem permissão para apenas matar sem justificativa. Eu fiz uma exposição em Chicago das minhas fotos, especialmente sobre os quilombos e favelas do Brasil, e havia uma foto de uma favela no Rio, onde a polícia entrava segurando armas enormes. Não é igual, mas há mais semelhanças do que diferenças em relação ao tratamento de afro-descendentes entre o Brasil e os Estados Unidos. Nós não temos quilombos, mas temos os guetos. Eu acho que os guetos são o equivalente, porque foram formados por pessoas que fugiam do Sul, para conseguir trabalho industrial, e as cidades foram tendo partes afro-americanas e agora você pode ver, mesmo as cidades majoritariamente afro-americanas são governadas por brancos. É como uma nova colônia. Eu acho que a legislação sobre os quilombos também tem que nos dar inspiração na auto-governância, na auto-suficiência.
Eu estava aqui em Canoas, no quilombo Chácara das Rosas, e quando conseguiram o Minha Casa, Minha Vida foi incrível, porque estavam morando em pedaços de madeira. E de repente têm casa, água, têm eletricidade, mas eu acho a tarefa mais importante, e que acho que Canoas tem se superado, é na educação popular, porque pode dar à pessoa uma casa, mas essa casa pode se desfazer rapidamente se as pessoas não se sentem sujeitos do processo político. Eu sou muito aficcionada por esse assunto. Eu fiz um programa especial lá na Universidade de Indiana para trabalhadores, e meu objetivo era abrir os olhos deles, desmistificar todas as politicas neoliberais, porque estavam infiltradas na mente deles. Esse tipo de educação tem que ser de atribuir consciência, e não apenas voltada para o mercado. Há dois anos, o prefeito de Canoas, Jairo Jorge, disse no Fórum Mundial da Educação, que a educação tem que ser para a vida, não para o mercado. Nos EUA, é tudo voltado, desde o primeiro grau até a universidade, são todos voltados para o mercado.
Sul21 – A senhora acompanhou aqui também os movimentos sociais de sindicatos. Nos EUA, os sindicatos são mais fracos ou existe movimento sindical assim como aqui?
Ruth – Temos sindicatos, que representam 7% dos trabalhadores do país. Lá, nos sindicatos, há muita hierarquia, muita burocracia, os dirigentes pensam mais em guardar sua vaga do que educar. E não prestam atenção na educação. Falo de uma educação política para votar, para organizar, para ter uma compreensão crítica, tem medo disso. Eu tive dificuldades nesse sentido. Eu lecionei com sindicatos e trabalhadores de sindicatos por 30 anos, e era um programa de estudos laborais, mas era tão difícil, porque sempre queriam guardar o que tem. Agora, com o desemprego grande, uma pobreza enorme, a maioria dos sindicatos pensam só nos membros, vamos guardar, guardar e não tem mais interesse no povo e por isso, não tem mais poder ou força, porque só representam uma pequena parte.
Sul21 – Aqui os sindicatos parecem ser diferentes, os sindicatos pelo menos têm representatividade maior na categoria.
Ruth – É, eu falei uma hora e meia ou duas com o Claudir Nespolo, da CUT. E realmente eu gostei muito da sua análise do momento atual, porque é uma conjuntura perigosa pra vocês.
Sul21 – Sim. E as eleições deste ano nos Estados Unidos podem possivelmente afetar esse quadro aqui no Brasil também?
Ruth – Sim, agora estamos em um momento muito importante nos EUA. E parece que o socialista Bernie Sanders está ganhando e ganhando espaço entre os Democratas. E em Iowa, no Hamsphire, parece que ele estará na frente da Hillary Clinton na disputa interna do partido.
Sul21 – Mas ele poderia ganhar dos Republicanos?
Ruth – Não, mas ele está fazendo a diferença. Bernie tem mudado totalmente o discurso do país. Agora as pessoas estão pensando em uma visão diferente. Uma economia que funciona para a maioria e não para a elite. Já a Hillary quer fazer mais guerra, ela é muito amiga dos neoliberais, ela mesma é muito focada na área financeira.
Sul21 – Nos EUA os dois principais partidos são neoliberais, certo? Não há nenhum partido que se declare de esquerda entre os principais.
Ruth – Não, não. Temos dois partidos. São iguais enquanto economia. No que diz respeito aos programas sociais, há uma pequena diferença. Obama fez algumas boas coisas, como contra a discriminação, mas não fez nada sobre empregos, não fez nada para diminuir o poder dos bancos, nem pra estabelecer a paz. Ainda não fechou Guantánamo, então deixa muito a ser feito. É bom que temos mais saúde com o Obamacare, mas ainda tem 25 milhões de pessoas sem acesso à saúde.