Contrato da dívida vira ‘agiotagem’
Anunciado como solução por Britto e RBS, contrato da dívida vira ‘agiotagem’ com Sartori
Marco Weissheimer
O governo do Estado promove nesta sexta-feira, às 8h30min, no Palácio Piratini, um “Ato de apresentação e mobilização em torno da ação judicial impetrada pelo Estado referente à dívida com a União”. No dia 23 de fevereiro, o governador José Ivo Sartori (PMDB) anunciou que a Procuradoria Geral do Estado (PGE) entrou com uma ação na Justiça Federal, em Brasília, questionando os juros calculados pelo governo federal para a renegociação dos contratos das dívidas de Estados e municípios com a União. Na ação, a PGE argumenta que a cobrança deve ocorrer sobre os juros simples e não sobre os juros capitalizados, o que configuraria a prática de anatocismo (cobrança de juros sobre juros). O Secretário Estadual da Fazenda, Giovani Feltes, classificou como “agiotagem” os termos do contrato de renegociação da dívida com a União. “Nós estamos pagando o que já pagamos. Contraímos uma dívida de determinado valor, pagamos duas vezes e meia o valor que nós contraímos e ainda devemos três vezes o valor da dívida”.
Em agosto de 2015, o governo do Estado anunciou a PGE estava ingressando com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando os termos do contrato da renegociação da dívida do Estado com a União, considerados como abusivos pelo governador José Ivo Sartori. Os anúncios feitos pelo governo Sartori carregam uma ironia histórica. O contrato que hoje é classificado como “abusivo” e “agiotagem”, foi definido, quando de sua assinatura, na década de 1990, como a solução para o problema da dívida do Estado. Ele foi firmado com a União pelo então governador Antônio Britto (PMDB), durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Na época, O hoje governador Sartori era, na época, líder do PMDB na Assembleia Legislativa.
Neste acordo firmado pelo governo Britto com a União não há possibilidade contratual de moratória, não pagamento ou calote de pagamento da dívida. O contrato permite, entre outras coisas, que a União saque recursos da conta do Estado a fim de cumprir o pagamento da parcela da dívida vencida. Segundo o mesmo contrato, se o Estado atrasar em mais de 10 dias o pagamento da parcela da dívida, o índice de correção do saldo da dívida pode ser alterado. Além disso, existe a possibilidade de alteração do percentual de comprometimento da Receita Líquida Real do Estado, que passaria de 13% para 17% durante o período em que permitisse o descumprimento do contrato.
“RS líquida a dívida”, anunciou ZH em 1996
O contrato em questão foi firmado em outro governo do PMDB, em 1998. Além disso, dois anos antes, em 1996, o então governador Antônio Britto assinou um contrato de refinanciamento da dívida do Estado com o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que chegou a ser apontado como a solução definitiva para a crise financeira do Estado que estaria pronto, assim, para ingressar em um novo ciclo de desenvolvimento. José Ivo Sartori, na época, era deputado estadual. Como parlamentar, presidiu a Assembleia Legislativa e foi líder do PMDB no governo Britto.
Esse contrato de refinanciamento chegou a ser apontado na época como a solução para o problema da dívida do Rio Grande do Sul. Na edição do dia 21 de setembro de 1996, a manchete do jornal Zero Hora afirmava: “Rio Grande liquida a dívida”. A principal foto da capa mostrava Britto e o então ministro da Fazenda, Pedro Malan, sorridentes, comemorando o acordo que, segundo ZH, estaria “limpando a ficha dos gaúchos”. Mas o acordo feito por Britto não só não resolveu como acabou agravando a situação financeira do Estado. No final de 2014, depois de pagar mais de R$ 15 bilhões para a União, o Estado ainda devia cerca de R$ 47 bilhões, como reclama agora o secretário da Fazenda, Giovani Feltes.
Outro paralelo histórico que se atualiza com os anúncios feitos pelo governo Sartori conectam, além de antigas manchetes midiáticas que não se cumpriram, as atuais políticas de arrocho salarial sobre os servidores, cortes de investimentos em áreas essenciais como segurança, saúde e educação e os planos de privatização de empresas públicas, tema que deve ocupar um lugar central na agenda política do governo Sartori este ano. Em editorial publicado em 22 de setembro de 1996, no dia seguinte à assinatura do acordo da dívida por Britto, ZH comemorava:
“O refinanciamento da dívida do governo do Rio Grande do Sul, cujo total chega a R$ 8 bilhões, mereceu consideração especial (do governo FHC) por conta dos esforços do governo gaúcho para reduzir os gastos de rotina na administração, em particular aqueles de pessoal. O Rio Grande foi pioneiro na implantação de um programa de demissões voluntárias. Ademais, o governador Antonio Britto vem extinguindo, na medida do possível, cargos em comissão e cargos vagos com o objetivo de enxugar uma folha que tem consumido em torno de 80% da receita líquida. Outro fator importante, incluído nas exigências válidas para todas as unidades federativas, é a disposição de privatizar empresas estatais“.
Com essas medidas e a renegociação da dívida feita por Britto, o Rio Grande do Sul estaria, segundo ZH, “liberado para novos empréstimos e investimentos”. O jornal anunciou nas manchetes da época: “Os gaúchos limpam a ficha”, “Negociação acaba com o pesadelo dos juros altos”. José Barrionuevo, principal colunista político do jornal na época, escreveu (na edição de 22 de setembro de 1996):
“A renegociação da dívida obtida pelo governo Britto liberta o Estado do maior obstáculo ao seu desenvolvimento (…) É uma obra que restabelece o crédito e a credibilidade do Rio Grande, com reflexos nas próximas administrações. Graças à reforma do Estado, considerada modelo pela imprensa nacional, o RS é o primeiro a renegociar a dívida. Não poderia haver data mais oportuna para o anúncio do que o dia em que se comemora a Revolução Farroupilha”.
Contrato foi lesivo para o Estado, diz Auditoria Cidadã da Dívida
Na avaliação da Auditoria Cidadã da Dívida, o atual contrato da dívida, firmado em 1998, no governo Antônio Britto, foi altamente prejudicial para o Rio Grande do Sul, retirando do Estado a autonomia financeira e administrativa prevista na Constituição Federal. Essa perda de autonomia foi denunciada, em 1999, em um trabalho de auditoria realizado pelos auditores externos do Tribunal de Contas do Estado, que criticaram os termos do contrato. A lei federal n° 9.496/1997 obrigou os Estados a alinharem sua gestão às diretrizes da União, que passou a intervir na gestão financeira dos Estados por meio do estabelecimento de metas a serem cumpridas, entre elas a privatização de empresas públicas e o corte de investimentos em serviços essenciais como saúde, educação e segurança.
A gênese do refinanciamento da dívida dos Estados está no compromisso firmado pelo governo Fernando Henrique Cardoso, em 1997 com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Segundo Maria Lúcia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, o refinanciamento da dívida com a União foi um esquema bem pensado, onde os bancos públicos pararam de refinanciar as dívidas dos Estados que foram obrigados a adotar planos de ajuste fiscal, programas de privatização de patrimônio público e assunção de passivos de bancos. O Banrisul foi um dos poucos bancos estaduais a escapar da privatização, o que, só ocorreu, pela derrota de Antônio Britto nas eleições de 1998. Todo esse processo foi marcado por um crescente avanço de concessões ao sistema financeiro, que prossegue até hoje.
A dívida do Rio Grande do Sul está ligada a esse sistema da dívida, assinala Josué Martins, auditor do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul e diretor-presidente do Centro de Auditores Públicos Externos do TCE (CEAPE). Segundo Martins, o Plano Real trocou o controle da inflação pelo super-endividamento do setor público. “O contrato de 1998 se insere nesta lógica e foi muito prejudicial ao Rio Grande do Sul que teve perda de autonomia de gestão sobre as próprias finanças, diminuição da capacidade de investimento e de custeio do Estado. Antes de 1998, a média de comprometimento da Receita Líquida Real do Estado era de 8%. No período entre 1998 e 2014, essa média praticamente dobrou subindo para 15,9%”.
Os termos negociados pelo contrato de 1998, acrescenta o auditor, segue, com pequenas variações, governando o Rio Grande do Sul até hoje. Segundo as contas da Auditoria Cidadã, o “empréstimo” de R$ 26,9 bilhões concedido pela União ao Estado naquele ano já foi pago. “Em valores corrigidos, foram pagos R$ 29,7 bilhões e ainda devemos R$ 47,1 bilhões. Ou seja, já pagamos R$ 2,8 bilhões a mais que o valor emprestado e estamos devendo 1,75 vezes esse mesmo valor. O contrato firmado se transformou numa grande agiotagem”, diz a Cartilha da Dívida Pública do RS, elaborada pela Auditoria Cidadã, que defende a realização de uma auditoria de todo o processo envolvendo esse contrato assinado em 1998.