Contrarreforma do Ensino Médio

Contrarreforma do Ensino Médio

 

Bernardo Caprara   - Sociólogo e Professor

 27 Sep 2016 


Enquanto uns agradecem a chegada da primavera, outros poucos passeiam pelo mundo e o bate-boca da “polarização” política segue alienante, o “novo-velho” Governo Federal anuncia uma Reforma do Ensino Médio. No canetaço, por meio de Medida Provisória, instrumento de imposição autoritária dos interesses do Executivo. Vai por água abaixo a obrigatoriedade das disciplinas de Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física na etapa final da escolarização básica.


A partir da genialidade (só que não!) do Ministro e sua equipe, tudo indica que teremos um Ensino Médio ainda mais fragmentado e fomentador de desigualdades. Desde cedo, os estudantes poderão “escolher” suas trajetórias futuras, seja buscando a universidade ou direto para o mercado de trabalho. Esquece-se que essas escolhas não são livres de constrangimentos. Essas escolhas se dão, em grande parte das vezes, de modo pragmático entre as classes populares. Engraçado é que estes “gênios da educação” são alinhados com aquelas propostas censuradoras, que consideram os estudantes como presas fáceis para a doutrinação ideológica. Eles podem escolher o futuro, têm autonomia para isso desde cedo, mas são facilmente doutrinados?

Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física? Qual a razão de uma escola que promova o conhecimento de teorias, temas e conceitos fundamentais na história do pensamento moderno, que promova a compreensão do sentido da política, do poder, da racionalidade, da argumentação, dos fatos sociais e etc.? Qual a razão de uma escola que promova o conhecimento de práticas corporais, dos benefícios dos diferentes esportes? Qual a razão de uma escola que promova a criatividade, o desenvolvimento estético e artístico? Qual a razão de tudo isso, se nossos representantes (opa, não são, porque não foram eleitos! Isso é uma democracia? Pergunte à Filosofia e à Sociologia…) estão focados em alimentar o mercado de trabalho e apenas isso?

Como pano de fundo, não esqueçamos, encontra-se a desvinculação das receitas da União com saúde e educação, desobrigando o Governo Federal de suas obrigações constitucionais nessas áreas. Direto e reto: vai ter menos dinheiro. Com o suporte de bancos e organizações privadas, interessadíssimas na privatização do ensino público e em transformar educação em mercadoria de uma vez por todas, joga-se para debaixo do tapete as incontáveis discussões e os profundos conhecimentos produzidos por profissionais que dedicaram e dedicam suas vidas para a educação – estudando e praticando. Esses não sabem nada, são ideológicos nas suas pesquisas, como pensam os “gênios” com a caneta na mão. Bancos e empresas privadas ditando os rumos educacionais são neutros e imparciais? São desinteressados?

Vamos mergulhando num pântano de dar asco. A gente vai resistir, é óbvio. Vou seguir produzindo pesquisa sociológica e tentando demonstrar que o que faz um sistema educacional dar errado vai muito além do seu currículo. Vou insistir até o limite das minhas possibilidades. Mesmo profundamente decepcionado, não vou jogar a toalha. Muitos e muitos outros e outras também não vão. Quem vive a educação, quem não sabe fazer outra coisa senão trabalhar com educação, vai seguir lutando por uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade. A roda da História gira sem parar. Apesar deles, amanhã vai ser outro dia. Não podemos desistir.

Não houve erro do MEC. A retórica do Governo Federal tentou amenizar o desgaste que a contrarreforma do Ensino Médio trouxe no debate público. De fato, na Medida Provisória (ressalto novamente, instrumento autoritário do Executivo) não há exclusão de disciplinas [1]. Porém, a retirada da obrigatoriedade de Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física foi concretizada, com a saída da escrita que garantia, na LDB, a obrigatoriedade dessas matérias.

A prática da retórica é comum nos tempos atuais. Mentiras, boatos, retóricas, manipulações de argumentos: joga-se tudo isso nas redes sociais e a coisa pega fogo, mas a informação se perde. A contrarreforma do Ensino Médio segue nefasta pelos mesmos motivos que argumentei em outro texto. Tende a aprofundar desigualdades e fomentar ainda mais uma escola “rica” para as classes abastadas e uma escola “pobre” para as classes populares.

Além disso, e esse é um dos pontos mais preocupantes, na contramão de tudo que se tem debatido, pesquisado e procurado tornar realidade no âmbito educacional, o aperfeiçoamento pedagógico e didático perderá espaço. A partir da contrarreforma, “profissionais com notório saber” poderão exercer a docência sem cursos de licenciatura. Essa é uma pancada em cheio na formação de professores de qualidade. Se é verdade que as licenciaturas têm que melhorar, e melhorar muito, sem formação específica para a docência a situação fica ainda mais dramática. 

Vamos juntar as peças do quebra-cabeça. Primeiro, o governo quer retirar a vinculação constitucional do orçamento da União para com saúde e educação (na prática, menos investimentos nessas áreas) [2]. Depois, coloca nos altos escalões dos Conselhos de Educação diversas pessoas ligadas a entidades empresariais [3]. Dia após dia, com o apoio nojento dos meios de comunicação oligopolizados, ganha força a ideia de que a gestão da educação pública deve passar para as mãos de Organizações Sociais, ou seja, a terceirização da gestão do ensino público (uma privatização branda) [4]. Bancos e conglomerados empresariais enxergam aí uma mina de ouro.

Ato contínuo, muda-se o currículo, retira-se a obrigatoriedade de algumas disciplinas consideradas subversivas ou desnecessárias – afinal, “não pense, trabalhe!”. Autoriza-se que qualquer um com “notório saber” vire professor, critério que será definido pelos sistemas de ensino (burocratas, políticos, conselheiros indicados e afins), fazendo com que apadrinhados ou pessoas alinhadas ideologicamente com o governo de ocasião possam ocupar as fileiras docentes. Não há ponto sem nó nesta contrarreforma.


Referências

[1] http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp…
[2] http://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/dru
[3] http://agenciabrasil.ebc.com.br/…/apos-revogar-escolhas-de-…
[4] http://acervo.novaescola.org.br/…/radiografia-oss-goias-938…

 

sociologia popular




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