Concluída a educação formal

Concluída a educação formal

Alain de Botton: "Uma vez concluída a educação formal, o noticiário é quem passa a nos ensinar"

"Embora muito se fale sobre educação, as sociedades modernas se esquecem de examinar aquele que é de longe o mais influente meio de educar as populações. Não importa o que aconteça nas salas de aula: a mais poderosa e constante forma de educação ocorre nas ondas de rádio e em nossas telas." - Alain de Botton

Atualmente, as notícias estão em todo lugar e as checamos a todo instante. Mas, que impacto elas têm em nossa cultura e em nossas mentes? As notícias ocupam espaço inédito em nossas vidas, porém, não costumamos refletir sobre o impacto delas em nosso modo de agir e pensar. É com base nisso que o escritor suíço Alain de Botton lançou o livro Notícias: manual do usuário, recém-lançado pela editora Intrínseca (julho/2015).

Na obra, De Botton utiliza 25 histórias típicas do noticiário para construir uma análise que suscita questões reveladoras sobre as pessoas, tais como: por que manchetes de grandes desastres nos envolvem tanto? O que torna a vida amorosa das celebridades tão interessante? Por que adoramos ver políticos se dando mal? E por que as notícias sobre revoltas em países distantes costumam ser tão desinteressantes?

Confira abaixo o prefácio de Notícias: manual do usuário

1.
Não vem com instruções, pois supostamente essa é a atividade mais normal, fácil, óbvia e banal do mundo, como respirar ou piscar.

Passado algum tempo, em geral não mais que uma noite, e às vezes bem menos – se estivermos inquietos, talvez apenas dez ou quinze minutos –, interrompemos o que estamos fazendo para ver o noticiário.

Deixamos a vida em suspenso na expectativa de receber outra dose de informação indispensável sobre os mais importantes feitos, catástrofes, crimes, epidemias e complicações amorosas que se abateram sobre a humanidade em qualquer ponto do planeta desde a última vez que paramos para dar uma olhada.

O que se segue é uma tentativa de fazer esse hábito, tão familiar e onipresente, parecer muito mais estranho e perigoso do que o consideramos.

2.
O objetivo do noticiário é nos mostrar tudo aquilo que ele próprio considera mais inusitado e importante no mundo: nevascas nos trópicos; o filho ilegítimo de um presidente; gêmeos siameses. Mas, apesar dessa insistente busca pela anomalia, se há algo que o noticiário habilmente evita focalizar é a si mesmo e a posição predominante que passou a ocupar em nossas vidas. “Metade da humanidade é hipnotizada todos os dias pelo noticiário" é uma manchete que tem poucas chances de algum dia ser noticiada por empresas que em geral se dedicam a relatar o que consideram digno de nota, fora do comum, corrupto e chocante.

O filósofo Hegel já dizia que as sociedades se modernizam quando o noticiário passa a ocupar o lugar da religião como principal fonte de orientação e como referência de autoridade. Hoje em dia, nas economias desenvolvidas, ele alcançou uma posição de poder no mínimo equivalente à que outrora era desfrutada pelas crenças. Os informes rastreiam as horas do dia com precisão assustadora: as manhãs foram transubstanciadas em um boletim matinal, e os fins de tarde, em um resumo das notícias vespertinas. No entanto, o noticiário não se limita a seguir uma programação quase religiosa; ele também exige ser encarado com uma parte da mesma expectativa deferente que um dia alimentou nossa fé. Por meio dele, também esperamos ter revelações, aprender o que é certo e errado, conferir sentido ao sofrimento e entender como funciona a lógica da vida. E aquele que se recusa a participar dos rituais também pode sofrer acusações de heresia.

O noticiário sabe tornar sua mecânica quase invisível e, portanto, difícil de questionar. Ele se dirige a nós com uma voz natural e transparente, sem qualquer referência à própria perspectiva tendenciosa. Ele abre mão de deixar claro que não se limita a informar sobre o mundo, pelo contrário: empenha-se o tempo inteiro em modelar um novo planeta em nossa mente, um que esteja de acordo com suas prioridades muitas vezes bem específicas.

3.
Desde a mais tenra idade, somos ensinados a apreciar a força das imagens e das palavras. Somos levados a museus e informados solenemente de que quadros de pintores há muito mortos podem transformar nossa perspectiva. Somos apresentados a poemas e histórias capazes de mudar nossa vida.

E, no entanto, é raro tentarem nos instruir sobre as palavras e as imagens que sempre ouvimos no noticiário. Considera-se mais importante que sejamos capazes de entender o sentido da trama de Otelo do que de decodificar a primeira página do New York Post. É mais provável nos falarem do significado do uso da cor em Matisse do que nos brindarem com uma análise do impacto das páginas dedicadas a fotos de celebridades no Daily Mail. Não somos estimulados a contemplar como nossa visão de mundo pode ser alterada depois de um mergulho no Bild ou na revista OK!, no Frankfurter Allgemeine Zeitung ou no Hokkaido Shimbun, no Tehran Times ou no Sun. Nunca somos instruídos sistematicamente quanto à extraordinária capacidade que os meios de comunicação têm de influenciar nosso senso da realidade e moldar o estado daquilo que podemos muito bem chamar — sem qualquer implicação sobrenatural — de nossa alma.

Embora muito se fale sobre educação, as sociedades modernas se esquecem de examinar aquele que é de longe o mais influente meio de educar as populações. Não importa o que aconteça nas salas de aula: a mais poderosa e constante forma de educação ocorre nas ondas de rádio e em nossas telas. Ficamos encapsulados nos bancos escolares durante os dezoito primeiros anos de vida, mas a verdade é que passamos o resto da nossa existência sob a tutela de agências de notícias que exercem sobre nós uma influência infinitamente maior do que qualquer instituição acadêmica seria capaz. Uma vez concluída a educação formal, o noticiário é quem passa a nos ensinar.

É ele que, sobretudo, dá o tom da vida pública e molda as impressões que temos da comunidade para além dos limites de nossa casa. É ele o grande criador das realidades política e social. Como bem sabem os revolucionários, aquele que deseja mudar a mentalidade de um país não vai às galerias de arte, ao Ministério da Educação ou à casa de romancistas famosos; é preciso direcionar o ataque para o centro nervoso do organismo político, a redação das agências de notícias.

4.
Por que nós, o público, não paramos de olhar o noticiário? Tem muito a ver com o medo. Após um período — ainda que breve — longe das notícias, a tendência é nossas apreensões se acumularem. Sabemos muito bem o que pode começar a dar errado, e quão depressa: um Airbus 380 pode sofrer um vazamento de combustível e rodopiar, em chamas, nas águas de uma baía; um vírus de morcego africano pode saltar a barreira das espécies e se infiltrar nos dutos de ventilação de um trem nos subúrbios do Japão; investidores podem iniciar um ataque à moeda nacional; e mais um pai que parecia normal pode dar um fim violento à vida de seus dois lindos rebentos.

Em nossa vizinhança, pode muito bem haver paz e estabilidade. Uma brisa talvez balance os ramos da ameixeira no jardim, e a poeira pode se acumular aos poucos nas prateleiras da sala de estar. No entanto, sabemos que essa tranquilidade não reflete a realidade caótica e violenta da vida, e, assim, depois de um tempo, a calmaria tende a se tornar preocupante. A consciência da possibilidade de uma catástrofe explica a leve pulsação de medo que podemos registrar quando direcionamos o celular para a antena mais próxima e esperamos que as manchetes apareçam na tela. É uma versão atualizada da apreensão que nossos antepassados distantes deviam sentir nos momentos apavorantes que antecediam o alvorecer, quando se perguntavam se o sol conseguiria achar o caminho de volta para o firmamento.

Mas há também aqui um tipo muito especial de prazer. Por mais terrível que seja, e talvez especialmente em suas piores manifestações, o noticiário pode representar um alívio do peso claustrofóbico de vivermos em nossa própria companhia, de a todo momento tentarmos fazer justiça ao potencial que temos, de lutarmos para convencer umas poucas pessoas em nossa limitada órbita de conhecidos a levar a sério as ideias e necessidades que transmitimos. Consultar o noticiário é o mesmo que levar uma concha ao ouvido e se sentir subjugado pelo rugido da humanidade. Identificar questões muito mais graves e prementes do que as que são exclusivamente nossas e permitir que essas realidades de maior alcance se sobreponham à visão autocentrada das nossas próprias apreensões e dúvidas pode ser uma espécie de fuga das preocupações.

A fome, uma cidade inundada, um serial killer à solta, a renúncia de um governo, a previsão de escassez que um economista faz para o ano seguinte – todas essas turbulências externas são exatamente aquilo de que podemos precisar para gozarmos de uma espécie de calma interior.

Hoje em dia, o noticiário nos informa que um homem adormeceu ao volante do carro — depois de ficar acordado até tarde da noite cometendo adultério pela internet — e caiu de um viaduto, matando uma família de cinco pessoas que dormiam em um trailer lá embaixo. Outra matéria conta a história de uma universitária linda, com um futuro brilhante pela frente, que desapareceu ao sair de uma festa e cinco dias depois foi encontrada esquartejada no porta-malas de um táxi. A terceira notícia repassa os detalhes do caso amoroso entre uma professora de tênis e seu pupilo de treze anos. Ocorrências assim, de um desvario tão flagrante, fazem com que as pessoas na calmaria se sintam sãs e abençoadas. Elas podem virar as costas e experimentar uma renovada sensação de alívio por terem rotinas previsíveis, por terem mantido os desejos menos ortodoxos sob o devido controle e por nunca terem envenenado um colega ou enterrado um parente no quintal.

5.
Com o tempo, que efeito tem todo esse noticiário sobre nós? O que resta dos meses e até dos anos que, somados, passamos sob sua influência? Para onde vão todos os medos e as agitações pela criança desaparecida, pelo déficit orçamentário ou pelo general infiel? Em que medida todas essas notícias contribuíram para aumentar nossa sabedoria, se não contarmos o rastro vago e previsível de sedimentos de conclusões, por exemplo, de que a China está emergindo, de que a África Central é corrupta e de que é preciso reformar o sistema educacional?

O fato de geralmente não nos aprofundarmos nessas questões é sinal de nossa generosidade mental. Achamos que deve haver algo de errado em simplesmente desligar a televisão. É difícil abrir mão do hábito criado logo nos primeiros anos de vida, quando ficávamos sentados de pernas cruzadas durante as reuniões nas escolas para ouvir, com muita educação, algumas figuras de autoridade falarem sobre coisas que afirmavam ser essenciais.

Perguntar por que o noticiário é importante não significa presumir que não seja, e sim dar a entender que pode haver recompensas ao ingerir com mais atenção a dose diária de notícias. Este livro é um registro, uma fenomenologia de um conjunto de encontros com o noticiário. Organiza-se em torno de fragmentos colhidos em diferentes fontes e submetidos a uma análise deliberadamente mais aprofundada do que seus geradores pretendiam. É um exame atento das notícias com base no pressuposto de que esses fragmentos podem ser tão dignos de estudo quanto textos poéticos ou filosóficos.

A definição de noticiário foi deixada vaga de propósito. E, embora haja diferenças óbvias entre as agências de notícias, também há semelhanças o bastante para falarmos de uma categoria genérica que mescla os tradicionais feudos do noticiário – rádio, TV, on-line e impresso – e as ideologias contrastantes de direita e esquerda, intelectual e popular.

Este projeto tem uma dimensão utópica, que não se limita a questionar o noticiário dos dias atuais e tenta imaginar o que ele pode vir a ser. Sonhar com agências de notícias ideais não implica indiferença à presente realidade econômica e social dos meios de comunicação. Na verdade, é algo que decorre de um desejo de romper com uma série de pressuposições pessimistas com que talvez tenhamos nos resignado sem muita resistência.

6.
As sociedades modernas mal começaram a entender de que tipo de notícia precisa para prosperar. Durante a maior parte da história, era tão difícil colhê-las e tão oneroso distribuí-las que sua influência sobre nossas vidas era inevitavelmente questionada. Hoje, quase não existe lugar no mundo aonde possamos ir para escapar dos noticiários. Lá estão eles, à nossa espera, logo nas primeiras horas da manhã, quando despertamos de um sono conturbado. Seguem-nos a bordo de aviões, atravessando continentes, e ficam à espreita, esperando para sequestrar nossa atenção depois de botarmos as crianças para dormir.

O acelerado zumbido do noticiário penetrou no âmago de quem somos. Que proeza é ter um momento de calma hoje em dia, que pequeno milagre é a capacidade de adormecer ou de conversar com um amigo sem se distrair — e que disciplina monástica seria necessária para desviarmos a atenção do turbilhão de notícias e, durante um dia inteiro, ouvirmos apenas a chuva e nossos próprios pensamentos.

Talvez a sociedade precise de ajuda para lidar com o que o noticiário vem causando a todos nós: inveja e terror, alegria e frustração; tudo aquilo que nos tem sido dito e que, no entanto, desconfiamos que às vezes seria melhor nunca ter sabido.

 

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