Cem milhões prejudicados

Cem milhões prejudicados

‘Cem milhões de brasileiros prejudicados’, alerta especialista sobre Reforma da Previdência

Jane Berwanger foi umas das convidadas a analisar a Reforma da Previdência. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Gregório Mascarenhas 

“A Proposta de Emenda à Constituição 287/2016 – que ficou conhecida como Reforma da Previdência – não se sustenta juridicamente. E, socialmente, muito menos”, disse a advogada Jane Berwanger, em uma de suas primeiras falas no painel promovido pelo Sindicato dos Engenheiros – SENGE na noite de terça-feira (11). Trabalhadores se reuniram, na sede da entidade de classe, para participar do evento que debateu a Reforma da Previdência. Além dela, que é doutora em Direito Previdenciário, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário e professora da UNISC, participaram também o advogado previdenciário Renato Von Mühlen e o doutor em Economia do Desenvolvimento Volnei Picolotto.

A especialista afirma que, de acordo com a Constituição, não há déficit – o principal argumento do governo Michel Temer para a Reforma – e que “isso não é questão de opinião. A Previdência tem orçamento próprio definido em lei”. Para aprovar a PEC, afirmou a debatedora, o governo federal gasta mais com publicidade: “os argumentos para a reforma falam em ‘rombo’, ou em ‘déficit’, palavras assustadoras, e ainda se exagera na entonação. O governo vai distribuir recursos de publicidade para a mídia falar bem da proposta. E por quê? Porque a população não está convencida de que deve trabalhar tanto tempo”.

Berwanger definiu o texto da PEC como “o pior monstro que poderíamos imaginar”. Ela conta que o Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário elaborou um documento de 27 páginas no qual argumentava sobre a inconstitucionalidade do projeto; “o deputado que elaborou o parecer sobre a proposta, entretanto, não levou em consideração o estudo”.

Há, todavia, de acordo com Berwanger, alguns mecanismos e artifícios que retiram financiamento desse setor do Estado brasileiro. O primeiro, de acordo com ela, é a Desvinculação das Receitas da União (DRU), que realoca 30% dos recursos destinados à Previdência, à assistência social e à saúde. “Nos últimos dez anos”, diz Berwanger, “cerca de 500 bilhões de reais” foram alocados para outras áreas. O segundo ponto citado pela especialista é a dívida ativa para com a Previdência: “há grandes devedores nesse setor. E eles estão falidos? Não. Apenas 18% das empresas que devem declararam falência. Os outros não têm dinheiro para pagar?”, indagou a advogada.

Sobre o crescimento do chamado “rombo” da Previdência – que passou de R$ 85,5 bilhões em 2015 para cerca de R$ 152 bi em 2016 –, a especialista diz que o problema não está na saída, isto é, nos gastos do setor, mas na entrada de recursos: “todos os governos de 1923 para cá utilizaram, para o bem ou não, os recursos da Previdência”. E completa: “o conjunto de renúncias fiscais da União em 2016 foi de R$ 267 bilhões. E ninguém fala sobre juros e amortizações da dívida, que já são destino de quase metade do orçamento de Estado”.

Ela falou também sobre o crescimento dos planos privados de previdência: “Entre janeiro e outubro de 2016, o sistema privado captou R$ 42,9 bi em novos recursos, o que representa uma alta de 21% em relação ao outro ano, antes mesmo de a Reforma ser apresentada no Congresso. As pessoas estão se afastando da Previdência pública e indo para aquela gerida pelo setor privado, que está sujeita ao mercado. O Estado é sempre, em qualquer país, o investimento mais seguro. Fico estarrecida ao ver um presidente da República dizer que pode não haver recurso para pagar aposentadorias no futuro”, alertou. “Em 4.589 municípios do país o pagamento da Previdência é superior às próprias arrecadações municipais”, finalizou ela, referindo-se às consequências do enxugamento do repasse desses recursos para a economia das cidades.

Von Mühlen falou sobre os interesses por trás da PEC 287. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Renato Von Mühlen, por sua vez, falou sobre os interesses por trás da PEC 287, que, segundo ele, “atingirá também os regimes próprios de previdência social”. Ele interpreta que a Reforma faz parte de um “desmonte do Estado como um todo”, e citou a lei que permite terceirização de atividades-fim nas empresas, a reforma trabalhista e o projeto de extinção do Imposto Sindical como peças de um mesmo projeto: “quem não se aposentar vai ter que se sujeitar ao mercado de trabalho, com um sistema de proteção falido e um salário mínimo”.

“Se o governo destinasse à Previdência tudo o que deveria, ela seria superavitária”, argumentou Von Mühlen, completando: “descobrimos, quando comparamos com outros países, que pagamos mais [para custear a Previdência], somando a contribuição do trabalhador e do empresário”. A Desvinculação de Receitas da União, disse o advogado, retira recursos na origem, e os utiliza também para pagar a dívida pública do país. “Destruir a Previdência Social para entregá-la ao setor privado, em nome dos bancos. A quem interessa a Reforma?”, indagou à plateia, ao finalizar.

Volnei Piccolotto, que é doutor em Economia do Desenvolvimento e servidor da Secretaria Estadual da Fazenda, falou sobre a Reforma no contexto da política econômica do governo. Ele contextualizou a PEC 287 com as mudanças do capitalismo global e nacional, sobretudo com a “financeirização” dos mercados, que ocorreu, de acordo com ele, sobretudo desde o final da década de 70: “os dados mostram que há um processo enorme de liberalização da economia. E qualquer reforma de governo estará nesse contexto”. Picolotto falou também sobre a crescente desigualdade social como uma consequência desse processo: “Se compararmos a renda dos 90% mais pobres e de o 1% mais ricos dos Estados Unidos, onde esses dados são abundantes, percebemos que no caso dos mais pobres o crescimento foi de 0,1% desde o começo dos anos 80; entre os mais ricos, em um período recente, a renda chega a crescer mais de 8% ao ano”.

Para Piccolotto, a reforma vai beneficiar somente o setor bancário e rentista. Foto: Guilherme Santos/Sul21

O pesquisador afirmou que vivemos um segundo momento de austeridade econômica no Brasil, após os anos de FHC. “Naquela época era a criação da Lei de Responsabilidade Fiscal, as privatizações, os juros flexíveis, a renegociação das dívidas dos estados sob contrapartidas de austeridade”, tudo isso como requisitos para o acordo assinado com o Fundo Monetário Internacional em 1998. Hoje, diz ele, “retomamos as políticas da década de 90, com ampliação da abertura econômica, regime de recuperação dos estados novamente exigindo austeridade, com o congelamento dos gastos públicos”, entre outros exemplos.

Ele vinculou a taxa crescente de desemprego – que é a maior da série histórica do IBGE, iniciada em 2012, com 12,6% da população economicamente ativa sem trabalho – às políticas de austeridade e à falta de uma política econômica anti-cíclica, isto é, que procura reduzir, através da ação do Estado, os efeitos das crises recorrentes do capitalismo. Piccolotto criticou também a escolha e a política econômica de Joaquim Levy, ministro da Fazenda de Dilma Rousseff em 2015: “ele, como ortodoxo e neoliberal, acredita na ‘teoria do choque’, e concedeu reajuste de algumas tarifas [como de energia elétrica e preços de combustíveis] todos de uma vez só. Isso, ao invés de melhorar as expectativas, piorou”.

Piccolotto vinculou, ao final, a reforma da Previdência ao fato de o governo Temer ter surgido a partir de um impeachment: “ele só se mantém porque tem o apoio dos bancos, dos setores industriais nacionais e estrangeiros, da mídia e da oligarquia política. Vai beneficiar somente o setor bancário e rentista. Para propor reformas teríamos ao menos que ter um governo legítimo”, concluiu.

Alexandre Wollmann, presidente do SENGE, abriu o evento. Foto: Guilherme Santos/Sul21

O painel já é o nono no qual se debate algum tema relevante da política brasileira. Alexandre Wollmann, presidente da entidade classista, salientou, durante a abertura, a importância de discussões como essa: “o Sindicato dos Engenheiros atende a uma demanda que é da sociedade em geral. Trazer um tema de importância nacional – e que nos deixa em alerta por conta tudo que está por trás – é uma contribuição à sociedade como um todo”, justificou.

O deputado estadual Adão Villaverde (PT), que também esteve no evento, representando o presidente da Assembleia Legislativa, Edegar Pretto, afirmou que “a interpretação das questões políticas nacionais é papel do sindicato. Os ataques à proteção do cidadão – com a reforma da previdência, com o congelamento dos gastos sociais, com a terceirização das atividades-fim e com a reforma trabalhista que se articula – são anti-reformas estruturais”. Para ele, as escolhas políticas do governo federal se repetem no Rio Grande do Sul: “tudo se repete aqui no estado, a opção pelo obscurantismo, pelo atraso”, argumentou.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

 

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