Cem milhões prejudicados
‘Cem milhões de brasileiros prejudicados’, alerta especialista sobre Reforma da Previdência
Gregório Mascarenhas
“A Proposta de Emenda à Constituição 287/2016 – que ficou conhecida como Reforma da Previdência – não se sustenta juridicamente. E, socialmente, muito menos”, disse a advogada Jane Berwanger, em uma de suas primeiras falas no painel promovido pelo Sindicato dos Engenheiros – SENGE na noite de terça-feira (11). Trabalhadores se reuniram, na sede da entidade de classe, para participar do evento que debateu a Reforma da Previdência. Além dela, que é doutora em Direito Previdenciário, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário e professora da UNISC, participaram também o advogado previdenciário Renato Von Mühlen e o doutor em Economia do Desenvolvimento Volnei Picolotto.
A especialista afirma que, de acordo com a Constituição, não há déficit – o principal argumento do governo Michel Temer para a Reforma – e que “isso não é questão de opinião. A Previdência tem orçamento próprio definido em lei”. Para aprovar a PEC, afirmou a debatedora, o governo federal gasta mais com publicidade: “os argumentos para a reforma falam em ‘rombo’, ou em ‘déficit’, palavras assustadoras, e ainda se exagera na entonação. O governo vai distribuir recursos de publicidade para a mídia falar bem da proposta. E por quê? Porque a população não está convencida de que deve trabalhar tanto tempo”.
Berwanger definiu o texto da PEC como “o pior monstro que poderíamos imaginar”. Ela conta que o Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário elaborou um documento de 27 páginas no qual argumentava sobre a inconstitucionalidade do projeto; “o deputado que elaborou o parecer sobre a proposta, entretanto, não levou em consideração o estudo”.
Há, todavia, de acordo com Berwanger, alguns mecanismos e artifícios que retiram financiamento desse setor do Estado brasileiro. O primeiro, de acordo com ela, é a Desvinculação das Receitas da União (DRU), que realoca 30% dos recursos destinados à Previdência, à assistência social e à saúde. “Nos últimos dez anos”, diz Berwanger, “cerca de 500 bilhões de reais” foram alocados para outras áreas. O segundo ponto citado pela especialista é a dívida ativa para com a Previdência: “há grandes devedores nesse setor. E eles estão falidos? Não. Apenas 18% das empresas que devem declararam falência. Os outros não têm dinheiro para pagar?”, indagou a advogada.
Sobre o crescimento do chamado “rombo” da Previdência – que passou de R$ 85,5 bilhões em 2015 para cerca de R$ 152 bi em 2016 –, a especialista diz que o problema não está na saída, isto é, nos gastos do setor, mas na entrada de recursos: “todos os governos de 1923 para cá utilizaram, para o bem ou não, os recursos da Previdência”. E completa: “o conjunto de renúncias fiscais da União em 2016 foi de R$ 267 bilhões. E ninguém fala sobre juros e amortizações da dívida, que já são destino de quase metade do orçamento de Estado”.
Ela falou também sobre o crescimento dos planos privados de previdência: “Entre janeiro e outubro de 2016, o sistema privado captou R$ 42,9 bi em novos recursos, o que representa uma alta de 21% em relação ao outro ano, antes mesmo de a Reforma ser apresentada no Congresso. As pessoas estão se afastando da Previdência pública e indo para aquela gerida pelo setor privado, que está sujeita ao mercado. O Estado é sempre, em qualquer país, o investimento mais seguro. Fico estarrecida ao ver um presidente da República dizer que pode não haver recurso para pagar aposentadorias no futuro”, alertou. “Em 4.589 municípios do país o pagamento da Previdência é superior às próprias arrecadações municipais”, finalizou ela, referindo-se às consequências do enxugamento do repasse desses recursos para a economia das cidades.
Renato Von Mühlen, por sua vez, falou sobre os interesses por trás da PEC 287, que, segundo ele, “atingirá também os regimes próprios de previdência social”. Ele interpreta que a Reforma faz parte de um “desmonte do Estado como um todo”, e citou a lei que permite terceirização de atividades-fim nas empresas, a reforma trabalhista e o projeto de extinção do Imposto Sindical como peças de um mesmo projeto: “quem não se aposentar vai ter que se sujeitar ao mercado de trabalho, com um sistema de proteção falido e um salário mínimo”.
“Se o governo destinasse à Previdência tudo o que deveria, ela seria superavitária”, argumentou Von Mühlen, completando: “descobrimos, quando comparamos com outros países, que pagamos mais [para custear a Previdência], somando a contribuição do trabalhador e do empresário”. A Desvinculação de Receitas da União, disse o advogado, retira recursos na origem, e os utiliza também para pagar a dívida pública do país. “Destruir a Previdência Social para entregá-la ao setor privado, em nome dos bancos. A quem interessa a Reforma?”, indagou à plateia, ao finalizar.
Volnei Piccolotto, que é doutor em Economia do Desenvolvimento e servidor da Secretaria Estadual da Fazenda, falou sobre a Reforma no contexto da política econômica do governo. Ele contextualizou a PEC 287 com as mudanças do capitalismo global e nacional, sobretudo com a “financeirização” dos mercados, que ocorreu, de acordo com ele, sobretudo desde o final da década de 70: “os dados mostram que há um processo enorme de liberalização da economia. E qualquer reforma de governo estará nesse contexto”. Picolotto falou também sobre a crescente desigualdade social como uma consequência desse processo: “Se compararmos a renda dos 90% mais pobres e de o 1% mais ricos dos Estados Unidos, onde esses dados são abundantes, percebemos que no caso dos mais pobres o crescimento foi de 0,1% desde o começo dos anos 80; entre os mais ricos, em um período recente, a renda chega a crescer mais de 8% ao ano”.
O pesquisador afirmou que vivemos um segundo momento de austeridade econômica no Brasil, após os anos de FHC. “Naquela época era a criação da Lei de Responsabilidade Fiscal, as privatizações, os juros flexíveis, a renegociação das dívidas dos estados sob contrapartidas de austeridade”, tudo isso como requisitos para o acordo assinado com o Fundo Monetário Internacional em 1998. Hoje, diz ele, “retomamos as políticas da década de 90, com ampliação da abertura econômica, regime de recuperação dos estados novamente exigindo austeridade, com o congelamento dos gastos públicos”, entre outros exemplos.
Ele vinculou a taxa crescente de desemprego – que é a maior da série histórica do IBGE, iniciada em 2012, com 12,6% da população economicamente ativa sem trabalho – às políticas de austeridade e à falta de uma política econômica anti-cíclica, isto é, que procura reduzir, através da ação do Estado, os efeitos das crises recorrentes do capitalismo. Piccolotto criticou também a escolha e a política econômica de Joaquim Levy, ministro da Fazenda de Dilma Rousseff em 2015: “ele, como ortodoxo e neoliberal, acredita na ‘teoria do choque’, e concedeu reajuste de algumas tarifas [como de energia elétrica e preços de combustíveis] todos de uma vez só. Isso, ao invés de melhorar as expectativas, piorou”.
Piccolotto vinculou, ao final, a reforma da Previdência ao fato de o governo Temer ter surgido a partir de um impeachment: “ele só se mantém porque tem o apoio dos bancos, dos setores industriais nacionais e estrangeiros, da mídia e da oligarquia política. Vai beneficiar somente o setor bancário e rentista. Para propor reformas teríamos ao menos que ter um governo legítimo”, concluiu.
O painel já é o nono no qual se debate algum tema relevante da política brasileira. Alexandre Wollmann, presidente da entidade classista, salientou, durante a abertura, a importância de discussões como essa: “o Sindicato dos Engenheiros atende a uma demanda que é da sociedade em geral. Trazer um tema de importância nacional – e que nos deixa em alerta por conta tudo que está por trás – é uma contribuição à sociedade como um todo”, justificou.
O deputado estadual Adão Villaverde (PT), que também esteve no evento, representando o presidente da Assembleia Legislativa, Edegar Pretto, afirmou que “a interpretação das questões políticas nacionais é papel do sindicato. Os ataques à proteção do cidadão – com a reforma da previdência, com o congelamento dos gastos sociais, com a terceirização das atividades-fim e com a reforma trabalhista que se articula – são anti-reformas estruturais”. Para ele, as escolhas políticas do governo federal se repetem no Rio Grande do Sul: “tudo se repete aqui no estado, a opção pelo obscurantismo, pelo atraso”, argumentou.