Carta aberta a Juremir

Carta aberta a Juremir

Marcia Tiburi            25 de Janeiro de 2018

Carta aberta a Juremir

Kim Kataguiri em 2014; Marcia Tiburi abandonou debate com líder do MBL (Foto: Divulgação)

Caro Juremir,

Sempre gostei muito de participar do teu programa. Conversar contigo e com qualquer pessoa que apresente argumentos consistentes. Mais do que um prazer é, para mim, um dever ligado à necessidade de resistir ao pensamento autoritário, superficial e protofascista. Ao meu ver, debates que desvelam divergências teóricas ou ideológicas podem nos ajudar a melhorar nossos olhares sobre o mundo.

Tenho a minha trajetória marcada tanto por uma produção teórica quanto por uma prática de lutar contra o empobrecimento da linguagem, a demonização de pessoas, os discursos vazios, a transformação da informação em mercadoria espetacularizada, os shows de horrores em que se transformaram a grande maioria dos programas nos meios de comunicação de massa.  

Ao longo da minha vida me neguei poucas vezes a participar de debates. Sempre que o fiz, foi por uma questão de coerência. Tenho o direito de não legitimar como interlocutor pessoas que agem com má fé contra a inteligência do povo brasileiro ao mesmo tempo em que exploram a ignorância, o racismo, o sexismo e outros preconceitos introjetados em parcela da população.

Por essa razão, ontem tive de me retirar do teu programa. Confesso que senti medo: medo de que no Brasil, após o golpe midiático-empresarial-judicial, não exista mais espaço para debater ideias.   

Em um dia muito importante para a história brasileira, marcado por mais uma violação explícita da Constituição da República, não me é admissível participar de um programa que tenderia a se transformar em um grotesco espetáculo no qual duas linguagens que não se conectam seriam expostas em uma espécie de ringue, no qual argumentos perdem sentido diante de um já conhecido discurso pronto (fiz uma reflexão teórica sobre isso em “A Arte de escrever para idiotas”), que conta com vários divulgadores, de pós-adolescentes a conhecidos psicóticos; que investe em produzir confusão a partir de ideias vazias, chavões, estereótipos ideológicos, mistificações, apologia ao autoritarismo e outros recursos retóricos que levam ao vazio do pensamento.           

Por isso, ontem tive que me retirar. Não dependo de votos da audiência, nem sinto prazer em demonstrar a ignorância alheia, por isso não vi sentido em participar do teu programa. Demorei um pouco para entender o que estava acontecendo. Fiquei perplexa, mas após refletir melhor cheguei à conclusão de que a ofensa que senti naquele momento era inevitável.

A uma, porque, ao contrário das demais pessoas, não fui avisada de quem participaria do debate. A duas, por você imaginar que eu desejaria participar de um programa em que o risco de ouvir frases vazias, manifestações preconceituosas e ofensas era enorme. Por fim, e principalmente, meu estômago não permitiria, em um dia no qual assistimos a uma profunda injustiça, ouvir qualquer pessoa que faça disso motivo de piada ou de alegria. Não sou obrigada a ouvir quem acredita que justiça é o que está em cabeças vazias e interessa aos grupos econômicos que, ao longo da história do Brasil, sempre atentaram contra a democracia.     

Tu, a quem tenho muita consideração, não me avisou do meu interlocutor. A tua produtora, que conversou comigo desde a semana passada,  não me avisou. Eu tenho o direito de escolher o debate do qual quero participar. Entendo que possa ter sido um acaso, que estavas precisando de mais uma debatedor para a performance do programa. Se foi isso, a pressa é inimiga da perfeição. E, se não cheguei a pedir que me avisasse se teria outro participante, também não imaginava que o teu raro programa de rádio, crítico e analítico, com humor bem dosado, mas sempre muito sério, abrisse espaço para representantes do emprobecimento subjetivo do Brasil.

Creio que é importante chamar ao debate e ao diálogo qualquer cidadão que possa contribuir com ideias e reflexões, e para isso não se pode apostar em indivíduos que se notabilizaram por violentar a inteligência e a cultura, sem qualificação alguma, que mistificam a partir de clichês e polarizações sem nenhum fundamento. O discurso que leva ao fascismo precisa ser interrompido. Existem limites intransponíveis, sob pena de, disfarçado de democratização, os meios de comunicação contribuírem ainda mais para destruir o que resta da democracia.

Quando meu livro “Como conversar com um fascista” foi publicado, muitos não perceberam a ironia kirkegaardiana do título. Espero que a tua audiência tenha entendido. O detentor da personalidade autoritária, fechado para o outro e com suas certezas delirantes, chama de diálogo ao que é monólogo. Espero que, sob a tua condução, o programa volte a investir em mais diálogo, que seja capaz de reunir a esquerda e a direita comprometidas com o Estado Democrático de Direito em torno do debate de ideias.  

 https://revistacult.uol.com.br/home/marcia-tiburi-kim-kataguiri/

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