Capital privado e a educação
Capital privado estrangeiro avança sobre educação brasileira com aquisição de editoras
Cida de Oliveira
Da RBA
Quando os donos do negócio não têm rosto, pois se escondem atrás de fundos de investimentos que operam em vários países, fica difícil falar em soberania. Obviamente atuarão de forma econômica e política para aumentar seus lucros, em detrimento da educação e da cultura local. A avaliação é do secretário de Formação e Comunicação do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Livros do Estado de São Paulo (SEEL-SP), Rogério Chaves, a respeito do avanço do capital privado estrangeiro sobre a educação nacional, especialmente por meio da aquisição das editoras de material didático no país.
Em abril, a Kroton Educacional, maior empresa privada do mundo no ramo da educação, comprou a brasileira Somos Educação, da Tarpon Gestora de Recursos, em um negócio de R$ 4,6 bilhões. Semanas antes, havia comprado o Centro Educacional Leonardo da Vinci, de Vitória (ES).
Antiga Abril Educação, a Somos era tida como maior grupo de educação básica do país, com escolas próprias, cursos pré-vestibulares e idiomas, além de sistemas de ensino e livros. É a controladora das editoras Ática, Scipione e Saraiva, do Sistema Anglo de Ensino e da escola de inglês Red Balloon, entre outros negócios. A Ática e Scipione estão entre as principais fornecedoras de livros para escolas públicas do país.
O negócio foi um avanço para a Kroton após uma tentativa frustrada de fusão com a Estácio, segunda maior no mercado de ensino superior, numa operação reprovada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), avaliada em R$ 5,5 bilhões.
Lembrando o impacto das perdas sofridas pelos trabalhadores com a reforma trabalhista em vigor desde novembro, Chaves acredita que no campo das editoras a tendência é de mais exploração. “Perdemos soberania, provavelmente direitos no mundo do trabalho, sem a certeza de que nossos estudantes receberão conteúdos dignos de uma nova sociedade, melhor e justa”, diz o dirigente.
Esse não é o primeiro negócio envolvendo livros didáticos e capital privado controlado por fundos estrangeiros. Em 2015, o grupo Somos obteve aprovação do Cade para aquisição da Saraiva, numa operação avaliada em R$ 725 milhões.
“Depois da crise capitalista de 2008, os grandes grupos editoriais se interessaram pelos mercados abaixo da linha do Equador, com destaque para o Brasil, o maior comprador de livros didáticos”, diz Chaves.
“A Santillana, de propriedade do grupo espanhol Prisa, que também controla o jornal El País e de vários ativos de mídia, é a mais importante do grupo. Segundo dados publicados, a receita anual da Santillana no Brasil é de cerca de R$ 1 bilhão e o lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização (Ebitda) gira em torno de R$ 300 milhões.”
De acordo com o dirigente, o setor privado de obras didáticas tem um faturamento de aproximadamente de R$ 1,4 bilhão e o governo compra cerca de R$ 1,2 bilhão em livros escolares, anualmente.
Os lucros com as vendas para o governo podem se ampliar. Em entrevista recente à RBA, o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Araújo, disse que a reforma do Ensino Médio e a discussão da Nova Base Comum Curricular estão amarradas à estruturação da educação pública com forte influência empresarial.
Lembrou, inclusive, da presença de controladores do ensino privado no Conselho Nacional de Educação (CNE), que por sua vez têm papel na definição do que será ensinado nas escolas. Ou seja, componentes que estarão nos livros que este setor vai produzir, como Rogério Chaves também acredita.
“Após o golpe, nota-se um frisson do mercado pela ampliação de domínios sobre a Educação. É simbólico que, após o golpe que derrubou a presidenta Dilma, legitimamente eleita com 54,5 milhões de votos, o Ministério da Educação tenha sido ocupado por Mendonça Filho (DEM-PE), com ligações fortes junto ao setor privado de educação em seu estado natal, Pernambuco. Essa gente foi contra todas as políticas de incentivo à educação pública, eles ganham muito dinheiro vendendo livros para o Estado brasileiro”, explica.
Para o diretor do sindicato dos trabalhadores nas editoras, os empresários do setor não deverão enfrentar dificuldades seja qual forem os futuros formatos dos materiais didáticos, porque o negócio vai ficar na mão dos mesmos empresários. “A concentração de capital nessa área já demonstra o poderio dos negócios. A Kroton está avaliada em R$ 22,14 bilhões e só em 2017 obteve lucro líquido de R$ 2,23 bilhões. Mas acredito que o livro impresso ainda tem uma longa jornada pela frente, principalmente em um país com índices tão baixos de leitura”.
Ele lembra que a tentativa de popularizar os leitores de livros digitais, iniciada há poucos anos no Brasil, parece ter chegado ao teto. A cadeia do livro digital depende de equipamento e internet, fundamentalmente. E cita o escritor, filósofo, semiólogo e linguista italiano Umberto Eco (1932-2016): “Certa vez ele disse que podia acessar um livro físico lançado há centenas de anos, mas não conseguia acessar um texto seu gravado em disquete flexível”.
“Mas para incentivar a leitura, segundo ele, é preciso investir em educação pública e programas de incentivo à leitura, como o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que beneficia 33 milhões de estudantes.”
Para Rogério Chaves, o Brasil retrocede em relação ao pacto da Constituição Federal de 1988, mas é preciso lutar. “Pretendem implantar o neoliberalismo mordaz, aquele que aumentará a desigualdade, impedirá as oportunidades das novas gerações. Se isso terá volta? Ah, precisamos ser otimistas, não desistir, para o bem do povo brasileiro, o povo trabalhador. Precisamos planejar bem e reagir com inteligência, aproveitar todas as brechas que a luta política oferece a fim de alterar essa correlação de forças contra o capital excludente e em favor da democracia, da luta popular, da vida.”